Um relato do Início
Retirado dos diários da esposa de Tertuniel
A
história é longa e creio que não valha a pena contar-lhe; você não seria capaz
de entender. — ele começou a contar, chateado com minha peremptória insistência
a conhecer sua história. — A muito, muito mais tempo do que um mortal poderia
conceber, no irromper dos primeiros acordes da Canção que fez e mantém o mundo,
havia um trono vazio no alto de uma escadaria numa cidade deserta feita de ouro
e de prata, acima de tudo que havia até então; não que houvesse muita coisa:
As
estrelas já reinavam em sua argêntea morada, clamando serem filhas de deuses e
luzes que seja lá o que fossem; já haviam se derramado na Criação; o Abismo já existido
àquela altura, mesmo que as criaturas dentro dele ainda não houvessem emergido,
vivo e dotado de uma certa inteligência primitiva que o fazia perceber não só
sua existência como também a existência da Origem, a luz dourada que brilha
acima da Cidade Elevada, é dela que derivam os três precursores da minha raça.
Yaveh, o primeiro, aquele que se assentou no Trono,
o mais poderoso de todos; em seguida veio o brilhante Heylel, o insubordinado e
o último Anjo Superior, a quem chamo mãe, era uma criatura sombria e estranha,
temida por muitos, Izrail, a quem mais tarde vocês chamariam Morte. Yaveh assentou-se
no Trono do Sétimo Céu, e utilizando-se da força da Origem criou todos os
anjos, começando pelos sete mais elevados: Miguel, Gabriel e Rafael, que
posteriormente seriam enviados a a Terra nos dias anteriores ao dilúvio e aqui permaneceram;
Uriel, Sealtiel, Jegudiel e Baraquiel assentaram-se nos portões que dividem o
Sétimo e Sexto Céu, guardando o caminho para o Trono, nesta época, minha mãe os
comandava.
Meu
pai era um Querubim, a ordem dos anjos guerreiros, comandados nesta época pelo
brilhante Heylel, e ficou ao seu lado quando este decidiu tomar à força o Sétimo
Céu e o Trono. Não havia muita esperança, nenhum dos Serafins e dos Arcanjos
aderiu a revolta, mas um terço de todos os anjos estavam ao lado de meu pai e
seu líder, a batalha foi incomensurável; minha mãe invadiu secretamente o
Sétimo Céu para obter a resposta de como vencer a batalha, a Origem a
respondeu, mas também criou junto a ela meu irmão, Azrael e algo ainda mais
mortal que os primeiros anjos.
Antes
do último golpe, ela encontrou-se com o general dos exercitos de Heylel, meu
pai, dando-lhe uma oportunidade de rendição que lhe foi negada. No entanto, os
dois apaixonaram-se e coabitaram, ardendo em amor e glória na noite que
antecedeu a última batalha, eu fui concebido naquele instante, mas ainda não
havia aberto meus olhos, adormecido enquanto durasse a guerra.
Comandados
por minha mãe, todas as forças do Céu ergueram-se contra Heylel e Samael, meu
pai, jogando-os do Sexto Céu, jogando-os no Abismo. Não havia como derrotar os
anjos caídos definitivamente, soube Izrail, mas havia como criar uma prisão
praticamente inexpugnável, juntando a energia da queda de Heylel, com o poder
dela e de Yaveh; cinco céus foram criados para guardar os inimigos do Trono.
Cada
vez mais abaixo, prendendo-os em energia densa até que o Segundo Céu explodisse
numa nuvem de escuridão e luz que criou todos os planetas, toda matéria, e os
corpos físicos das estrelas que decidiram presidir um lugar próximo dos
acontecimentos.
O
primeiro céu é na verdade, o céu de todos os planetas, mas costumamos entender
que este lugar é aqui, a abobada azul acima da Terra, onde finalmente todos os
anjos caídos foram presos.
Era
necessário, porém um guardião cuja própria existência seria a chave que
trancaria esta prisão; o fim da magia antiga, longe demais da Canção para que pudessem
entendê-la: Adão e sua consorte.
Condenada
ao exílio por ter subido ao Sétimo Céu, tocando a Origem, e também concebido um
filho com Samael, minha mãe foi obrigada a partir e moldar este ser, nunca mais
retornando aos céus mais elevados; ela partiu levando consigo o filho Azrael, a
mim em seus braços, uma criança ainda sem nome, e seu segredo: uma espada
forjada com o poder do Abismo e da Origem, uma espada de vidro, viva e poderosa
o suficiente para banir qualquer existência. Fora escolha sua não matar Heylel
ou mesmo tomar para si o Trono, matando Yaveh, pois o poder para tanto estava
em suas mãos, dada a ela pela própria Origem quando havia estado no Sétimo Céu.
Na fronteira, onde por sim se jogaria, caindo
como os caídos que ajudara a derrotar; ela me ergueu virado para a Cidade de
Prata e os anjos que a assistiam. “No Sexto Céu nasceste e aqui será batizado,
meu filho, meu último ato antes da queda; aqui vos apresento Tertuniel,
Encontro Divino”. Ela disse e só então acordei, vislumbrando pela primeira e
última vez a cidade cuja luz ficou em meus olhos.