domingo, 12 de fevereiro de 2017

Capitulo V - Requiem




Sombras se acomodam no lugar que você deixou...
Não havia ninguém para buscar as coisas restantes no apartamento. Ninguém que não fosse aquele que havia sido deixado para trás, Carlos. Amanda se fora e deixara para trás uma dúzia de caixas, tão pouco para uma vida inteira, tanto para alguém que nunca havia se apegado a coisa alguma.
Amanda era a força sagitariana de alguém que cavalgava em direção à um mundo que não iria amá-la nunca; Carlos sentia a dor de seu fantasma em seu peito sombrio, pois estava ciente de que, além das lembranças naquelas doze caixas, tudo que restava dela estava ali em seu peito: a dor que ela deixou ao ir embora.
...Nossas mentes estão aflitas pelo vazio
O Lucky Strike em seus dedos nunca lhe parecera mais convidativo, acomodou-se sentado em uma das caixas e abriu aquela que tinha seu nome: uma modesta, pequena, sem duvida. Pequena demais para conter um relacionamento, mas, no final das contas, talvez o número tão parco de lembranças significasse a importância escassa daquilo para ela.
O cigarro queima, a fumaça sobe e as lembranças vem, na memória e em suas mãos, uma coletânea de fotos de uma era que parecia ter sido a um milênio; fora a pouco mais de um ano. Ela sorria, Carlos havia esquecido como aquele sorriso era belo, como aquele sorriso era belo quando sorria para ele. Aquele sorriso que agora gargalhava no inferno, certamente.
Fotos sensuais dela. Amara seu corpo, cada curva do seu corpo, como se pertencesse a uma divindade. Suas pernas, seus seios rijos, seu olhar perdido de garota; havia amor, certamente, mas o desejo lhe queimava como o cigarro se acabava sozinho. Era desejo ou saudade o que sentia por ela? Era o desejo de beijar sua boca ou a saudade de abraçá-la que doía mais?
Havia vida depois da dor?
E se você ainda está respirando, você é um dos sortudos
Cartas, milhares de cartas que mal cabiam naquela caixa. Se cada palavra fosse um punhal, Carlos sangraria até a morte, um sangue rubro chamado arrependimento. Arrependimento de que? Se perguntava. Por mais que ele olhasse para trás, por mais que ele visse os cabelos dela indo embora naquela ponte, a última ponte em que se viram, ele não conseguia mudar o que acontecera, em nenhuma hipótese, em nenhum mundo.
Então porque estava arrependido? Talvez não tivesse aproveitado o bastante e beijado aqueles seios o bastante, mordido seus pés macios, sugado o doce mel de sua vulga, o som melódico daqueles gemidos intermitentes que para ele podiam durar horas como uma sinfonia eterna.
— Eu sou tua. — mas ela não era.
Porque a maioria dos nossos sentimentos, estão mortos e acabados
E essa garrafa de conhaque de onde viera? Não sabia ao certo, era uma lembrança perdida em meio a fotos; uma lembrança que ele logo percebeu que não era dele, pois vinha acompanhada de um pequeno bilhete.
“Sob as flores outonais — flores preguiçosas — que escondes nas matas entre tuas pernas, encontrei um lugar de descanso. Te amo, F.”
Ele certamente não havia escrito esse poema, jogou-o de lado, junto com a ponta terminada do cigarro. Abriu a garrafa, enquanto ouvia os sussurros dela na memória. “eu sou tua, ela dizia”, era prazer e não amor. Tudo que ela sentia por ele era um gemido e não amor. Não. Estava mentindo, ela tinha o amado, sim, por algum tempo, mas havia acabado, acabado como o cigarro que fumara. Acendeu outro.
Nós estamos incendiando nossos interiores por diversão
Um gole e depois outro, noite adentro, enquanto remoia aquelas memórias à sua mão. Ele a amava? Certamente que sim e a odiava. Odiava-a por tê-lo abandonado, odiava-a por não ter ficado. Ela preferiu morrer em Londres a viver com ele. Ela preferiu morrer nas mãos de outro que passar mais um dia o amando mal.
A garrafa escorrega de sua mão, o cigarro também. E logo o fogo se alastra entre as fotos. O sorriso dela some em meio a fumaça, o gosto do beijo dela não some jamais, no entanto.
Foi uma inundação que destruiu esta casa e você causou isso.
— Você está bem, senhor? — o porteiro havia aparecido para apagar o inicio de incêndio que havia causado.
— Foi só um acidente. Só isso, apenas um acidente.
Um acidente. Uma sagitariana corria em seu devaneio, uma pequena garota que logo chegaria à fase adulta e feriria seu coração, ela cai, machuca-se, um garoto beija-lhe a testa. O seu primeiro amor.
Um acidente. Carlos, um jovem de então vinte e um anos, comprava um buque de violetas para sua jovem namorada — que ainda não era Amanda — mas ela amava outro, todas sempre amavam outros. Todas cedo ou tarde iriam amar outros homens.
Um acidente. Anos mais tarde os dois se esbarraram, tinha quase a mesma idade, Amanda era um tanto mais alta e se amaram. O amor é um acidente, uma colisão de dois universos que certamente pode destruir a ambos ou criar algo novo. Um deles respirava, a outra estava morta, mas ambos estavam destruídos. Quem teria apostado nesse caminho?
Bem, eu perdi tudo, eu sou apenas uma silhueta
Um rosto sem vida que você logo esquecerá
— Alo. Gabriel Arcanjo? Eu gostaria de comprar uma casa, o mais longe possível dessa cidade. O mais longe possível dessas lembranças.
O porteiro que ainda esperava Carlos, não mais o deixando estar só, temeroso de um novo incêndio. Aguardou o fim da conversa com o corretor e, alheio a todos os sentimentos que pairavam no coração do jovem, perguntou a única coisa que podia:
— O que eu mando fazer com essas caixas? — o que aqui significava: o que eu faço com todas essas lembranças?
— Elas não são mais problema meu.
Mas eu sentirei falta dela pra sempre.
E você causou isso.