domingo, 23 de junho de 2013

Concupiscência

Concupiscência
“Concupiscência é a filha mais jovem de desejo. Sua essência é o caos que há em cada beijo, a cada vez que um amante abre sua porta e suas pernas. Ela é um mundo inteiro de coisas a serem descobertas em seu corpo moreno e esguio, um universo de caricias e volúpia. Ela é o início de toda a vida, a compulsão abissal que cada um de nós têm pelo corpo alheio, a fome irracional e libertina pelos lábios do outro; a canção telúrica de atração entre a taça e o obelisco.

Concupiscência é um copo de uísque, um cigarro e um sorriso.

Inteira pernas, coxas e segredos...”

Suor entre peles suadas, suspiros intermináveis dele sob as coxas intermináveis dela. Ela, é claro, era toda sorrisos, mordendo-o como jambo maduro e rindo em apetite ébrio e apetecencia. 
Balançava a cabeça, não em duvida ou negação, mas como fazem os leões a balançar suas jubas magníficas e cheias de sol, ela possuía a lua em suas madeixas de cobre e sua boca carnuda e vermelha eram os desígnios secretos de Marte.
O deus da guerra estava em seus lábios e ela percorria com sua língua molhada sua lança e os dois escudos que ele trazia na base entre os flancos de pelos pubianos. Ele era todo suspiros e gritos, inteiramente entregue a ebriedade do momento. Inteiramente dominado pelo par de olhos verdes demoníacos que o possuíam por completo coroando aquele corado rosto angelical.
Ela não possuía um nome, forças pungentes como aquela jovem de feições concupiscentes são dotadas apenas de instinto. Apenas do movimento eterno de vai e vem sob os lençóis rasgados, ela beija seu umbigo, peito, tórax e boca. Duas orelhas não eram suficientes para sua língua tácita e desejosa.
Alex não entendia como alguém como ela o usava dessa forma. Há quanto tempo ele a conhecia? Mil anos, quatro, cinco? Parecia que ele podia entender toda a alma dela naquele instante, traduzindo sexo em cada movimento suave de seu corpo curvilíneo, parecia a conhecer a anos, mas não fazia sequer um par de horas desde que ela a trouxe de volta ao apartamento dele, conhecendo-o por detrás do primeiro copo de uísque que ele tomava em sua vida.
Sorte? Sorte não era uma palavra que se podia usar naquele momento. Aquele segundo era um mistério, um rito não revelado de um povo esquecido no tempo, de uma magia perdida, queimada junto ao farol de Alexandria. Fechando seus olhos, ele quase podia ver o estandarte fálico que se erguia decaindo em fogo, assim como o seu se esvaia em gozo e excitação.
Ele gritou, desejou parar até. O nível daquele prazer era sobre-humano, não podendo ser real, beirando a base do impossível. No entanto, fechando os olhos tudo era possibilidade e sua mão perdia-se no cabelo dela, puxando-a com força de maneira mais selvagem para perto de si.
Esperou protestos que jamais vieram. Ela ria, ela ria e ria como se soubesse um segredo do qual ele partilhava sem compreender. Como se ela fosse a sacerdotisa ancestral que conduzia a faca ante o peito do adolescente virgem que gemia perante seu destino inevitável. Ele era de fato virgem, mas ela não possuía uma faca, apenas seus beijos, apenas seus lábios, apenas suas coxas grossas e morenas.
Seus peitos eram rijos, fartos, Alex de apercebia disto enquanto os descobria lentamente com suas mãos tremulas. Porém, restava pouco espaço para sua percepção enquanto ela o cavalgava como um potro que acabara de se tornar o novo reprodutor da fazenda: de maneira arredia, incontrolável, tempestuosa.
Quando ele fantasiava, com suas mãos em seu sexo, seus instantes de prazer não chegavam a durar mais que três ou seis minutos. No entanto, já estava ali fazia horas. Quando fora a última vez em que comera algo que não fosse o fruto proibido entre as pernas de sua deusa? Não conseguia lembrar, mas não podia ser muito, afinal não sentia fome de nada que não fosse ela, de nada que não fosse dela.
Alex a tomou com força, quase violentamente, tornando-se homem, o consorte poderoso da deusa, o senhor absoluto daquela terra e como Marte, tomou Vênus nua em suas posições mais animalescas. Ele a usou como se fosse um homem, mas dela não ouviu protestos ou dor.
Dela também não ouviu gemidos, mas podia sentir sua aprovação no modo como ela movimentava-se, suavemente lasciva, entregue em total graça ao que fazia, entregue inteiramente no braço dele.
Ela o prendeu em suas coxas puxando-o cada vez mais forte para perto dela. Arranhando-o lentamente, cada vez com mais força, já voltada novamente para ele, que agora se movimentava como seu igual. Ambos estavam conectados e queimavam em desejo e excitação.
Ele não notou a dor que vertia de suas costas sangrentas, ou mesmo de seus lábios já roxos de tanto serem beijados ou das partes de seu corpo que estavam esfoladas devido à repetição demasiada de seus movimentos. Alex permanecia cego diante da figura a qual era devoto.
Totalmente entregue aos seus desígnios, inocentemente envergando-se cada vez mais dentro dela; ele deixou-se incendiar como uma fogueira, cuja tocha causadora da existência estava nas mãos daquela mulher a quem ele devia tudo. E quando ela acendeu a pira que era o corpo dele, ele incendiou-se por completo, se deixando levar apenas pelo prazer daquele momento que era derradeiro e único,
 Fechou os olhos enquanto seu falo semeava a fértil terra daquela mulher, naquele momento ele viu a explosão das estrelas, o nascimento dos primeiros cometas, a formação da terra. Em cada coisa ele via o modo como desde o principio dos tempos ela existira, o principio casual do desejo, a força que move todas as outras.
Tudo tem o desejo de ser, de vir a existir; ele agora via e entendia que ela era a encarnação vida daquele desejo. Lágrimas caíram de seus olhos em profunda paixão, devotado como um louco a aquele momento.
Alex apagou-se lentamente, exaurido pela força do rito que acabara de cumprir. Jamais saberia seu verdadeiro nome, sequer se ela, de fato, era dotada de nominação, qualquer pergunta perdera-se no exato momento em que ele perdera suas forças completamente extasiado.
Ele esvaiu-se em sexo, fechando seus olhos para nunca mais abri-los.
Ela abotoou os botões de sua camisa, dei-lhe um beijo na testa em despedida e sorriu. Sorriu porque não importava o quanto ele fosse jovem e bonito, ela não sentia remorso por aquela vida desperdiçada; afinal, diante dela, Alex não era nada mais do que um instante de gozo.
Regozijada, tudo que ela conhecia era o prazer. Sua essência era a efervescência sublime do amor. E como tal, o beijou uma última vez em agradecimento antes de ir.
Antes do próximo copo de uísque.


terça-feira, 4 de junho de 2013

As luzes




As luzes

Ando por sobre as quedas,
Mas não é nas pedras da vida que tropeço,
São nas luzes no final da festa,
Vidro quebrado, orbes incompletos.
Oh! Que maravilha é viver


It's ok to feel the rain on my hands, my love, my enemy …
A mesma música, de novo e de novo, enquanto na estrada apenas o som da chuva e dos carros, que passavam rápidos demais para serem ouvidos por muito tempo, imperava. Miguel, no entanto, os ouvia atentamente, sabendo que, cedo ou tarde, encontraria a luz no final daquela curva; a coragem para seu intento.

***
Não que importasse; não que alguém fosse ouvi-la, mas ela gritava mais alto que o som já altíssimo da música, num grito de ajuda, num pedido de socorro, numa única frase repetida tantas vezes que já chegava a se tornar um lema. Feita de titânio, ela sabia que solidão alguma iria a derrubar.
Já haviam sido tantos copos de tequila que agora, enjoada do sal, ela buscava vodka, primeiro misturada, posto que quisesse fingir para o russo que a atendia que não desejava de fato ficar bêbada, sendo que já estava, depois, já despretensiosa, a tomava pura e sem gelo, num ato de puro desespero.
Alguns a chamavam devassa, festa, após festa, semana após semana de beijos vazios e manchas de batom nas roupas de homens variados e talvez, (porque não?) Algumas mulheres. Sinceramente? Não importava mais onde seus lábios seguiam, em quem seus dedos tocavam, porque o que seu coração desejava já não era mais amor e sua mente já não buscava mais o esquecimento.
Houve um tempo em que ela fora especial, uma estrela brilhante na escuridão latente da alma humana, uma alma rara, daquelas que amam intensamente e sempre buscam o bem, o melhor e o mais iluminado para aqueles que com ela compartilhavam a vida. Mas sua luz fora constantemente desperdiçava, usada sem pudor, nexo ou permanência; sua constância sempre fora recompensada com efemeridade. Machucada tantas vezes, ela levantou-se o quanto seus joelhos permitiram.
Quando o amor de sua vida a trocou seis vezes, mesmo depois dos pulsos cortados, dos gritos desnecessários, da alma esmigalhada, ela levantou-se; então veio a esperança: um último namoro por quem mesmo sem gostar totalmente, ela entregou-se; fora destratada, chamada de nomes que tentou esquecer, mas que se arraigaram tanto em sua alma que se tornaram os mesmos pelos quais ela hoje se chama; não demorou muito até que ela mesma terminasse.
Quem diria então que mesmo assim ela continuaria imutável, sempre a boa aluna, a companheira adorável, eternamente ajudando aqueles que permaneciam ao seu lado apesar de tudo. Quebrada por dentro, mais uma vez ela tentou lembrar a si mesma de porque estava viva e qual era o seu único sonho: casar, ter um filho, uma casa, um lar. Mais uma vez desfizeram seus castelos de sonho.
Não que ela fosse santa, por detrás de seus olhos castanhos de tempestade sempre havia maldade suficiente para fazer sucumbir o mundo. Era vingativa, luciférica, desorganizada e seu caminhar trazia consigo os passos amaldiçoados de sua sina: destruir tudo aquilo que tocava; transformar toda a estrada por onde seus pés haviam passado; sua existência era a essência divina do caos, feita somente para provocar mudança. Talvez por isso, autodestruição era o único caminho ao qual conhecia.
No mais, ela raramente falava de seus sonhos, afinal, chorona, passional e frágil do jeito que era; todos a julgariam ainda mais fraca do que já haviam julgado anteriormente. Ainda assim, apesar de todos os seus dissabores, quase morta por dentro, ela sorria grandiosamente esperando de cabeça erguida o próximo golpe, já despida de qualquer esperança.
No entanto, sempre há fé a ser comprada no mercado de ilusões, mais uma vez, uma derradeira vez, ela tentou. Morta por dentro, ela recebeu o golpe, outro após outro. Sua amizade, generosidade, amor, afeto, carinho, aconchego, todos foram destruídos por um motivo torpe, uma brincadeira sem sentido: ela apenas foi mais um jogo, mais uma vez apenas um jogo.
É estranho pensar como esse evento a mudou completamente, afinal, o que a fizera esperar o sol nascer fora imaginar as inúmeras formas de como poderia dar cabo a própria vida. Aquilo se tornara tão grotescamente divertido, tão doentio e tétrico que sua única ação no final do dia fora rir e rir tão alto que cada movimento de seu corpo beirava a insanidade. O ódio que fervera seu sangue evaporou sua alma na mesma medida.
Naquele dia, Verônica Vasconcelos Marques jurou a si mesma que sua morte seria feita de fogo e de luzes e que quando seus olhos, por fim, se fechassem, não haveria pena ou lágrimas em seu enterro, posto que todos que lá estivessem saberiam de como ela havia feito de si mesma a estrela mais iluminada do seu céu em decadência. Naquele dia, verônica decidiu morrer e se tornar uma outra pessoa qualquer.
Cabelos pintados em tons de vermelho, roupas trocadas, meses de academia e ainda assim ela chorava todas as noites sem entender porque ainda não se sentia completa, porque ainda desejava no fundo ser amada por mais que tentasse tantas vezes desistir de si mesma. Viver, para ela, tornara-se uma prisão da qual ousava buscar uma libertação que não fosse a mais obvia.
A verdade é que tudo começou como um efeito placebo: beber e dançar era sua válvula de escape para não lembrar-se dele nos finais de semana, quando ela se sentia mais sozinha. Contudo, nas primeiras noites ela não reconheceu o batom vermelho em sua boca ou o vestido preto decotado que tanto combinava com sua tez morena clara; nunca estivera tão bonita e jamais tão distante de si mesma.
As luzes da festa a ludibriaram; bêbada ela descobriu a libertação do que era de fato dançar como se o mundo inteiro dependesse do caminho trôpego ao qual estava atrelada. Aquela era a mão do seu destino finalmente imperando, finalmente mostrando-a que seu caos tinha lugar onde pudesse ser lei, ser ordem; seu lugar de direito na existência: bem longe do amor, bem longe da significância. Bem ali, na pista de dança, estava a chave para sua felicidade.
Não que fosse fácil, apesar da diversão. Houve momentos em que ela quis desistir, seus pés cansados, seu espírito quebrado quando alguém não a beijava ou noticias distantes do seu amado chegavam aos seus ouvidos. Afinal, apesar de estar se divertido, tudo aquilo ainda tinha um sentido: esquecer. Sua liberdade completa adviria somente do caos, ela sabia, mas era incapaz de se desvencilhar de sua vontade de tentar de novo.
Dos homens que nesta época a beijaram, muitos permaneceram em sua vida como amigos, alguns como amantes corriqueiros, porém não houvera nenhum que com ela partilhasse algo mais que alguns sussurros na noite que transparecia afetos e um adeus solícito quando o dia amanhecia. Não porque eles não quisessem, mas porque ela não deixaria que isto a magoasse, não havia como interromper o curso de sua demanda. Um pedaço dela estava sempre solto por ai e por mais que custasse caro este pecado, ele era a única forma de mantê-la sã, a manter viva.
Até que um homem a beijou fora da pista, tomando dela mais do que qualquer outro havia tomado, dando a ela, mais do que qualquer outro lhe havia dado. Alguém especial que a via como ninguém antes a havia visto. Não que Verônica tivesse voltado a ser quem era, ou mesmo se apaixonado completamente por ele, mas naquelas três semanas que se seguiram, ela foi dele, literalmente dele e de mais ninguém.
O tempo em que ele segurou sua mão fora suficiente para que ela largasse todas as amarras que a prendiam ao seu passado, seu coração cicatrizara e os homens que ainda tinham esperanças em seu amor, desistiram. Ela nunca esteve tão feliz, seus olhos brilharam, ela sorria. Pela primeira vez desde que fizera doze anos, e perdera a virgindade, ela sorria verdadeiramente, liberta da tristeza que tanto a possuía.
O fim não fora trágico, nem coroado de adeus e lágrimas de sangue, fora apenas um sorriso, uma ciência de que ambos estavam em lugares diferentes do caminho; talvez um dia seus destinos se cruzassem de novo, mas não ali, não naquele momento. E com um último encontro, eles se abraçaram e disseram até logo. Sem se beijar, sem fazer promessas, sem pedir nada de volta.
Os dias de cão haviam acabado, sua espera era apenas dos cavalos que prometiam vir nas músicas que ela ouvia dançando insanamente em sua própria sala até cair ao chão exausta. Seus cabelos vermelhos mudaram novamente para o preto corriqueiro, seus lábios e rosto, no entanto, continuavam maquiados, ela brilhava, genuinamente junto as luzes da cidade que lá em baixo festejavam.
Seu momento favorito, antes da pista de dança, era ficar sentada num barzinho próximo à beira da colina de onde o movimento apocalíptico da megalópole era observado em toda sua glória. Não havia beleza em todo o universo que pudesse suplantar o lampejar das luzes da cidade num complexo misto anárquico de cores que formavam juntas um espetáculo único.
Então, entre onze e meia noite, ela entrava iluminada de si mesma e dançava de olhos fechados, como se o mundo inteiro fosse acabar sob os pés dela, bêbada, sem se importar com preço da comanda, afinal, muitas das bebidas que estavam em suas mãos foram pagas por outros, nunca com promessas, nunca pagas com seu corpo, apenas sua presença, apenas sua luz, seus beijos e caricias.
Todos a queriam e todos poderiam tê-la, seu corpo não tinha distinção de ritmos, aceitando em suas curvas tanto o funk do final das festas, quanto o indie das pistas alternativas; suas roupas eram sempre diferentes, como se sua identidade fosse tão volúvel quanto seu humor, às vezes muito fêmea, às vezes como macho e ocasionalmente como um bicho estranho, vindo do Tártaro ou Olímpo, mandado pelos deuses como um presente ou maldição.
Aquela altura, muitos foram os que tentaram dissuadi-la, achando que seu caminho a levaria a autodestruição, de fato, esta era sua intenção desde o inicio, mas naquele momento, ela estava completamente livre, fazendo toda aquela estapafúrdia em cair no chão e beijar os mais bonitos que passassem por puro prazer, sem objetivo.
Aquela altura, ela já estava ciente que seus sonhos eram vãos e que seu caminho, seu destino, era continuar vivendo festa após festa, como os hiperbóreos das lendas; naquela parte de sua vida, ela sabia que, para ela, não haveria felicidade fora da pista de dança.
No fundo, já não mais se sentia sozinha, porque não precisava mais estar com alguém, tanto que não sentia mais o ocasional arrependimento no final das festas, raramente havia lágrimas, e até àquela altura, mesmo a culpa pelos corações que partia foi deixada de lado.
Os poucos que a seguiram, acompanhando-a fora da boate, não permaneceram muito tempo ao perceber que apesar de divertida, ela pertencia a uma outra classe de pessoa: inteligente demais, conhecedora demais, pronta a saber todos os idiomas e ainda assim dançar todos os ritmos.
Quando estavam em suas vidas, eles percebiam que seu caminhar era trajado de ocultismos que ela não demonstrava na balada. A pista de dança era sua religião, a dança, seu ritmo e era um fato de que sua vida era voltada ao sacerdócio do culto informal a Lilith, Ishtar e Maria Padilha, mas ainda assim, fora deste momento nos finais de semana, Verônica ainda rezava a essas deusas, dançando nua ao redor de fogueiras sob a lua cheia e sua casa tinha cheiro de incenso e almíscar.
Mesmo fora de seus domínios, ela mesma era um aspecto da deusa: seu lado destruidor, autofágico; Sequer ignorava isto, estava completamente ciente de seu lugar naquele universo estranho e efêmero.
Os que ficaram foram apenas aqueles que já a conheciam, mesmo antes dos seus primeiros passos trôpegos em festas; restavam também os que a magoaram; agora completamente perdoados, afinal, ela já não se importava em guardar rancor ou ser vingativa, tudo em sua vida era passageiro. Ocasionalmente alguns destes tentavam faze-la voltar a sua antiga forma, completamente sem sucesso.
Cada vez mais bêbada, cada vez mais extasiada em músicas, felicidade, luzes esmaecidas pela ebriez e, finalmente, pelos beijos de pessoas cujo nome sequer significam mais do que sussurros vazios e palavras sem importância, Verônica chegou num ponto tão alto que a única saída seria se jogar de braços abertos num último amplexo suicida.
E era isso que ela fazia naquele exato instante, entre tantos copos de vodka e tequila que suas mãos já eram incapazes de segurar mesmo latas de cerveja. Ninguém sabia, mas aquele gritar de que ela era feita de titânio, linda como diamantes caindo do céu e que ninguém dava a ela mais do que doces nadas não eram nada mais do que seu jeito de dizer que era o fim.
Eram quatro horas da manhã e a chuva dava seus primeiros indícios de que ia surgir lá fora; mas Verônica ainda estava alheia a este sinal, seus olhos estavam fechados e ela permanecia dentro da boate, imersa completamente em seu próprio caráter de divindade alternativa para a qual ninguém rezava.
Então, já bem no alto de seu apogeu hiperbóreo, seu salto magistral foi dado; sua consciência deixou-se expandir violenta, caótica e indiferente a qualquer um que estivesse ao seu lado.
As luzes explodiram, enquanto todos passaram a correr assustados, mas não ela; seu coração sabia o que estava a acontecer: as lâmpadas explodiam, mas suas luzes continuavam, derramando-se em cores pelo chão negro. A música também continuou a tocar, independentemente do caos que se instaurara enquanto as garrafas de vodka se quebravam, misturando-se nas estantes do bar aos outros líquidos que também se derramavam sozinhos.
Ela dançava, de olhos fechados, chorando descalça, havia jogado os saltos em algum lugar do qual já nem se lembrava, não faria sentido procurá-los. Todos foram embora e ela estava sozinha, incomodada não com os cacos de vidro que feriam seus pés, mas com a ciência de que a música, as luzes e o fogo de sua alma diminuíam engolidos finalmente pelo cansaço.
A festa havia chegado ao fim e Verônica estava só no escuro, tremendo de frio, sozinha, com o coração esmagado pelo peso de seu próprio existir. Sua maquiagem borrada e o sangue em seus pés demonstravam o seu status de mortandade, sua epopéia estava se esgotando, com poucas notas a ainda serem cantadas.
Ela não sabia que o amor podia doer tanto assim, mas ela mesma era incapaz de acreditar que havia visto tamanha paixão. Um apaixonar-se tão intenso que a fizera chegar a aquele momento de profunda escuridão. Quem seguraria em sua mão?
Bêbada demais para andar em linha reta, ela caminhou para fora; ainda estava escuro e as nuvens de chuva tomavam completamente o céu precipitando-se no exato momento em que ela abriu a porta de seu carro. Dirigiu em ziguezague pela estrada, incapaz de controlar a si mesma e muito menos o sedan vermelho que estava em seu poder.
Ligou o radio, ouvindo o CD da sua banda favorita mais recente: A is for Alpine e naquela chuva, ela correu já tão morta por dentro que fora incapaz de perceber a ironia na letra.
It's ok to feel the rain on my hands, my love, my enemy …

***
Apenas o som da chuva imperava e de novo e de novo, Miguel ouvia a mesma música do novo CD de sua banda favorita mais recente; sentia-se só, morto por dentro, como se parte de sua alma houvesse explodido em algum lugar daquela colina e sua existência não fosse mais do que parte do destino de uma outra pessoa.
Desistente da vida, já era o oitavo carro que passava sem que ele houvesse criado coragem para seguir em frente com seus planos suicidas. Fechou seus olhos e sentiu a chuva novamente, respirando de forma a tomar coragem. O nono carro vinha em alta velocidade e farol alto.
De forma impulsiva, Miguel lançou-se em direção ao Sedan vermelho que vinha praticamente desgovernado pela pista, a motorista sequer tentou desviar de tão bêbada que estava. Logo depois da colisão, o carro não acompanhou a curva, precipitando-se junto à chuva colina abaixo.
Os primeiros raios de sol despontaram durante as últimas notas do poema que havia sido a vida do rapaz estendido exangue no asfalto; sua missão estava completa, seu lugar no universo havia finalmente feito sentido, no mais, era ali, jogado no asfalto, quase morto, que o destino o queria.
Ali, jogado no asfalto, já morrendo, ele viu o brilhar da luz de uma explosão, para não ver mais nada em seguida.
Ali, no asfalto, a morte o aceitou como a uma canção e partiu, dançando-o.