quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Oníricos Palácios

Oníricos Palácios
“Amor é o filho mais sensato de Desejo, no entanto, está sempre se esquecendo de quem é. Sozinho, nada faz senão sentar-se e chorar, deixando-se esvair aos poucos, entregando- se aos seus primos mais próximos, os desgarrados filhos de Desespero: Solidão e Monotonia.
Amor é um brilhante jovem iluminado por luzes multicoloridas, mas é frágil demais para viver muito tempo no mundo real. Sem loucura, para tirar-lhe de sua ilusão construída à distância e lhe forçar a dar o primeiro passo,

Amor seria apenas um sonho num palácio esquecido.”

Ele está na chuva. Não que ele esteja chorando, não é a tristeza que o consome, mas a falta de si mesmo. Em sua mão um coração de cristal translúcido brilha sob a cor dos raios distantes. A noite vibra dançante ao seu lado, mas tudo que ele observa são as cinzas de sua própria existência. Ele não se encontra em suas imagens refletidas.
Está tarde, já passa da meia noite e as belas carruagens já se tornaram abóboras. A mágica da Cinderela se perdera, mas todos continuavam freneticamente dançando no baile. Uma boate era uma boate, mesmo passada à hora da magia onde todas as pessoas são belas e estão bem arrumadas.
O cheiro do álcool inebria. Todos dançam. Todos têm um coração partido e um amor oculto que desejam afogar no uísque e nas batidas rítmicas da música. Todos tentam substituir as batidas do coração por uma melodia sem letra.
Entretanto, ele continua na chuva. Perdido, amorfo em sua mente. Apenas uma peça defeituosa no incomensurável relógio da vida. Já passa da décima segunda badalada noturna e descalça Cinderela corre em direção a sua abóbora.
Encharcada, ela não vê o estranho parado na porta da boate. Se visse, não se importaria, mas ousaria sorrir timidamente apenas pela educação inerente de sua natureza. Apenas para desarmá-lo caso ele fosse algum lunático.
Claramente, o rapaz é uma estranha espécie de monstro voraz que tudo deseja. E não é difícil imagina-lo segurando perigosas fechas fatais que levariam senão a morte, a uma loucura ininterrupta e eterna. Ainda assim, Cinderela sorriria, se o notasse.
Desgrenhada, ela chora. Senta-se no meio fio e chora como nunca chorou antes em sua vida. A magia acabou e ela irrompeu em lágrimas cadentes e pulsantes por seu coração esperançoso. Alguma coisa faltava em seu peito, mas ela não conseguia perceber o que.
Sentada, desgrenhada e já sem atrativos, ela se descobre apenas uma garota tola e suburbana. Seu nome é apenas Joana e singularmente ela percebe no meio da chuva que a tal da magia nunca existiu. Ela comprara o vestido, ela fizera o irmão traze-la de carro, mesmo sabendo que ele a buscaria de bicicleta e ela jamais conhecera o príncipe encantado. Ela deixou de acreditar em magia.
Não notado, abandonado na chuva, o estranho continua sem identidade. Apenas um estranho no meio da chuva, cabisbaixo junto a uma moça que ele também não notara. Sentou-se, virtualmente invisível e cego ao lado dela, antes sequer notar sua presença.
Joana, que agora já não mais se achava Cinderela, foi a primeira a notar a presença estranha ao seu lado. Fitou longamente aqueles olhos cintilantes e em seu coração as multicoloridas engrenagens da magia passaram a trabalhar como nunca antes trabalharam. Ela o beijou longamente, antes que ele se apercebesse dela. Sorriu e correu de volta a boate com seu estonteante penteado e seu magnífico vestido de cetim.
O rapaz demorou a perceber o beijo e apenas deu-se por conta da garota quando ela correu em direção a porta da boate. Com o reflexo dos raios, ela parecia calçar sapatos de cristal.
Levantou-se reticente do meio fio, ainda tentando absorver aquela imagem e aquele gosto salgado do beijo. Havia algo que ele deixara escapar, mas ainda não conseguia identificar exatamente o que.
Seu reflexo no carro o fitou longamente, com um fantasma de um sorriso. Só então ele percebeu quem ele era e o tal fantasma voltou à vida. A própria chuva ganhara uma conotação diferente e ele assobiou uma canção enquanto entrava na boate, cujo nome significava A Dourada.
Raindrops keep falling on my head… Ele cantarolava enquanto passou despercebido pelo segurança. O alto, forte e atlético guarda da porta flertava com uma loira miúda, de não mais de um metro e cinqüenta: uma boneca animada. O estranho, que agora se conhecia muito bem não se surpreendeu.
Todos ainda dançavam ritmados sob a dança dos corações partidos e já altos de bebida, mal se lembravam de suas dores e de quem eram. Até mesmo o príncipe que nem sequer virou-se de sua vodca para fitar Cinderela.
Onde está o amor? Perguntou Fergie em sua música habilmente escolhida pelo DJ. Este nutria um secreto sentimento pelo barman que gratuitamente oferecia um copo de vinho ao estranho que acabara de entrar na boate.
O barman fitava os olhos do rapaz como se não houvesse nada mais belo, nada mais desejável, nada melhor no mundo além daqueles coloridos olhos de arco-íris. A verdade era que realmente não havia. Onde está o amor? Perguntou Fergie.
— Eu estou aqui. — Respondeu o estranho. — Eu sempre estive aqui.
Ele fechou os olhos e apesar de sentir-se molhado e de possuir um aspecto doentio, ele sorriu. Segurou firmemente em sua mão o coração multicolorido, puxou as amarras que o prendiam ao seu pescoço e o lançou ao chão com toda força que havia.
As cores vibrantes da boate pareciam opacas e sem vida em comparação com as dançantes e multicoloridas cores que dançavam ao redor do estranho chamado Amor, cujos olhos possuíam a cor de supernovas brilhantes e diamantes lapidados com luzes de todos os tons prismáticos.
Seus cabelos loiros enxugaram e ele parecia trajado com brilhantes sedas dos tempos antigos, quando os deuses verdadeiros caminhavam com a humanidade em harmonia, ele sorriu e brilhou com o calor de todos os corações que dançavam.
A luz de seu coração multicolorido espalhou-se ao redor de cada ser vivente naquela boate. Iluminar o local era apenas a mínima coisa que a tal essência poderosa fazia, modifica-lo e torna-lo um amplo salão de um castelo em um baile fora a coisa mais irrisória que ela podia fazer. Dada à mudança que se operou em cada um dos corações ali presentes, as mudanças do ambiente mal foram percebidas.
O escritor e seu namorado com uma caveira no pescoço deram-se as mãos e dançaram insólitos diante de todos que atordoavam ainda estavam, eles foram os primeiros a dançar a nova dança, porque jamais dançaram a dança dos corações partidos. Aline, a tal caveira branca e chamativa, sorria levemente indecorosa com sua natureza. Naquela noite ela não se importou em sorrir.
O DJ, percebeu já não mais ser necessário, pois a musica vinha daquele lugar de onde vem os sonhos, inatingível na maioria das vezes em que estamos despertos, de todo lugar e de lugar nenhum ao mesmo tempo.  Desceu de onde quer que estava, posto que sua bancada naquele mundo não existia e pediu uma dança ao barman que o esperava. Já não eram mais secretos os sentimentos que cada um dos dois nutria.
Casais juntaram-se ao som da musica que para cada um era diferente. Não era mais a vontade de substituir as batidas do coração por outras batidas, a musica que agora tocava era de um tom superior, como se ela pudesse entender a alma de cada um, de um jeito que nem mesmo eles eram capazes de entender.
Amor vibrou ao descobrir-se em todo lugar e sorriu alegremente. Deu alguns passos desventurados e girou como um maluco, pois era livre como um quasar errante pulsando pelo universo.
A dama de farrapos multicores sorria desvairada. Seus olhos heterocromáticos, azul e verde possuíam um brilho inocente, de uma alegria sem par no universo, uma alegria descomedida, despretensiosa e sem objetivo. Seus cabelos em tons loiros, azuis e vermelhos dançavam desgrenhados suas próprias danças, eles reluziam dando fulgor a face branca maquiada em tons rosados da jovem mulher.
Apesar de todo aspecto desleixado, ela era linda e ao vê-la Amor brilhou um tanto mais intensamente. Sorrindo com infantilidade e chamando-a para dançar sem tato ou jeito.
Loucura e Amor juntos dançavam apaixonadamente.

Sob luzes vivazes no cubículo negro, o príncipe ébrio maldizia a própria sorte, ainda bebendo vodka, uísque e tequila. Em sua cegueira, ele não percebeu o brilho opulente que levara a todos para uma dimensão celeste, pura e bela. Sozinho com sua bebida, ele ainda permanecia em seu inferno chamado desespero.
Cinderela não mostrou sinais de estar aborrecida. No escuro, sem musica alguma ela fitou seu príncipe com olhar meigo e um sorriso sincero e brilhante. Sua voz suave e aveludada precisava ser ouvida para que ela fosse notada.
— Danilo? — Ela disse temerosa em não ser ouvida.
Ele ouviu sua voz como um sussurro por detrás do mar de vodka, mas ainda assim a ouviu e foi suficiente para virar-se e vê-la. Vestida daquela forma, Joana mostrava-se uma figura onírica, como um sonho ou uma princesa dos contos de fada aos quais ele nunca dera importância.
No chão, ele percebera uma estranha jóia translúcida que ao seu toque adquiriu estranhas cores dançantes. Mesmo não sabendo como ela fora parar ali, ele sentiu aquele coração quente em sua mão como se fosse dele; e cambaleante, cheirando fortemente a álcool ele aproximou-se da onírica imagem que era Joana.
De bom grado, ela aceitou o presente deixando que desajeitado ele o colocasse em seu pescoço, singularmente não havia repulsa em seus modos, apesar de estar sendo cortejada por um bêbado, aquele era seu príncipe e nada nele estava errado.
De olhos fechados, ambos se beijaram e a luz que se seguiu da jóia, iluminada pelo calor dos corações de ambos, invadiu até mesmo a escuridão de suas pálpebras fechadas. No meio do salão, o belo príncipe bêbado, agora apenas de amor por Cinderela, abriu os olhos, reconhecendo ao seu redor o próprio palácio iluminado por luzes de sonho. Sorriu para aquela que seria sua esposa e a mãe de seus filhos.
Em um mundo sem magia chovia intensamente, mas ali as luzes deixaram-se esmaecer para que por trás das janelas a gigantesca lua jorrasse sua luz prateada ao redor dos dois amantes.
Cinderela quedou sua face no forte ombro de seu príncipe e tomados pela prateada claridade, dançaram como Amor e Loucura: apaixonadamente.