Como a maioria de vocês deve saber, estarei lançando na
semana que vem um ebook promocional com o primeiro conto do meu novo projeto:
Os Corvos; mas para deixar vocês já com um gostinho, aqui disponibilizo o
primeiro capitulo da obra e um vídeo sobre o conto feito para o Egoísmo Pitagórico,
meu canal do youtube.
Que a morte sempre ouçam
suas súplicas,
Thiago Félix
***
Primeira Parte
O senhor do meu
sofrimento
“Depois de morta, ficarás um dia estendida, sem que, para
ninguém, reste qualquer lembrança tua, pois nunca foram tuas as rosas da
Piéria.
Desconhecida, então, mesmo no Hades, tua alma errará entre
as sombras, as obscuras sombras esquecidas dos mortos…”
(Safo, fragmento número 63)
F
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azia frio e o frio que fazia não era essa
que a carne nos conforta, também pudera, meu lugar era bem longe das caldeiras,
quase no fim do vagão. O meu assento era um par de irônicos números que
sugeriam uma lembrança do que eu abandonara, proporcionando um aviso do que
estava por vir: trinta e três, a idade em que cristo fora crucificado, morto e
sepultado.
O número perfeito
para conduzir um ateu até os mais profundos abismos circulares do inferno. Um
número talvez perfeito demais para que justamente eu o obtivesse, mas talvez eu
fosse realmente a pessoa certa, aquela que mesmo na ansiedade prestaria atenção
nesse detalhe tão ínfimo que passaria despercebido pela maioria.
O trem para o inferno é lento, arrastando-se em ansiedade e temor, como se o passar dos minutos pudessem atravessar os milênios sem sequer chegar a um destino, mas havia um destino, isso era uma certeza eminente. Vagar a esmo pela eternidade, com a crescente duvida de quais seriam meus tormentos não era o bastante, não era nem sequer perto de uma punição adequada.
Não para mim, eu
sequer conseguia pensar no sofrimento que me seria infringido; havia uma paz
mórbida em meu coração que o ambiente teimava em não querer perturbar. Eu
estava pronto, esse era o problema, eu estava pronto para aceitar o meu destino
e não havia nada mais que pudesse me fazer tremer diante dessa perspectiva.
Era de se esperar
que o trem para a danação eterna estivesse abarrotado de pessoas a gritar e a
chorar por perdão, mas a realidade era completamente diferente do que qualquer
um pudesse imaginar. Vez por outra, havia um gemido baixo de tristeza, o som
baixinho de um choro, tímido demais para se tornar maior que um sussurro: mas
era só e deveras momentâneo para sequer incomodar.
Em verdade,
aquilo não surpreendia: as cadeiras ocupadas eram poucas e espaçadas, não havia
gente suficiente ali para uma grande comoção. Todos se mantinham calados,
impassíveis, extremamente solitários e alheios a quem mais estivesse perto.
Nem mesmo a ruiva
moça que chorava era digna da atenção de quaisquer dos passageiros, egoísmo é
uma característica comum a todos os condenados, eu não estava sendo diferente a
observando com minha indiferença característica daqueles que já perderam tudo.
A númerologia
parecia brincar com sua significância ou talvez aquele fosse o modo da minha
mente trabalhar ante a ociosidade das horas que se passaram desde que eu havia
morrido. De qualquer modo, em condenados éramos cinco, um número bruxólico,
digno de um sabá e, talvez, se estivéssemos vivos, poderíamos nos juntar em um
circulo e fazer uma invocação ao anfitrião que nos esperava.
O sexto
passageiro, ciente do número maldito que possuía, era um sedutor demônio que
guardava a porta traseira enquanto fumava. Seu cigarro era inacabável,
avermelhando-se junto com seus olhos castanhos a cada baforada. Vendo-o,
percebi porque o pecado era tão atraente: por detrás daquela sugestiva camiseta
colada, um torço de alabastro sugeria-se voluptuoso e eu já em decadência não
ousaria hesitar se ele me chamasse para decair um pouco mais no acarpetado chão
do trem.
Ele me sorriu,
ciente dos pecados que passavam sorrateiros pela minha cabeça. Sua língua,
extremamente desejosa lambeu vagarosamente seus rubros lábios e eu a senti como
se tocasse os meus. Seu olhar indagou por permissão se voltado para o último
dos presentes, erguido portentoso e magnificamente impassível na porta da
frente, este, porém, moveu lentamente sua cabeça em negativa. E o sorriso
triste e decepcionado que o demônio me lançou quase partiu meu coração, sua
mão, porém, discretamente fechou-se e eu senti seu rígido e prazeroso toque num
único efêmero momento.
Meus olhos então
se encontraram naquele que me negara o prazer voluptuoso do pecado: o sétimo
passageiro, portador do número que representa a divindade; como tal, ele era
parte da luz que povoa o mundo.
Austero com sua
espada flamejante, guardando a porta que levava ao maquinista, estava um anjo.
Sua alva pele brilhava cintilante como se possuísse o sol em si mesma;
parecendo ainda mais brilhante que sua dourada armadura.
Seus olhos
continham os céus, seus lábios o fogo, seus cabelos o sol. Sua beleza não era
dotada de metáforas, ele era, de fato, forjado das partes mais grandiosas de
toda criação. Seu corpo era o ápice do gênesis e eu não podia deixar de
perceber sua semelhança com o demônio, contudo, ele era algo maior, magnífico.
Sua beleza não era apática, fútil e voluptuosa, era, em verdade, carregada de
sabedoria, pureza, beleza e significância.
Vê-lo não
significava adora-lo ou mesmo o desejar, vê-lo era como o amar e sentir dentro
do peito, o desejo intrínseco de ser como ele, para um dia ver em seus olhos a
admiração.
Entretanto, tudo
que eu via naquele céu era decepção e repulsa. Nunca antes eu me sentira tão
vulgar, tão baixo, tão mesquinho e pela primeira vez, dentro do trem que me
levaria ao inferno, eu senti o peso de ser punido.
Nenhuma dor era
mais poderosa do que aquele olhar.
Então, para
evitá-lo, pela primeira vez eu voltei meu olhar a algo que não fosse minhas
próprias divagações: a ruiva garota que chorava. Esta era de um branco róseo
tal qual uma matrona de cera, seus cabelos eram de um vermelho acobreado sem
viço, mortos como seus verdes olhos também pareciam estar.
Levantei-me,
tentando caminhar em sua direção. O ar era denso como o peso da culpa e cada um
de meus passos mais se assemelharam ao caminho para o calvário do que a uma
simples caminhada. Ela era incapaz de perceber minha presença, absorta em seus
próprios pensamentos.
A toquei
gentilmente e sorri, o mais cálido e simpático que pude, mas essa é uma atitude
incomum no inferno e mesmo estando apenas em seu caminho, parecia um erro agir
daquela maneira. Ela olhou nos meus olhos perdida e eu notei que ela havia
morrido jovem, jovem demais para ainda estar deveras assustada com tudo aquilo.
Eu não. Eu já
havia aceitado a morte, assim como aceitei a solidão enquanto estava vivo.
Também pudera, apesar de ali aparentar ter não mais que vinte e poucos anos,
quando meu coração finalmente parou por puro cansaço, seis décadas já haviam se
passado desde que eu cometera o pecado que me trouxera até aqui.
Sentei-me ao seu
lado, sem fazer pergunta alguma. O motivo de sua condenação era obvia: sangue
jazia coagulado pelo meio de suas pernas, indicando não só a forma como
morrera, mas também o motivo por ela estar aqui, chorando feito uma criança.
— Você estava
grávida de quantos meses? — perguntei.
— Seis — seus olhos exprimiam incredulidade, como quem
esperava gritos ao invés de perguntas. — Era tarde demais para que algum
remédio fizesse efeito. Meus pais tentaram me dissuadir da idéia, mas Carlos
havia me largado e eu precisava me vingar dele de alguma forma. Não sei por que
eu cometi tamanha burrice, eu sou uma tola, uma idiota! — ela começou a chorar
copiosamente, chamando atenção dos sobrenaturais seres que nos vigiavam, mas
não o suficiente para que qualquer um deles esboçasse alguma reação. — Eu
imitei a idéia de um seriado, coloquei um ferro em mim mesma, esperando assim
que o bebe morresse, mas acabei pegando uma infecção e morrendo. Acho que foi
melhor assim, deve ter sido castigo de Deus pelo o que eu fiz.
— O castigo está
apenas começando. — estranhamente aquilo pareceu confortá-la, mas eu a
entendia. Eu também sentia como se dor alguma pudesse me redimir. — Então é
tolice começar a chorar agora, quando tudo que temos para sofrer é pela espera.
— Eu não estou
chorando por mim. Eu estou chorando pelo meu bebe. Ele merecia ter uma vida
boa. Era um menino, é estranho, mas agora eu não consigo parar de imaginar como
teria sido a infância dele: se ele seria um bom garoto, se ele jogaria futebol
bem, se ele teria muitos amigos. Eu daria tudo para saber como seriam as
namoradinhas dele.
— Ou os
namoradinhos — eu disse, sem me dar conta de que aquilo não era o tipo de coisa
a se dizer a uma mãe, mesmo uma que matara o próprio filho.
— Eu não me
importaria se ele fosse gay. Eu odiava os gays quando estava viva, mas acho que
era tudo por causa da religião e porque o meu Carlos me deixou por um cara.
Agora que eu estou morta percebo o quão idiota foi a atitude dele, mas não
porque ele gostava de homens e sim porque ele era um canalha, não importando
sua sexualidade. É estranho o quanto a gente cresce quando se despe de tudo
aquilo que deveria ser.
— Então seu
namorado era narniano? Quero dizer… ele estava no armário? Não o culpe, é
difícil viver na situação dele, sem se aceitar. O que ele fez foi errado, mas
ele estava apenas confuso, assim como você também estava quando fez o que fez.
É duro viver num mundo onde você mesmo não se aceita.
— Então você acha
que tudo que eu estava era confusa? — Ela disse, incrédula.
— Ouça, eu mesmo
já me apaixonei e também fui jovem. Um coração partido faz a gente cometer uma
série de coisas que nunca faríamos se estivéssemos bem. O que você fez foi
estupidez, mas você tinha acabado de ser largada, estava grávida, tinha
quantos? Dezesseis anos?
— Quinze.
— Está vendo?
Você era jovem, estava em
desespero. Fez a primeira coisa que passou em sua cabeça.
Você me lembra Medeia, uma personagem mitológica grega. Todo mundo lembra dela
como a mulher mais atroz de toda a literatura clássica por matar os próprios
filhos para se vingar do marido, mas pouca gente lembra o porquê.
— E porque foi?
— Porque ela fez
tudo para o marido. Entregou-lhe o velocino de ouro: o grande tesouro de seu
reino. Matou seu pai e seu irmão para protegê-lo e no final das contas, ele a
deixou para casar-se com uma princesa mais jovem.
— E qual foi o
fim dela? — disse a inocente moça, talvez esperando por alguma redenção no
final daquela história. Infelizmente, como são as tragédias, redenção era algo
tão longe quanto o céu era para nós dois.
— Ela morreu
sozinha, deixada abandonada em uma ilha, amaldiçoada pelos homens e pelos
deuses.
A jovem calou-se,
virando-se por um momento a ficar a janela sem, no entanto, conseguir ver nada.
O breu do lado de fora ainda era total. Ela pareceu digerir toda aquela
informação e talvez calcular as conseqüências de seus próprios atos, por fim,
depois do que me pareceu meia hora, mas poderia ter sido um quarto de século ,
ela sorriu em minha direção e disse simplesmente:
— É justo.
— Talvez seja.
— Mas então… você
me disse que foi apaixonado uma vez. O que aconteceu?
— Ele morreu por
minha culpa. — disse cabisbaixo, demonstrando que ainda não me sentia forte o
suficiente para falar sobre aquilo, mesmo tendo se passado tanto tempo.
— Qual era o nome
dele?
— Henrique, eu li
em seu santinho de morte, ele nunca me disse e é por eu nunca ter tido a
coragem de perguntar que agora eu estou aqui.
— Meu avó sempre
dizia — ela sorriu ao lembrar-se de sua vida anterior — que o diabo mora nos detalhes e o inferno
eram todas as coisas não ditas que não pareciam ter importância.
— É.
Percebi que
aquele era o momento perfeito para que eu saísse dali. Não importava o quanto
minha resposta parecera vaga, eu não queria falar sobre aquilo. Não depois de
todos os anos de tristeza que isso causara ao meu coração, destruindo-me por
dentro, arrasando todos os meus sonhos, até que por fim eu morresse sozinho,
após dois casamentos, deixando uma vida bem sucedida — e vazia. — para trás.
Algo queimava em
meu estomago, uma sensação amarga que subia por minha garganta e me causava
calafrios. Lágrimas, eu as conhecia de tempos imemoriais, de quanto o céu ainda
era azul e o inferno era apenas uma vaga idéia que os cristãos inventaram para
se sentirem privilegiados.
De alguma forma,
tais lágrimas fizeram-me me sentir despido, fraco e aquilo me revoltou. Não era
hora para ceder à depressão que tornara a minha vida um inferno morno tão
insuportável quanto era possível.
Caminhei então
pesadamente, ignorando o impávido e pesado olhar que o anjo empregava às minhas
costas. Em toda minha vida eu tentara me redimir de pecados que existia apenas
em minha cabeça, eu sabia exatamente porque estava sendo condenado: eu estava
sendo condenado por nunca ter tentando, por ter sido temeroso, por ter sido um
covarde.
Naquele momento,
entreguei-me nas mãos do desespero, da raiva e da repulsa por mim mesmo e o
demônio? Este me devolveu o beijo com volúpia, mas sem poderes sobrenaturais,
apenas fortes mãos tateando minhas costas e seus lábios percorrendo meu
pescoço, queixo e lábios, de novo, de novo e de novo, não necessariamente nessa
ordem.
Eu havia decaído
a um nível que já não havia mais permissões a serem pedidas, nos enroscamos
feito serpentes nos corpos um do outro, rasgando as roupas que nos cobriam e
juntos experimentamos todas as vertentes da luxuria ali mesmo, sem se importar
com aqueles que inevitavelmente nos viam.
Asmodeus, esse
era o nome daquele com quem eu cometia concupiscências no rubro chão
acarpetado, beijou-me novamente no pescoço, descendo sua língua pelo meu torso,
ao encontro dos róseos mamilos que eu sustinha rijos, delineados pelos inúmeros
anos em que eu freqüentara a academia.
Mordico-os
lentamente, depois com mais força, levando-me a um prazer nunca antes sentido
em momento algum de minha vida, mas aquele momento estava apenas começando e
quanto mais sua avermelhada boca de veludo descia pela minha barriga em
direções mais sensíveis ao prazer, mais minha respiração entrecortada se
tornava pesada e minhas fortes pernas prendiam seu corpo com mais força ao meu.
Terminando de me
enrijecer e fazendo-me ter espasmos involuntários de desejo ele pousou uma forte
mão em meu peito e subiu em meu ventre, executando com maestria movimentos
rítmicos.
No entanto,
aquele momento que em vida parecia explodir em seu ápice em não mais do que dez
minutos, em morte não havia limites, levando-me para além do orgasmo, para um
mundo em que nunca estive e — sabia — nunca estaria de novo depois que o corpo
de Asmodeus por fim me abandonasse.
Ele, é claro, não
fazia quaisquer menções de que desejava fazer aquilo, largando meu ventre e
correndo novamente com sua boca pelo meu corpo em direção ao meu pescoço,
mordendo-o com desejo, puxando meu corpo para perto do meu pela minha cintura.
Subiu um pouco mais para morder a ponta de minha orelha e depois passando
lentamente sua língua por ela.
Meu ponto fraco.
Ali, naquele momento, num raro momento de iniciativa empurrei-o e subi em seu
corpo, mordendo cada parte de seu abdômen duríssimo, subindo por seu peito
forte e seus ombros largos até seus lábios que eu tanto desejava provar
novamente.
Seus lábios
tinham gosto de verão e jambo tirado do pé ou tinham gosto de chuva durante uma
tempestade. De fato, ele tinha o gosto de todos os amantes que já tive e
aqueles que eu deveria ter tido, mas que o destino tomou de mim sem que eu
percebesse.
Então, sem dar
aviso, ele virou-me apertou com força minhas nádegas, invadindo-as totalmente
sem pudor, tomando meu corpo como sendo seu, uma, duas, três, duzentas e
quarenta e duas vezes, até por fim saciar sua vontade e dar-se para mim, para
que então eu saciasse a minha.
Saciamo-nos dos
corpos um do outro, como Adão e Lilith no paraíso, bem antes de Eva e o
casamento e até mesmo o romantismo surgirem. Entregamos-nos completamente a
luxúria, mas isso me denunciava mais do que qualquer outra coisa, afinal de
contas, ele mergulhou em sua própria natureza e eu inadvertidamente me afoguei
ao segui-lo sôfrego e sedento.
Fechei meus olhos
por um instante e um breve lampejo de arrependimento invadiu meu rosto
ruborizado — agora completamente consciente dos olhos que me julgavam — pesadas
lágrimas rolaram pela minha face e eu desejei nunca mais ter de abrir os meus
novamente.
No entanto, enquanto
eu estava lá, com frio, sozinho, nu e completamente entregue a auto-piedade, um
beijo invadiu o muro de minha lamentação e este era completamente diferente do
primeiro.
Os lábios eram
quentes como o sol e beija-los era como sentir o nascer do dia no meu coração.
Suas mãos traziam todo conforto que eu precisava e quando eu abri os olhos,
encarando o anjo que me salvara da autodepreciação, ele parou de me beijar e
sorriu amavelmente, deitando-se ao meu lado.
Encostei minha
cabeça em seu delicado peito — agora nu. — percebendo a maciez sobrenatural de
sua pele, confortável como a campina em meus sonhos, na qual inúmeras vezes eu
me deitei com o rapaz por quem eu de certa forma de apaixonara — mas jamais
perguntara o nome.
Fechei meus olhos novamente, resgatando aquele
sonho que tantas vezes me invadira na juventude e enquanto Haniel, o anjo,
segurava minha mão eu me senti novamente ali, sob a bruxelante luz do luar,
embaixo da fina garoa, dormindo junto aquele que eu amava.
No entanto, fora
apenas um sonho e aquele momento fora apenas um pequeno lampejo dele. Quando
novamente abri os olhos, estava novamente vestido com as mesmas roupas que o
demônio rasgara.
— Você experimentou
coisas demais na vida Miguel para se deixar levar por puro desejo. Você por
acaso não se lembra como é a sensação de se apaixonar, puramente pelo desejo de
se apaixonar? — Ele disse, beijando-me de maneira suave; aquele beijo fez com
que eu me lembrasse.
Cai em lágrimas,
ainda arrependido de ter descido a um ponto ainda mais baixo do que eu havia
descido quando vivo. Abracei-o, buscando em seus braços o conforto que me
faltou em toda a vida, mas mesmo a luz da qual ele era feito não era suficiente…
nem mesmo em seus portentosos braços eu havia encontrado a paz.
Talvez não
houvesse paz para mim, afinal de contas, eu estava indo para o inferno
carregado pela minha culpa. Anjo nenhum podia me dar àquilo que eu não merecia.
O céu estava carregado de justiça, eu sabia.
— O céu está
carregado de justiça — ele me disse
depois que eu me acalmei, com sua voz suave como o vento de primavera — no
entanto, justiça significa dar o necessário e fazer o que é preciso. E às
vezes, isso traz conseqüências inesperadas.
Encarei-o sem
entender a profundeza do significado de suas palavras, ele sorriu novamente com
aquele sorriso capaz de fazer o mundo parar de girar se assim o desejasse.
— Você foi o mais
baixo que estava disposto a ir para se martirizar. É hora, no entanto, de parar
de sentir pena de si mesmo. Aqui ainda não é o inferno e você ainda tem tempo
de lá entregar-se a sua culpa, mas há seu tempo. Agora, você está atrasado para
uma coisa.
Ele tomou-me pelo
braço, me levando corredor à frente passando por cada um dos condenados que
agora me assistiam de fato curiosos com a sina que eu cumpria. Éramos ao todo
cinco: a jovem garota que abortara, o velho negro que carregava em suas mãos os
dados nos quais era viciado, a católica fervorosa detentora do olhar mais
acusativo que eu já vira em minha vida, eu com meu coração culpado e o rapaz de
não mais do que vinte anos com os pulsos marcados, cuja aparência me era
vagamente familiar.
Este sorriu ao me
ver, num misto de lascívia e afeto que me fizeram imediatamente reconhece-lo.
Afinal, ele era meu anjo e meu demônio. Ele era o meu céu, salvando-me do caos que
fora minha adolescência, a minha perdição, o motivo pelo qual eu estava ali.
Ele era alguém
cujo nome eu não devia saber, mas cujos olhos eu reconheceria até no inferno.
Então, olhando-me como um velho amigo, pela segunda vez em toda minha vida eu
escutara sua voz, desta vez a me dizer:
— Você demorou,
estava começando a pensar que você não viria!
Como se eu
tivesse escolha.