sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A Estrada No Fim de Tudo

Como a maioria de vocês deve saber, estarei lançando na semana que vem um ebook promocional com o primeiro conto do meu novo projeto: Os Corvos; mas para deixar vocês já com um gostinho, aqui disponibilizo o primeiro capitulo da obra e um vídeo sobre o conto feito para o Egoísmo Pitagórico, meu canal do youtube.

Que a morte sempre ouçam suas súplicas,
Thiago Félix



***
Primeira Parte
O senhor do meu sofrimento

Depois de morta, ficarás um dia estendida, sem que, para ninguém, reste qualquer lembrança tua, pois nunca foram tuas as rosas da Piéria.
Desconhecida, então, mesmo no Hades, tua alma errará entre as sombras, as obscuras sombras esquecidas dos mortos…”
(Safo, fragmento número 63)
F


  azia frio e o frio que fazia não era essa que a carne nos conforta, também pudera, meu lugar era bem longe das caldeiras, quase no fim do vagão. O meu assento era um par de irônicos números que sugeriam uma lembrança do que eu abandonara, proporcionando um aviso do que estava por vir: trinta e três, a idade em que cristo fora crucificado, morto e sepultado.
O número perfeito para conduzir um ateu até os mais profundos abismos circulares do inferno. Um número talvez perfeito demais para que justamente eu o obtivesse, mas talvez eu fosse realmente a pessoa certa, aquela que mesmo na ansiedade prestaria atenção nesse detalhe tão ínfimo que passaria despercebido pela maioria.
O trem para o inferno é lento, arrastando-se em ansiedade e temor, como se o passar dos minutos pudessem atravessar os milênios sem sequer chegar a um destino, mas havia um destino, isso era uma certeza eminente. Vagar a esmo pela eternidade, com a crescente duvida de quais seriam meus tormentos não era o bastante, não era nem sequer perto de uma punição adequada.
Não para mim, eu sequer conseguia pensar no sofrimento que me seria infringido; havia uma paz mórbida em meu coração que o ambiente teimava em não querer perturbar. Eu estava pronto, esse era o problema, eu estava pronto para aceitar o meu destino e não havia nada mais que pudesse me fazer tremer diante dessa perspectiva.
Era de se esperar que o trem para a danação eterna estivesse abarrotado de pessoas a gritar e a chorar por perdão, mas a realidade era completamente diferente do que qualquer um pudesse imaginar. Vez por outra, havia um gemido baixo de tristeza, o som baixinho de um choro, tímido demais para se tornar maior que um sussurro: mas era só e deveras momentâneo para sequer incomodar.
Em verdade, aquilo não surpreendia: as cadeiras ocupadas eram poucas e espaçadas, não havia gente suficiente ali para uma grande comoção. Todos se mantinham calados, impassíveis, extremamente solitários e alheios a quem mais estivesse perto.
Nem mesmo a ruiva moça que chorava era digna da atenção de quaisquer dos passageiros, egoísmo é uma característica comum a todos os condenados, eu não estava sendo diferente a observando com minha indiferença característica daqueles que já perderam tudo.
A númerologia parecia brincar com sua significância ou talvez aquele fosse o modo da minha mente trabalhar ante a ociosidade das horas que se passaram desde que eu havia morrido. De qualquer modo, em condenados éramos cinco, um número bruxólico, digno de um sabá e, talvez, se estivéssemos vivos, poderíamos nos juntar em um circulo e fazer uma invocação ao anfitrião que nos esperava.
O sexto passageiro, ciente do número maldito que possuía, era um sedutor demônio que guardava a porta traseira enquanto fumava. Seu cigarro era inacabável, avermelhando-se junto com seus olhos castanhos a cada baforada. Vendo-o, percebi porque o pecado era tão atraente: por detrás daquela sugestiva camiseta colada, um torço de alabastro sugeria-se voluptuoso e eu já em decadência não ousaria hesitar se ele me chamasse para decair um pouco mais no acarpetado chão do trem.
Ele me sorriu, ciente dos pecados que passavam sorrateiros pela minha cabeça. Sua língua, extremamente desejosa lambeu vagarosamente seus rubros lábios e eu a senti como se tocasse os meus. Seu olhar indagou por permissão se voltado para o último dos presentes, erguido portentoso e magnificamente impassível na porta da frente, este, porém, moveu lentamente sua cabeça em negativa. E o sorriso triste e decepcionado que o demônio me lançou quase partiu meu coração, sua mão, porém, discretamente fechou-se e eu senti seu rígido e prazeroso toque num único efêmero momento.
Meus olhos então se encontraram naquele que me negara o prazer voluptuoso do pecado: o sétimo passageiro, portador do número que representa a divindade; como tal, ele era parte da luz que povoa o mundo.
Austero com sua espada flamejante, guardando a porta que levava ao maquinista, estava um anjo. Sua alva pele brilhava cintilante como se possuísse o sol em si mesma; parecendo ainda mais brilhante que sua dourada armadura.
Seus olhos continham os céus, seus lábios o fogo, seus cabelos o sol. Sua beleza não era dotada de metáforas, ele era, de fato, forjado das partes mais grandiosas de toda criação. Seu corpo era o ápice do gênesis e eu não podia deixar de perceber sua semelhança com o demônio, contudo, ele era algo maior, magnífico. Sua beleza não era apática, fútil e voluptuosa, era, em verdade, carregada de sabedoria, pureza, beleza e significância.
Vê-lo não significava adora-lo ou mesmo o desejar, vê-lo era como o amar e sentir dentro do peito, o desejo intrínseco de ser como ele, para um dia ver em seus olhos a admiração.
Entretanto, tudo que eu via naquele céu era decepção e repulsa. Nunca antes eu me sentira tão vulgar, tão baixo, tão mesquinho e pela primeira vez, dentro do trem que me levaria ao inferno, eu senti o peso de ser punido.
Nenhuma dor era mais poderosa do que aquele olhar.
Então, para evitá-lo, pela primeira vez eu voltei meu olhar a algo que não fosse minhas próprias divagações: a ruiva garota que chorava. Esta era de um branco róseo tal qual uma matrona de cera, seus cabelos eram de um vermelho acobreado sem viço, mortos como seus verdes olhos também pareciam estar.
Levantei-me, tentando caminhar em sua direção. O ar era denso como o peso da culpa e cada um de meus passos mais se assemelharam ao caminho para o calvário do que a uma simples caminhada. Ela era incapaz de perceber minha presença, absorta em seus próprios pensamentos.
A toquei gentilmente e sorri, o mais cálido e simpático que pude, mas essa é uma atitude incomum no inferno e mesmo estando apenas em seu caminho, parecia um erro agir daquela maneira. Ela olhou nos meus olhos perdida e eu notei que ela havia morrido jovem, jovem demais para ainda estar deveras assustada com tudo aquilo.
Eu não. Eu já havia aceitado a morte, assim como aceitei a solidão enquanto estava vivo. Também pudera, apesar de ali aparentar ter não mais que vinte e poucos anos, quando meu coração finalmente parou por puro cansaço, seis décadas já haviam se passado desde que eu cometera o pecado que me trouxera até aqui.
Sentei-me ao seu lado, sem fazer pergunta alguma. O motivo de sua condenação era obvia: sangue jazia coagulado pelo meio de suas pernas, indicando não só a forma como morrera, mas também o motivo por ela estar aqui, chorando feito uma criança.
— Você estava grávida de quantos meses? —  perguntei.
— Seis —  seus olhos exprimiam incredulidade, como quem esperava gritos ao invés de perguntas. — Era tarde demais para que algum remédio fizesse efeito. Meus pais tentaram me dissuadir da idéia, mas Carlos havia me largado e eu precisava me vingar dele de alguma forma. Não sei por que eu cometi tamanha burrice, eu sou uma tola, uma idiota! — ela começou a chorar copiosamente, chamando atenção dos sobrenaturais seres que nos vigiavam, mas não o suficiente para que qualquer um deles esboçasse alguma reação. — Eu imitei a idéia de um seriado, coloquei um ferro em mim mesma, esperando assim que o bebe morresse, mas acabei pegando uma infecção e morrendo. Acho que foi melhor assim, deve ter sido castigo de Deus pelo o que eu fiz.
— O castigo está apenas começando. — estranhamente aquilo pareceu confortá-la, mas eu a entendia. Eu também sentia como se dor alguma pudesse me redimir. — Então é tolice começar a chorar agora, quando tudo que temos para sofrer é pela espera.
— Eu não estou chorando por mim. Eu estou chorando pelo meu bebe. Ele merecia ter uma vida boa. Era um menino, é estranho, mas agora eu não consigo parar de imaginar como teria sido a infância dele: se ele seria um bom garoto, se ele jogaria futebol bem, se ele teria muitos amigos. Eu daria tudo para saber como seriam as namoradinhas dele.
— Ou os namoradinhos — eu disse, sem me dar conta de que aquilo não era o tipo de coisa a se dizer a uma mãe, mesmo uma que matara o próprio filho.
— Eu não me importaria se ele fosse gay. Eu odiava os gays quando estava viva, mas acho que era tudo por causa da religião e porque o meu Carlos me deixou por um cara. Agora que eu estou morta percebo o quão idiota foi a atitude dele, mas não porque ele gostava de homens e sim porque ele era um canalha, não importando sua sexualidade. É estranho o quanto a gente cresce quando se despe de tudo aquilo que deveria ser.
— Então seu namorado era narniano? Quero dizer… ele estava no armário? Não o culpe, é difícil viver na situação dele, sem se aceitar. O que ele fez foi errado, mas ele estava apenas confuso, assim como você também estava quando fez o que fez. É duro viver num mundo onde você mesmo não se aceita.
— Então você acha que tudo que eu estava era confusa? — Ela disse, incrédula.
— Ouça, eu mesmo já me apaixonei e também fui jovem. Um coração partido faz a gente cometer uma série de coisas que nunca faríamos se estivéssemos bem. O que você fez foi estupidez, mas você tinha acabado de ser largada, estava grávida, tinha quantos? Dezesseis anos?
— Quinze.
— Está vendo? Você era jovem, estava em desespero. Fez a primeira coisa que passou em sua cabeça. Você me lembra Medeia, uma personagem mitológica grega. Todo mundo lembra dela como a mulher mais atroz de toda a literatura clássica por matar os próprios filhos para se vingar do marido, mas pouca gente lembra o porquê.
— E porque foi?
— Porque ela fez tudo para o marido. Entregou-lhe o velocino de ouro: o grande tesouro de seu reino. Matou seu pai e seu irmão para protegê-lo e no final das contas, ele a deixou para casar-se com uma princesa mais jovem.
— E qual foi o fim dela? — disse a inocente moça, talvez esperando por alguma redenção no final daquela história. Infelizmente, como são as tragédias, redenção era algo tão longe quanto o céu era para nós dois.
— Ela morreu sozinha, deixada abandonada em uma ilha, amaldiçoada pelos homens e pelos deuses.
A jovem calou-se, virando-se por um momento a ficar a janela sem, no entanto, conseguir ver nada. O breu do lado de fora ainda era total. Ela pareceu digerir toda aquela informação e talvez calcular as conseqüências de seus próprios atos, por fim, depois do que me pareceu meia hora, mas poderia ter sido um quarto de século , ela sorriu em minha direção e disse simplesmente:
— É justo.
— Talvez seja.
— Mas então… você me disse que foi apaixonado uma vez. O que aconteceu?
— Ele morreu por minha culpa. — disse cabisbaixo, demonstrando que ainda não me sentia forte o suficiente para falar sobre aquilo, mesmo tendo se passado tanto tempo.
— Qual era o nome dele?
— Henrique, eu li em seu santinho de morte, ele nunca me disse e é por eu nunca ter tido a coragem de perguntar que agora eu estou aqui.
— Meu avó sempre dizia — ela sorriu ao lembrar-se de sua vida anterior —  que o diabo mora nos detalhes e o inferno eram todas as coisas não ditas que não pareciam ter importância.
— É.
Percebi que aquele era o momento perfeito para que eu saísse dali. Não importava o quanto minha resposta parecera vaga, eu não queria falar sobre aquilo. Não depois de todos os anos de tristeza que isso causara ao meu coração, destruindo-me por dentro, arrasando todos os meus sonhos, até que por fim eu morresse sozinho, após dois casamentos, deixando uma vida bem sucedida — e vazia. — para trás.
Algo queimava em meu estomago, uma sensação amarga que subia por minha garganta e me causava calafrios. Lágrimas, eu as conhecia de tempos imemoriais, de quanto o céu ainda era azul e o inferno era apenas uma vaga idéia que os cristãos inventaram para se sentirem privilegiados.
De alguma forma, tais lágrimas fizeram-me me sentir despido, fraco e aquilo me revoltou. Não era hora para ceder à depressão que tornara a minha vida um inferno morno tão insuportável quanto era possível.
Caminhei então pesadamente, ignorando o impávido e pesado olhar que o anjo empregava às minhas costas. Em toda minha vida eu tentara me redimir de pecados que existia apenas em minha cabeça, eu sabia exatamente porque estava sendo condenado: eu estava sendo condenado por nunca ter tentando, por ter sido temeroso, por ter sido um covarde.
Naquele momento, entreguei-me nas mãos do desespero, da raiva e da repulsa por mim mesmo e o demônio? Este me devolveu o beijo com volúpia, mas sem poderes sobrenaturais, apenas fortes mãos tateando minhas costas e seus lábios percorrendo meu pescoço, queixo e lábios, de novo, de novo e de novo, não necessariamente nessa ordem.
Eu havia decaído a um nível que já não havia mais permissões a serem pedidas, nos enroscamos feito serpentes nos corpos um do outro, rasgando as roupas que nos cobriam e juntos experimentamos todas as vertentes da luxuria ali mesmo, sem se importar com aqueles que inevitavelmente nos viam.
Asmodeus, esse era o nome daquele com quem eu cometia concupiscências no rubro chão acarpetado, beijou-me novamente no pescoço, descendo sua língua pelo meu torso, ao encontro dos róseos mamilos que eu sustinha rijos, delineados pelos inúmeros anos em que eu freqüentara a academia.
Mordico-os lentamente, depois com mais força, levando-me a um prazer nunca antes sentido em momento algum de minha vida, mas aquele momento estava apenas começando e quanto mais sua avermelhada boca de veludo descia pela minha barriga em direções mais sensíveis ao prazer, mais minha respiração entrecortada se tornava pesada e minhas fortes pernas prendiam seu corpo com mais força ao meu.
Terminando de me enrijecer e fazendo-me ter espasmos involuntários de desejo ele pousou uma forte mão em meu peito e subiu em meu ventre, executando com maestria movimentos rítmicos.
No entanto, aquele momento que em vida parecia explodir em seu ápice em não mais do que dez minutos, em morte não havia limites, levando-me para além do orgasmo, para um mundo em que nunca estive e — sabia — nunca estaria de novo depois que o corpo de Asmodeus por fim me abandonasse.
Ele, é claro, não fazia quaisquer menções de que desejava fazer aquilo, largando meu ventre e correndo novamente com sua boca pelo meu corpo em direção ao meu pescoço, mordendo-o com desejo, puxando meu corpo para perto do meu pela minha cintura. Subiu um pouco mais para morder a ponta de minha orelha e depois passando lentamente sua língua por ela.
Meu ponto fraco. Ali, naquele momento, num raro momento de iniciativa empurrei-o e subi em seu corpo, mordendo cada parte de seu abdômen duríssimo, subindo por seu peito forte e seus ombros largos até seus lábios que eu tanto desejava provar novamente.
Seus lábios tinham gosto de verão e jambo tirado do pé ou tinham gosto de chuva durante uma tempestade. De fato, ele tinha o gosto de todos os amantes que já tive e aqueles que eu deveria ter tido, mas que o destino tomou de mim sem que eu percebesse.
Então, sem dar aviso, ele virou-me apertou com força minhas nádegas, invadindo-as totalmente sem pudor, tomando meu corpo como sendo seu, uma, duas, três, duzentas e quarenta e duas vezes, até por fim saciar sua vontade e dar-se para mim, para que então eu saciasse a minha.
Saciamo-nos dos corpos um do outro, como Adão e Lilith no paraíso, bem antes de Eva e o casamento e até mesmo o romantismo surgirem. Entregamos-nos completamente a luxúria, mas isso me denunciava mais do que qualquer outra coisa, afinal de contas, ele mergulhou em sua própria natureza e eu inadvertidamente me afoguei ao segui-lo sôfrego e sedento.
Fechei meus olhos por um instante e um breve lampejo de arrependimento invadiu meu rosto ruborizado — agora completamente consciente dos olhos que me julgavam — pesadas lágrimas rolaram pela minha face e eu desejei nunca mais ter de abrir os meus novamente.
No entanto, enquanto eu estava lá, com frio, sozinho, nu e completamente entregue a auto-piedade, um beijo invadiu o muro de minha lamentação e este era completamente diferente do primeiro.
Os lábios eram quentes como o sol e beija-los era como sentir o nascer do dia no meu coração. Suas mãos traziam todo conforto que eu precisava e quando eu abri os olhos, encarando o anjo que me salvara da autodepreciação, ele parou de me beijar e sorriu amavelmente, deitando-se ao meu lado.
Encostei minha cabeça em seu delicado peito — agora nu. — percebendo a maciez sobrenatural de sua pele, confortável como a campina em meus sonhos, na qual inúmeras vezes eu me deitei com o rapaz por quem eu de certa forma de apaixonara — mas jamais perguntara o nome.
 Fechei meus olhos novamente, resgatando aquele sonho que tantas vezes me invadira na juventude e enquanto Haniel, o anjo, segurava minha mão eu me senti novamente ali, sob a bruxelante luz do luar, embaixo da fina garoa, dormindo junto aquele que eu amava.
No entanto, fora apenas um sonho e aquele momento fora apenas um pequeno lampejo dele. Quando novamente abri os olhos, estava novamente vestido com as mesmas roupas que o demônio rasgara.
— Você experimentou coisas demais na vida Miguel para se deixar levar por puro desejo. Você por acaso não se lembra como é a sensação de se apaixonar, puramente pelo desejo de se apaixonar? — Ele disse, beijando-me de maneira suave; aquele beijo fez com que eu me lembrasse.
Cai em lágrimas, ainda arrependido de ter descido a um ponto ainda mais baixo do que eu havia descido quando vivo. Abracei-o, buscando em seus braços o conforto que me faltou em toda a vida, mas mesmo a luz da qual ele era feito não era suficiente… nem mesmo em seus portentosos braços eu havia encontrado a paz.
Talvez não houvesse paz para mim, afinal de contas, eu estava indo para o inferno carregado pela minha culpa. Anjo nenhum podia me dar àquilo que eu não merecia. O céu estava carregado de justiça, eu sabia.
— O céu está carregado de justiça —  ele me disse depois que eu me acalmei, com sua voz suave como o vento de primavera — no entanto, justiça significa dar o necessário e fazer o que é preciso. E às vezes, isso traz conseqüências inesperadas.
Encarei-o sem entender a profundeza do significado de suas palavras, ele sorriu novamente com aquele sorriso capaz de fazer o mundo parar de girar se assim o desejasse.
— Você foi o mais baixo que estava disposto a ir para se martirizar. É hora, no entanto, de parar de sentir pena de si mesmo. Aqui ainda não é o inferno e você ainda tem tempo de lá entregar-se a sua culpa, mas há seu tempo. Agora, você está atrasado para uma coisa.
Ele tomou-me pelo braço, me levando corredor à frente passando por cada um dos condenados que agora me assistiam de fato curiosos com a sina que eu cumpria. Éramos ao todo cinco: a jovem garota que abortara, o velho negro que carregava em suas mãos os dados nos quais era viciado, a católica fervorosa detentora do olhar mais acusativo que eu já vira em minha vida, eu com meu coração culpado e o rapaz de não mais do que vinte anos com os pulsos marcados, cuja aparência me era vagamente familiar.
Este sorriu ao me ver, num misto de lascívia e afeto que me fizeram imediatamente reconhece-lo. Afinal, ele era meu anjo e meu demônio.  Ele era o meu céu, salvando-me do caos que fora minha adolescência, a minha perdição, o motivo pelo qual eu estava ali.
Ele era alguém cujo nome eu não devia saber, mas cujos olhos eu reconheceria até no inferno. Então, olhando-me como um velho amigo, pela segunda vez em toda minha vida eu escutara sua voz, desta vez a me dizer:
— Você demorou, estava começando a pensar que você não viria!
Como se eu tivesse escolha.