sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Era uma vez em Setembro...



Era uma vez em Setembro...



Perdeu a graça e a graça que perdeu não era aquela que Deus lhe havia dado,
Subestimou a desgraça, menosprezou tudo aquilo que já era seu,
esqueceu; e abandonou o que antes já havia conquistado.


         — Isso é tudo. — ele me disse com sua voz entrecortada, seus olhos me encarando, temerosos de que eu fosse partir ao meio, como uma superfície de vidro. Ainda assim, ele continuou. — Não há mais nada a ser dito, não há mais nada. Acabou.
Seus olhos castanhos ainda me olhavam — quase gentilmente — por detrás dos óculos, ele não sorria, não mais falava, contudo, parecia uma estatua de mármore, parado, incapaz de mover um músculo a esperar o momento em que eu caísse em lágrimas ou mesmo sorrisse, num tom de ironia defensiva, fingindo que não era capaz de sofrer com suas palavras.
Eu continuei encarando o copo de café em minhas mãos, mergulhando profundamente no negrume fumegante à minha frente. Continuei sólido, seguro, minha face lívida, calma e fria como um túmulo, mesmo que minha alma em chamas batesse violentamente e se revirasse, tentando em vão escapar pelas frestas do caixão que eram meus ossos e minha carne. Quanto o encarei, meus olhos magoados, profundamente tristes, mas ainda altivos. Minha voz controlada não possuía resquícios de choro, era irreal, como se algum espírito mantivesse meus lábios em constante movimento, eu não conseguia ouvir a mim mesmo.
Suas palavras reverberavam e reverberavam pelas nuances escuras da minha mente. Toda a minha mente era a voz dele e seus olhos ainda a espera que eu quebrasse em estilhaços.
— Há muito, muito tempo — eu comecei. — eu dei todo o meu amor a uma pessoa. Não posso dizer que foram tempos fáceis, nada nunca vem fácil quando há paixão envolvida. Eu lutei com cada gota de sangue, cada traço do meu corpo até que eu conseguisse o que eu queria. E quando eu consegui, perdeu a graça. Eu olhei nos olhos dele e disse que tudo havia acabado, não importava o quanto ele me amasse, eu o amava de volta, mas não era de mim ficar com ele. Eu me arrependi, contudo...
— Você está querendo dizer que eu vou me arrepender? — Seu sorriso de sarcasmo me atingiu na nuca, como um soco. Não, nem sequer passou por minha cabeça esperar que ele sofresse. Não era justo, com nenhuma das pessoas envolvidas nessa história.
— Não, eu estou dizendo que eu me arrependi. Não importa, era tarde e éramos todos jovens aquela altura. Eu costumo dizer que a culpa foi dele, por tudo que ele me fez depois isso, ou até mesmo que minha decisão fora por uma causa nobre: eu não desejava que ninguém mais se magoasse, nenhuma das outras pessoas que o amaram. Era, no entanto mentira. — pausei minhas palavras, vendo que ele não me ouvia, apesar de ainda me encarar a espera que eu terminasse, ou desistisse no caminho. Ledo engano, não era com ele que eu falava, era comigo mesmo. — Eu fui embora por pura covardia. Eu queria, não posso dizer que eu não queria amar e ser amado, mas eu tinha medo, como ainda hoje tenho, de me atrelar a outra pessoa e não conseguir viver os sonhos que busco. Eu tinha medo de ser jovem e de estar desperdiçando o último raio de sol em minha vida.
Ele sentou-se, cansado de me ouvir e pôs-se a mexer no seu celular, alheio a tudo que eu falava. Não duvido que ele tenha deixado de me ouvir na primeira frase, mas somente ali, naquela altura do campeonato ele percebera que eu não iria cair em pedaços. Não havia nada que pudesse matar o que já não estava mais vivo.
— Desde então, querido, a minha sina é ver o amor crescer e morrer. Não em mim, sempre ao meu redor. Dia após dia e não importa quantas vezes eu namore, quantas vezes eu me apaixone, qualquer amor que venha de mim não vigora, mas tudo que há ao meu redor cresce verde e dá frutos. Essa é minha maldição, esse é meu castigo: Observar paixões belas e brilhantes, enquanto eu mesmo brilho solitário. — Seus olhos voltaram a me encarar, dessa vez, quase trôpegos, silentes, penosos. — Não, não sinta pena de mim, não vale nada. Eu sou uma daquelas pessoas forjadas de solidão e volúpia. Eu não sabia o que fazer com uma relação duradoura, por mais que eu sonhe com isso. Alguns sonhos não são feitos para serem realizados, eles são forjados para que continuemos sempre continuando, sempre caminhando. Eles nasceram para nos dar algo pelo que lutar, mesmo em vão. Eu, no entanto, estou cansado.
Ele esperou. Esperou que eu continuasse. Que amaldiçoasse os deuses e minha vida pelas mil e uma tragédias que se abateram sobre ela. Eu não continuei, não era um desabafo, não era uma lamúria, era apenas um frio e alheio testemunho. Era minha maldição e eu precisava que mais alguém soubesse disso.
Se não ele, um mendigo qualquer da praça lá fora. Seu único benefício foi estar ali, parado a minha frente, bem depois da xícara de café fumegante e negro que eu segurava em minhas mãos.
Deixei-a sobre a mesa, como se não precisasse mais dela.
— Porque você me disse isso?
— Eu não sei. E essa conversa acabou.
Passei ao seu lado, sem o encarar, como ele se ele fosse um fantasma que já não mais estava ali. — talvez não estivesse e eu estivesse apenas revivendo uma conversa que acontecera há muito tempo. Talvez ele fosse um fantasma e eu um velho tolo ainda a relembrar a mesma coisa.
 Sentei-me na cama a espera das lágrimas que não vieram, da tristeza que se recusou a aparecer. Deitei, deixando-me morrer aos poucos enquanto minha alma em chamas escapava pelas brechas que eu deixei, senti muita febre aquela noite.
O dia, no entanto, teimou em nascer e no meio do meu banho, já mais calmo, as lágrimas vieram. Só então eu percebi que suas malas já estavam prontas na noite anterior e que ele partira sem me dar um beijo na testa, sem me dizer — de novo — adeus.
Deixei que ele escorresse junto à água e disse adeus, baixinho, para que ninguém mais me ouvisse além dele: o vento trataria de mandar meu recado.
Se não, não fazia mal: palavras não fariam ir mais depressa os pés que já se foram.
Palavras não o trariam de volta.