As luzes
Ando por sobre as quedas,
Mas não é nas pedras da vida que tropeço,
São nas luzes no final da festa,
Vidro quebrado, orbes incompletos.
Oh! Que maravilha é viver
It's ok to feel the rain on my hands, my love, my enemy …
A mesma música, de novo e de
novo, enquanto na estrada apenas o som da chuva e dos carros, que passavam
rápidos demais para serem ouvidos por muito tempo, imperava. Miguel, no
entanto, os ouvia atentamente, sabendo que, cedo ou tarde, encontraria a luz no
final daquela curva; a coragem para seu intento.
***
Não que importasse; não que
alguém fosse ouvi-la, mas ela gritava mais alto que o som já altíssimo da
música, num grito de ajuda, num pedido de socorro, numa única frase repetida
tantas vezes que já chegava a se tornar um lema. Feita de titânio, ela sabia
que solidão alguma iria a derrubar.
Já haviam sido tantos copos de
tequila que agora, enjoada do sal, ela buscava vodka, primeiro misturada, posto
que quisesse fingir para o russo que a atendia que não desejava de fato ficar
bêbada, sendo que já estava, depois, já despretensiosa, a tomava pura e sem
gelo, num ato de puro desespero.
Alguns a chamavam devassa, festa,
após festa, semana após semana de beijos vazios e manchas de batom nas roupas de
homens variados e talvez, (porque não?) Algumas mulheres. Sinceramente? Não
importava mais onde seus lábios seguiam, em quem seus dedos tocavam, porque o
que seu coração desejava já não era mais amor e sua mente já não buscava mais o
esquecimento.
Houve um tempo em que ela fora
especial, uma estrela brilhante na escuridão latente da alma humana, uma alma
rara, daquelas que amam intensamente e sempre buscam o bem, o melhor e o mais
iluminado para aqueles que com ela compartilhavam a vida. Mas sua luz fora
constantemente desperdiçava, usada sem pudor, nexo ou permanência; sua
constância sempre fora recompensada com efemeridade. Machucada tantas vezes,
ela levantou-se o quanto seus joelhos permitiram.
Quando o amor de sua vida a
trocou seis vezes, mesmo depois dos pulsos cortados, dos gritos desnecessários,
da alma esmigalhada, ela levantou-se; então veio a esperança: um último namoro
por quem mesmo sem gostar totalmente, ela entregou-se; fora destratada, chamada
de nomes que tentou esquecer, mas que se arraigaram tanto em sua alma que se
tornaram os mesmos pelos quais ela hoje se chama; não demorou muito até que ela
mesma terminasse.
Quem diria então que mesmo assim ela
continuaria imutável, sempre a boa aluna, a companheira adorável, eternamente
ajudando aqueles que permaneciam ao seu lado apesar de tudo. Quebrada por
dentro, mais uma vez ela tentou lembrar a si mesma de porque estava viva e qual
era o seu único sonho: casar, ter um filho, uma casa, um lar. Mais uma vez
desfizeram seus castelos de sonho.
Não que ela fosse santa, por
detrás de seus olhos castanhos de tempestade sempre havia maldade suficiente
para fazer sucumbir o mundo. Era vingativa, luciférica, desorganizada e seu
caminhar trazia consigo os passos amaldiçoados de sua sina: destruir tudo
aquilo que tocava; transformar toda a estrada por onde seus pés haviam passado;
sua existência era a essência divina do caos, feita somente para provocar
mudança. Talvez por isso, autodestruição era o único caminho ao qual conhecia.
No mais, ela raramente falava de
seus sonhos, afinal, chorona, passional e frágil do jeito que era; todos a
julgariam ainda mais fraca do que já haviam julgado anteriormente. Ainda assim,
apesar de todos os seus dissabores, quase morta por dentro, ela sorria
grandiosamente esperando de cabeça erguida o próximo golpe, já despida de
qualquer esperança.
No entanto, sempre há fé a ser
comprada no mercado de ilusões, mais uma vez, uma derradeira vez, ela tentou.
Morta por dentro, ela recebeu o golpe, outro após outro. Sua amizade,
generosidade, amor, afeto, carinho, aconchego, todos foram destruídos por um
motivo torpe, uma brincadeira sem sentido: ela apenas foi mais um jogo, mais
uma vez apenas um jogo.
É estranho pensar como esse
evento a mudou completamente, afinal, o que a fizera esperar o sol nascer fora
imaginar as inúmeras formas de como poderia dar cabo a própria vida. Aquilo se
tornara tão grotescamente divertido, tão doentio e tétrico que sua única ação
no final do dia fora rir e rir tão alto que cada movimento de seu corpo beirava
a insanidade. O ódio que fervera seu sangue evaporou sua alma na mesma medida.
Naquele dia, Verônica Vasconcelos
Marques jurou a si mesma que sua morte seria feita de fogo e de luzes e que
quando seus olhos, por fim, se fechassem, não haveria pena ou lágrimas em seu
enterro, posto que todos que lá estivessem saberiam de como ela havia feito de
si mesma a estrela mais iluminada do seu céu em decadência. Naquele
dia, verônica decidiu morrer e se tornar uma outra pessoa qualquer.
Cabelos pintados em tons de
vermelho, roupas trocadas, meses de academia e ainda assim ela chorava todas as
noites sem entender porque ainda não se sentia completa, porque ainda desejava
no fundo ser amada por mais que tentasse tantas vezes desistir de si mesma.
Viver, para ela, tornara-se uma prisão da qual ousava buscar uma libertação que
não fosse a mais obvia.
A verdade é que tudo começou como
um efeito placebo: beber e dançar era sua válvula de escape para não lembrar-se
dele nos finais de semana, quando ela se sentia mais sozinha. Contudo, nas
primeiras noites ela não reconheceu o batom vermelho em sua boca ou o vestido
preto decotado que tanto combinava com sua tez morena clara; nunca estivera tão
bonita e jamais tão distante de si mesma.
As luzes da festa a ludibriaram;
bêbada ela descobriu a libertação do que era de fato dançar como se o mundo
inteiro dependesse do caminho trôpego ao qual estava atrelada. Aquela era a mão
do seu destino finalmente imperando, finalmente mostrando-a que seu caos tinha
lugar onde pudesse ser lei, ser ordem; seu lugar de direito na existência: bem
longe do amor, bem longe da significância. Bem ali, na pista de dança, estava a
chave para sua felicidade.
Não que fosse fácil, apesar da
diversão. Houve momentos em que ela quis desistir, seus pés cansados, seu
espírito quebrado quando alguém não a beijava ou noticias distantes do seu
amado chegavam aos seus ouvidos. Afinal, apesar de estar se divertido, tudo
aquilo ainda tinha um sentido: esquecer. Sua liberdade completa adviria somente
do caos, ela sabia, mas era incapaz de se desvencilhar de sua vontade de tentar
de novo.
Dos homens que nesta época a
beijaram, muitos permaneceram em sua vida como amigos, alguns como amantes
corriqueiros, porém não houvera nenhum que com ela partilhasse algo mais que
alguns sussurros na noite que transparecia afetos e um adeus solícito quando o
dia amanhecia. Não porque eles não quisessem, mas porque ela não deixaria que isto a
magoasse, não havia como interromper o curso de sua demanda. Um pedaço dela estava
sempre solto por ai e por mais que custasse caro este pecado, ele era a única
forma de mantê-la sã, a manter viva.
Até que um homem a beijou fora da
pista, tomando dela mais do que qualquer outro havia tomado, dando a ela, mais
do que qualquer outro lhe havia dado. Alguém especial que a via como ninguém
antes a havia visto. Não que Verônica tivesse voltado a ser quem era, ou mesmo
se apaixonado completamente por ele, mas naquelas três semanas que se seguiram,
ela foi dele, literalmente dele e de mais ninguém.
O tempo em que ele segurou sua
mão fora suficiente para que ela largasse todas as amarras que a prendiam ao
seu passado, seu coração cicatrizara e os homens que ainda tinham esperanças em
seu amor, desistiram. Ela nunca esteve tão feliz, seus olhos brilharam, ela
sorria. Pela primeira vez desde que fizera doze anos, e perdera a virgindade,
ela sorria verdadeiramente, liberta da tristeza que tanto a possuía.
O fim não fora trágico, nem
coroado de adeus e lágrimas de sangue, fora apenas um sorriso, uma ciência de
que ambos estavam em lugares diferentes do caminho; talvez um dia seus destinos
se cruzassem de novo, mas não ali, não naquele momento. E com um último
encontro, eles se abraçaram e disseram até logo. Sem se beijar, sem fazer
promessas, sem pedir nada de volta.
Os dias de cão haviam acabado,
sua espera era apenas dos cavalos que prometiam vir nas músicas que ela ouvia
dançando insanamente em sua própria sala até cair ao chão exausta. Seus cabelos
vermelhos mudaram novamente para o preto corriqueiro, seus lábios e rosto, no
entanto, continuavam maquiados, ela brilhava, genuinamente junto as luzes da
cidade que lá em baixo festejavam.
Seu momento favorito, antes da
pista de dança, era ficar sentada num barzinho próximo à beira da colina de
onde o movimento apocalíptico da megalópole era observado em toda sua glória.
Não havia beleza em todo o universo que pudesse suplantar o lampejar das luzes
da cidade num complexo misto anárquico de cores que formavam juntas um
espetáculo único.
Então, entre onze e meia noite,
ela entrava iluminada de si mesma e dançava de olhos fechados, como se o mundo
inteiro fosse acabar sob os pés dela, bêbada, sem se importar com preço da
comanda, afinal, muitas das bebidas que estavam em suas mãos foram pagas por
outros, nunca com promessas, nunca pagas com seu corpo, apenas sua presença, apenas
sua luz, seus beijos e caricias.
Todos a queriam e todos poderiam
tê-la, seu corpo não tinha distinção de ritmos, aceitando em suas curvas tanto
o funk do final das festas, quanto o indie das pistas alternativas; suas roupas
eram sempre diferentes, como se sua identidade fosse tão volúvel quanto seu
humor, às vezes muito fêmea, às vezes como macho e ocasionalmente como um bicho
estranho, vindo do Tártaro ou Olímpo, mandado pelos deuses como um presente ou
maldição.
Aquela altura, muitos foram os
que tentaram dissuadi-la, achando que seu caminho a levaria a autodestruição,
de fato, esta era sua intenção desde o inicio, mas naquele momento, ela estava
completamente livre, fazendo toda aquela estapafúrdia em cair no chão e beijar
os mais bonitos que passassem por puro prazer, sem objetivo.
Aquela altura, ela já estava
ciente que seus sonhos eram vãos e que seu caminho, seu destino, era continuar
vivendo festa após festa, como os hiperbóreos das lendas; naquela parte de sua
vida, ela sabia que, para ela, não haveria felicidade fora da pista de dança.
No fundo, já não mais se sentia
sozinha, porque não precisava mais estar com alguém, tanto que não sentia mais
o ocasional arrependimento no final das festas, raramente havia lágrimas, e até
àquela altura, mesmo a culpa pelos corações que partia foi deixada de lado.
Os poucos que a seguiram,
acompanhando-a fora da boate, não permaneceram muito tempo ao perceber que
apesar de divertida, ela pertencia a uma outra classe de pessoa: inteligente
demais, conhecedora demais, pronta a saber todos os idiomas e ainda assim
dançar todos os ritmos.
Quando estavam em suas vidas,
eles percebiam que seu caminhar era trajado de ocultismos que ela não
demonstrava na balada. A pista de dança era sua religião, a dança, seu ritmo e
era um fato de que sua vida era voltada ao sacerdócio do culto informal a
Lilith, Ishtar e Maria Padilha, mas ainda assim, fora deste momento nos finais
de semana, Verônica ainda rezava a essas deusas, dançando nua ao redor de
fogueiras sob a lua cheia e sua casa tinha cheiro de incenso e almíscar.
Mesmo fora de seus domínios, ela
mesma era um aspecto da deusa: seu lado destruidor, autofágico; Sequer ignorava
isto, estava completamente ciente de seu lugar naquele universo estranho e
efêmero.
Os que ficaram foram apenas
aqueles que já a conheciam, mesmo antes dos seus primeiros passos trôpegos em
festas; restavam também os que a magoaram; agora completamente perdoados,
afinal, ela já não se importava em guardar rancor ou ser vingativa, tudo em sua
vida era passageiro. Ocasionalmente alguns destes tentavam faze-la voltar a sua
antiga forma, completamente sem sucesso.
Cada vez mais bêbada, cada vez
mais extasiada em músicas, felicidade, luzes esmaecidas pela ebriez e,
finalmente, pelos beijos de pessoas cujo nome sequer significam mais do que
sussurros vazios e palavras sem importância, Verônica chegou num ponto tão alto
que a única saída seria se jogar de braços abertos num último amplexo suicida.
E era isso que ela fazia naquele
exato instante, entre tantos copos de vodka e tequila que suas mãos já eram
incapazes de segurar mesmo latas de cerveja. Ninguém sabia, mas aquele gritar
de que ela era feita de titânio, linda como diamantes caindo do céu e que
ninguém dava a ela mais do que doces nadas não eram nada mais do que seu jeito
de dizer que era o fim.
Eram quatro horas da manhã e a chuva
dava seus primeiros indícios de que ia surgir lá fora; mas Verônica ainda
estava alheia a este sinal, seus olhos estavam fechados e ela permanecia dentro
da boate, imersa completamente em seu próprio caráter de divindade alternativa
para a qual ninguém rezava.
Então, já bem no alto de seu
apogeu hiperbóreo, seu salto magistral foi dado; sua consciência deixou-se
expandir violenta, caótica e indiferente a qualquer um que estivesse ao seu
lado.
As luzes explodiram, enquanto
todos passaram a correr assustados, mas não ela; seu coração sabia o que estava
a acontecer: as lâmpadas explodiam, mas suas luzes continuavam, derramando-se
em cores pelo chão negro. A música também continuou a tocar, independentemente
do caos que se instaurara enquanto as garrafas de vodka se quebravam,
misturando-se nas estantes do bar aos outros líquidos que também se derramavam
sozinhos.
Ela dançava, de olhos fechados,
chorando descalça, havia jogado os saltos em algum lugar do qual já nem se
lembrava, não faria sentido procurá-los. Todos foram embora e ela estava sozinha,
incomodada não com os cacos de vidro que feriam seus pés, mas com a ciência de
que a música, as luzes e o fogo de sua alma diminuíam engolidos finalmente pelo
cansaço.
A festa havia chegado ao fim e
Verônica estava só no escuro, tremendo de frio, sozinha, com o coração esmagado
pelo peso de seu próprio existir. Sua maquiagem borrada e o sangue em seus pés
demonstravam o seu status de mortandade, sua epopéia estava se esgotando, com
poucas notas a ainda serem cantadas.
Ela não sabia que o amor podia
doer tanto assim, mas ela mesma era incapaz de acreditar que havia visto
tamanha paixão. Um apaixonar-se tão intenso que a fizera chegar a aquele
momento de profunda escuridão. Quem seguraria em sua mão?
Bêbada demais para andar em linha
reta, ela caminhou para fora; ainda estava escuro e as nuvens de chuva tomavam
completamente o céu precipitando-se no exato momento em que ela abriu a porta
de seu carro. Dirigiu em ziguezague pela estrada, incapaz de controlar a si
mesma e muito menos o sedan vermelho que estava em seu poder.
Ligou o radio, ouvindo o CD da
sua banda favorita mais recente: A is for
Alpine e naquela chuva, ela correu já tão morta por dentro que fora incapaz
de perceber a ironia na letra.
It's ok to feel the
rain on my hands, my love, my enemy …
***
Apenas o som da chuva imperava e
de novo e de novo, Miguel ouvia a mesma música do novo CD de sua banda favorita
mais recente; sentia-se só, morto por dentro, como se parte de sua alma
houvesse explodido em algum lugar daquela colina e sua existência não fosse
mais do que parte do destino de uma outra pessoa.
Desistente da vida, já era o
oitavo carro que passava sem que ele houvesse criado coragem para seguir em
frente com seus planos suicidas. Fechou seus olhos e sentiu a chuva novamente,
respirando de forma a tomar coragem. O nono carro vinha em alta velocidade e
farol alto.
De forma impulsiva, Miguel
lançou-se em direção ao Sedan vermelho que vinha praticamente desgovernado pela
pista, a motorista sequer tentou desviar de tão bêbada que estava. Logo depois
da colisão, o carro não acompanhou a curva, precipitando-se junto à chuva
colina abaixo.
Os primeiros raios de sol
despontaram durante as últimas notas do poema que havia sido a vida do rapaz
estendido exangue no asfalto; sua missão estava completa, seu lugar no universo
havia finalmente feito sentido, no mais, era ali, jogado no asfalto, quase
morto, que o destino o queria.
Ali, jogado no asfalto, já
morrendo, ele viu o brilhar da luz de uma explosão, para não ver mais nada em
seguida.
Ali, no asfalto, a morte o
aceitou como a uma canção e partiu, dançando-o.