quarta-feira, 27 de junho de 2018

O Sagrado Coração da Estrela

 Se você está interessado no início desta história:




"Eu estou perdido na escuridão entre os mundos, oh sagrado coração da estrela, eu estou sozinho na imensidão de um universo implacável, sob o julgo de um deus inominável; oh poderosas luzes acima e abaixo dos deuses, guardiãs supremas do caminho, ouvidoras da criação, cantem a música do inicio, vós que engendram em si o principio do fim. Para que quando eu olhar para o céu diante da voraz noite, as veja e me sinta livre. Multicolorido coração das estrelas, que sua luz nos encontre na escuridão do céu.”         
(Zaham, Laars; A oração das luzes)

O sol nasce para todos; menos para o vampiro na janela, no entanto, nasce principalmente para este. Ela o ama, tem o amado nos últimos três milênios; e é irrestritamente correspondida. Por mais estranho que possa parecer, o uso do feminino ao citar o sol é necessário, pois, inegavelmente o sol é uma mulher; uma das estrelas. Nada disso desafia a lógica; estrelas são bolas de plasma fulgurante acima do segundo céu, sob o julgo do qual orbitam os planetas e também são, não obstante, uma raça de apaixonantes mulheres que presidem em argêntea morada em algum lugar dos céus acima da Criação. A mulher, que é também o sol, atende pelo nome de Aurora.
Este é o nome que sussurra o vampiro na janela e este é o nome que o acompanha por todos os corredores da mansão Casemiro até a cripta subterrânea, onde ele costuma dormir desde quando a Hegemonia começou. Ele já foi a Morte, mas isso fora há tanto tempo, que até mesmo a língua que se falava quando ele deixou de sê-lo estava morta. Ele fora a primeira encarnação da Morte, e agora dormia sobre o túmulo dos antepassados do último jovem a tomar para si este fardo, moravam ambos sobre o mesmo teto. E assim como seu antecessor, Felipe Casemiro já estava acordado quando o sol nasceu.
Seu olhar distante acompanhava o sol em seu caminhar; raros são os humanos que podem dizer já terem visto a face de Aurora a carregar sua tocha pela imensidão celeste. Ele, no entanto, não está feliz; sua face é de sofrimento e dá sinais de há muito não dormir direito. Sua casa é inexpugnável, ele sabe; nada seria capaz de invadi-la sem sua permissão, seu coração não tem a mesma sorte.
— De novo acordado, Felipe? — perguntou André ainda deitado na cama que ambos dividem. Não obteve resposta, o jovem oráculo permanece na janela a sofrer as dores do mundo, a observar o sol esconder-se por detrás de pesadas nuvens.
André levantou-se num salto, sendo um tanto mais alto que seu consorte, e de aparência mais forte, seu abraço oferecia um corpo impar, como quem diz que deseja proteger o ser amado. Isso não passava de ilusão, ele sabia; mesmo agora, sendo apenas um mero mortal, Casemiro seria capaz de dar fim aquele quarto num mínimo gesto sem se cansar. Não era a toa que seu namorado tinha um artigo da Constituição Geral da Hegemonia inteiramente voltado para ele; Felipe não era o oráculo mais poderoso do mundo, mas sabia usar os seus poderes como poucos e conhecia segredos que mortal algum seria capaz de conceber.
— Eu não consigo dormir. Você não entende André o quão terrível é os ouvir gritar, noite após noite. São milhares e só aqui em São Paulo. Eles nos caçam como feras; nos torturam, nos matam desenfreadamente e para que? Para garantir a existência da Hegemonia, eles dizem; besteira. Nós servimos para alimentar a histeria e o medo, sem isso, governo nenhum conseguiria dominar o mundo. Nós somos a desculpa que eles usam para eliminar quem querem, sem dar respostas. O medo cala as pessoas, André; e o silêncio delas permite a nossa morte.
— Você não pode fazer nada para protegê-las, amor. — disse o garoto a beijar o alvo pescoço de Felipe.
— Eu sei; mas a culpa é minha. Se eu tivesse aceitado que você não amava, que você não me queria; eu jamais teria feito um acordo com Samael. Que tipo de pessoa faz um acordo com o diabo e lhe entrega o que ele mais quer; o que ele vem querendo desde que Lucifer desapareceu? Sem mim, ele jamais teria conseguido o apoio dos lobisomens. E tudo isso só pra que eu aprendesse a invocar Tertuniel.
— Mas eu te amava. Eu só era tolo o suficiente pra fingir que não, por medo da reação do meu pai. Agora, ele está morto; quase toda a minha família está morta. A culpa é também minha.
— Não; que culpa você tem de me dizer não? Milhares de pessoas recebem não todos os dias e nem por isso invocam o filho caçula da Morte e pedem o ser amado para si uma vez mais. Eu fui egoísta, André; tão egoísta que eu troquei o bem estar do mundo para ter uma noite de amor com você. Tão egoísta que depois que esta noite acabou, eu tentei me suicidar. Eu me tornei a Morte; e nem assim eu aprendi a ser menos egoísta. Eu falhei na minha única obrigação.
— Você cumpriu o seu destino. Você não tinha escolha; tudo que você fez foi chorar, Felipe; foi demonstrar compaixão e humanidade por alguém que você amava, por seu sobrinho que morria aos seus braços. Porque a Morte tem de ser tão dura? Tão severa?
— Porque não existe justiça sem dor. Um sétimo da população mundial teve de morrer para que eu aprendesse isso; um bilhão de pessoas morreu para que você estivesse hoje em minha cama. Quantas ainda vão morrer pelo que eu fiz?
— Você se arrepende? — perguntou André, por fim.
Foi a primeira vez que Felipe sorriu durante esta conversa.
— Não, se fosse preciso, pra ter você, eu teria destruído pessoalmente o mundo inteiro. Esta é a minha culpa, saber que por mais que tenha sido egoísta o que eu fiz; eu teria feito novamente ainda pior.
O jovem abraçou ainda mais forte o ser amado, Felipe era egoísta, mimado e cheio de poderes; mas André não tinha motivo algum para supor que seu namorado não o amasse e faria de tudo para protegê-lo, senão do mundo, ao menos de si mesmo.
— Você era jovem; tinha uma profecia nas mãos que dizia que você faria exatamente o que fez; tinha um anjo caído, o filho da Morte e a Própria ao seu encalço. Não importa suas escolhas, Felipe, porque você não tinha como fugir de todas essas coisas. Você era um grão de areia no meio de um poderoso oceano; tudo que você poderia ter feito era deixar-se levar por ele.
— Talvez, mas Tertuniel sabe: cedo ou tarde, eu vou começar a lutar.

O dia já havia nascido em Toronto; contudo, Verônica ainda dormia; não que ela não fosse constantemente adormentada pelo grito dos aflitos, mas o Canadá era longe o suficiente dos problemas para que ela pudesse dormir em paz, por hora. No entanto, não é certo dizer que ela se mantinha ali a salvo de seu destino; há nos sonhos um grande poder que por muitos é desconhecido, mas não por ela, pois não há nada que um desesperado possa fazer a não ser sonhar. Ela sonha com um mundo além dos muros de seu quarto.
Em seu sonho, um homem caminha nu pelas ruas de Londres, a boca ensangüentada. Não há como imputá-lo de culpa diante do que fez: matar as próprias filhas; ele era um lobo e não sabia; em breve, ele matará tantas filhas de outros que se esquecerá da própria, até vê-la em cada rosto das garotas que ele mandará executar como Guardião.  O mundo dos humanos é estranho, Verônica sabe, todos nós carregamos nossas maldições, a pior delas chama-se passado.
E ele também pode ser uma das nossas melhores bênçãos; na Times Square, um ator desempregado lembra dos felizes momentos de sua vida, quando os musicais eram idolatrados como a verdadeira arte humana. Não há mais lugar pra arte no mundo racional da Hegemonia. Houve um tempo em que a America Estadunidense fora chamada de terra dos livres, não mais.
E então, Verônica sonha com os deuses; com aqueles que permanecem por aqui depois de tanto tempo. Apolo senta-se ao lado de um amontoado de pedras na ilha flutuante onde esteve um dia; ninguém sabe, mas ali está enterrada uma de suas primeiras amantes mortais. Ele não chora, não faz sentido chorar diante da morte de mortais; tudo que ele faz é esperar. “O que você fez, Gabriel?” ele perguntará a si mesmo. Ela quis lhe responder, mas que diferença isto faria? Até os deuses podem ser tolos.
Para além dos muros, além das fronteiras, no final do rio, por detrás do mundo dos homens, depois das querelas dos deuses, a jovem sonha com venerável morada: Uma terra de onde os deuses vêm, uma cidade de prata, onde os cintilantes soldados marcham à espera da iminente guerra. “O que você fez, Gabriel?” eles perguntariam ao seu irmão. “Ele teve um filho e o filho destruiu o mundo. É uma questão de tempo até que ele destrua os deuses”. O quão ruim isso seria?
“Basta!” Ruge a voz brilhante e sombria, chama lá de longe, tão perto, em todo lugar. “Venha!”; chama sem gênero, sem forma, amorfo, inconstante, chama como um portal, como um beijo. O Principio, O Fim, o Todo, aquilo que existe acima do Sétimo Céu, além até mesmo do alto trono do Criador, pois se há algo de realmente inefável em toda a Existência está ali: A Origem chama a sonhadora para algo que está um tanto depois da cidade sagrada, pois Isso tem muitos filhos além do céu.
“Não se espera que você entenda. Há muito que é impossível a tua raça compreender. Há muito que pode ser chamado de divino para seu povo, não se assuste, pois esta é a penúltima estação deste teu sonho.”
Há um terraço no meio do nada, literalmente sobre o vazio, um grande jardim atrás de um palácio de vidro, mais antigo até mesmo que a cidade dourada; uma terra criada por uma simples frase no inicio da Existência: “faça-se luz”. Zvezda Dom, A Morada das Estrelas, permanece vazia, exceto por dois jogadores de xadrez que se enfrentam desde que as primeiras luzes nasceram.
É um sonho, e como tal, Verônica os reconhece assim que os vê: o jovem que aqui se apresenta como tendo olhos de oceano e cabelos dourados é muitas coisas, possui muitos nomes, e muitos são os entes com os quais compartilha o nome sob o qual o designamos em nossa língua. Destino movimenta uma peça. A Senhora a sua frente sorri.
— É uma estranha escolha. Há uma guerra começando e você insiste em acreditar que há uma possibilidade dos humanos a vencerem. O céu cairá D. eu não vejo como lançar essa peça mudará o fato de que eles estão num mundo que agora pertence aos deuses. Gabriel teve um filho, o filho cumpriu a profecia, minhas filhas agora estão todas mortas. Casemiro tem o que quer, tem o amor ao seu lado. A peça que você move não mudará isso, ele não tem porque entrar nesta guerra. — Ali, jogando com Destino está à única que pode o ver como igual. O primeiro ser a despontar da Origem, a primeira a ouvir a canção que a tudo deu inicio: Aster, a Mãe das Estrelas, indaga a si mesma sobre o que destino tem em mente.
— Mas ele vai entrar, minha cara. Esta peça é apenas parte do jogo. Ele não vai lutar porque é filho de um anjo, ele nem mesmo sabe disso; ele não vai lutar porque esta peça aqui estará com ele. Não. Ele vai lutar porque sente culpa em seu coração. Ele vai lutar por ela. — é estranho sentir o olhar de Destino em sua direção, mesmo em um sonho. Porque agora, Verônica sabia que aquilo era um tanto mais que um sonho. Ela estava realmente ali, de alguma forma.
— E quem é ela? — perguntou Aster.
— Ela é a última estrela no final dos tempos.
Não era Destino quem respondia, nem mesmo ele conhece o caminho das estrelas, pois elas como forças pungentes da efemeridade possuem apenas uma única soberana acima de Aster: a Morte; a verdadeira Morte segurou fortemente as mãos de Verônica como se fosse uma sombra, um lembrete do que estava por vir. O chão sumiu sob os pés e ambas caíram na escuridão entre os mundos.

Isto é um sonho, portanto, não é difícil ir de um local a outro da Existência tão rápido como apenas os sonhos são; caminham num salão dourado e negro duas figuras enlutadas. De mãos dadas, a Morte, a verdadeira Morte, e Verônica caminham em direção a três caixões no final do corredor.
Há entes que chamamos de anjos, até mesmo de deuses; e há seres, três, na verdade, que são tão anteriores a estes, cuja existência surgiu da Origem, junto com as fundações da cidade dourada onde residiam nos tempos anteriores ao tempo. O primogênito é um deus conhecido, pai dos homens, senhor de tudo que há abaixo do céu, o Criador, e embora seja constantemente confundido com a expressão pura da Origem que se manifestou na terra há dois milênios, Ele é bem diferente do que conta a vã filosofia humana.
O segundo também nos é conhecido, embora constantemente confundido com seu general, humanos são ótimos em confundir os personagens da história de suas vidas, aquele que se rebelou; o Inimigo, também tem sua culpa em nossa existência. Somos os carcereiros de sua prisão e expressão máxima de seu plano para alcançar novamente os céus. Nós somos a imagem e semelhança do Criador, isto é inegável, somos seus filhos; mas aquilo que nos faz humanos, nossa racionalidade, devemos a ele. O fruto que comemos de certa árvore, no principio dos tempos, era ele, o devoramos, o conhecemos. Agora possuímos a ciência do bem e do mal que apenas os deuses deveriam ter para si.
Entre o Criador e o Inimigo, nossas almas são poderes que Ela guarda; pois estando entre ambos, não possuímos o céu, não estamos sob a égide do inferno. O terceiro guarda para si a forma do feminino, o que apazigua a tensão entre os dois opostos tão masculinos. Enquanto ambos querem tornar certo, como verdade absoluta, suas formas diferentes de exercer o poder que possuem; tudo que ela quer é manter perpetuo o equilíbrio, à medida que ela mesma possa permanecer equilibrada. Ela é a sombra no meio da guerra entre duas luzes. Seu nome é Izrail.
— Há muito que você não sabe, Verônica. E há pouca coisa que eu possa te contar neste tempo que temos. Portanto preste atenção e faça sabiamente suas perguntas.
— Você não é a mesma Morte que me buscou, não é? Você parece ser a mesma, mas não é. Quem me buscou disse que já havia sido humano um dia… você é a original, não é? Você é Izrail? Onde esteve esse tempo todo?
— Sagaz, como sempre, jovem moça, a questão é: onde eu não estive? A morte está sempre em todo lugar esses dias. Isto é um sonho, desde que Felipe me perdeu tudo que eu sou é um sonho, um eco de poder que ainda reside no mundo à espera de ser encontrado. E eu serei, porque você vai trazê-lo de volta a mim.
— Como?
— Tudo em seu tempo, sem pressa. Felipe irá encontrar a parte de mim que ainda reside nele, depois que cumprir a missão que deve cumprir. Há três caixões nesta sala, como você pode ver.
Verônica não era capaz de reconhecer os mortos que estavam sendo velados, com exceção de um: ela mesma. A visão de si mesma ali deitada sem vida não a estremeceu, era o que ia acontecer, ela sabia; ela soube desde o instante que tomou para si o fardo que agora possuía.
— O belo rapaz ao seu lado é meu filho. Não conte a Azrael quando o vir, mas Tertuniel sempre foi meu favorito, é pena que tenha escolhido o caminho que escolheu. Felipe deve matá-lo e é o que fará. Então, ele voltará a mim, mas não voltará a ser eu, não, ele me redimirá. Haverá o dia em que eu, a verdadeira eu, será necessária de novo, meu corpo adormecido por todos estes milênios regressará, mas não agora. Agora é tudo com ele. Agora é tudo sobre vocês dois, Verônica.
— E quem é o terceiro?
— Felipe matará um de meus filhos, ele matará um deus. Nenhum mortal tem esse direito. Tudo tem seu preço, garota, ele pagará o dele.
— Mas este não é ele, é?
— Não, não é. Ele iria preferir que fosse, acredite.
Verônica não entendia; esta era a verdade.  Por um segundo, pareceu que a humanidade dependia dela para continuar existindo, agora, todos os holofotes do mundo estavam voltados para Casemiro e ela nada mais se sentia do que uma coadjuvante neste jogo sorrateiro entre as divindades.
— Não se engane, menina. Você é mais importante do que pensa. Felipe é um jovem com imensos poderes, é filho de um dos mais poderosos arcanjos, embora não saiba disso. Já foi parte de mim, portanto, conhece segredos que a mortal nenhum são revelados, mas ele não compreende isso, ele não sabe a extensão do poder que tem e teme o preço que pagará pelas coisas que sabe. Ele tem poder, minha cara, mas jamais poderá conceder esperança. Sem você, sem aquilo que você representa, a humanidade está perdida, porque você é ainda mais poderosa do que ele, você é uma estrela e não teme seu destino. Você o salvará dele mesmo, mas acima de tudo, provará aos mortais que nada vale um mundo glorioso de racionalidade sem paixão. A verdadeira luz está nos sentidos, no sentir; na verdadeira glória que é a aceitação do devir como motor, da transformação como essência. É isso que significa ser uma estrela, esta é a sua luz. Por favor, e a Morte raramente pede favores, ilumine o mundo com o que há em seu coração. Não desista.
Por um momento, a jovem vacilou, percebendo que o mundo que estava em jogo era bem maior que os pilares da terra. Não, a guerra em que estava se envolvendo tinha repercussão em toda a Existência, mas que escolha ela tinha? Estava viva por isso e era por isso que ia viver. Ou morrer.
— Há, no entanto. — disse a Morte, antes que Verônica pudesse dizer qualquer coisa. — alguém que eu quero que você conheça. Esta é a última coisa que eu vou lhe contar, depois disso, você estará por sua conta até o fim.
Lá ao longe, uma figura distante caminhava com o sol às suas costas; o que era deveras estranho, pois todos ainda estavam em um corredor com três caixões. Mas sonhos são inquestionáveis, por isso, a jovem não se perguntou por que o sol brilhou ali dentro, ou porque de repente, ela se sentiu a agradável brisa sob o calor do deserto. Nem mesmo se questionou de como ela poderia saber que aquela figura a sua frente era Laars Zaham. Ela simplesmente sabia, assim são as coisas em sonhos.

As pesadas batidas na porta a acordaram; não que ela pudesse esquecê-lo, o escreveria mais tarde, para que pudesse lembrar sempre que sentisse que era necessário. As batidas continuaram. Não era costume de ninguém ser insistente com ela nos hotéis, certamente não era um fã. Certamente não era algo bom.
— Verônica. — o rapaz do outro lado da porta era moreno, um tanto mais alto que ela; e seus olhos escondido por detrás de grossos cílios esbanjavam preocupação e medo. Ela o conhecia é claro, ambos haviam tido um rápido romance de verão assim que o Arconte subiu ao poder e os primeiros guardiões foram convocados, ele era um deles.
— Theo. O que você está fazendo aqui no Canadá?
— Você já ligou sua TV? Nós oficialmente estamos tomando posse de toda America do Norte; com isso, apenas cinco países no mundo ainda não estão sob o domínio completo da Hegemonia, mas não foi por isso que eu te localizei e vim até aqui. Liga a TV.
Estava em todos os noticiários; o Arconte estava dando um discurso geral a toda a nação; enaltecendo a sua equipe médica por ter finalmente descoberto a cura para o câncer que havia tido 95% de eficiência no teste com humanos.
— Eles estão testando isso nos oráculos capturados; não estão?
— Sim, mas tem mais.
No entanto, ainda há aqueles que se voltam contra nossa amada pátria. — continuou o Arconte. Seus intensos olhos verdes pareciam encarar Verônica por detrás da tela.  — fico muito entristecido em saber que a base laboratorial em São Francisco que estava testando um método mais eficiente de cura para a AIDS foi atacada por oráculos e completamente destruída. Estas criaturas estão se multiplicando, enraizando-se em nossa cultura como erva daninha e como tal, devem ser completamente extirpados. Nossa juventude está sendo corrompida por discursos falaciosos desses cruéis mentecaptos; utilizam leituras de filósofos como Nietzsche e Deleuse para vangloriar aquilo que chamam de arte acima da racionalidade; querem destruir todo o progresso que fizemos até então, isso não pode ser permitido. Neste instante, estamos lançando uma nota para todos os Tribunais Especiais com uma lista de livros que devem ser evitados por nossos jovens. Aconselho a todos os pais a queimarem estes livros e denunciarem todos aqueles que teimam em distribuí-los para a junta de guardiões mais próxima.
— Um índex. O que isso é? A idade média?
— Eles não podem a acusar de ser um oráculo porque não podem sentir o seu cheiro. Você tem usado aquilo que eu te ensinei, não é?
— Sim, claro. Duas vezes no período de lunação, nunca tive problema algum com os guardiões depois que você me ensinou aquilo. Sou-lhe muito grata, você poderia entrar em apuros por ter me ensinado como burlar o sistema de vocês.
— Eu te amei, Veronica; não podia ter deixado você se descoberta e morta a esta altura. É por isso que estou aqui, sei que você é uma profunda leitora de Nietzsche e que manteve relações próximas com a tradutora dos livros de Laars Zaham; não vai demorar muito até que este tipo de livro seja completamente proibido, o poder do Arconte se consolida a cada dia. Até mesmo a China e a Coreia do Norte estão repensando sobre sua decisão de não aderir a Hegemonia, se eles participarem; então Domenique terá poder de fogo suficiente para subjugar sem maiores problemas os outros três países. A questão é: em pouco tempo, até mesmo ter um livro desses em casa vai ser considerado crime. Você tem que começar a se esconder.
— Obrigado pela consideração, Theo, mas eu me recuso. Não posso me permitir viver minha vida inteira escondida com medo da sombra do Arconte sobre minha cabeça. Que eles queimem meus livros, se quiserem; mas eu nunca vou me curvar em relação a isso.
Por um instante, Theo pareceu decepcionado; mas aquela fora a Verônica por quem ele havia se apaixonado, era impossível negar. Então, num átimo, puxou-a para perto de si e a beijou docemente, depois um tanto mais forte. Poderia ter terminado aquela manhã em sua cama e ela não se recusaria, no entanto, envolver-se com alguém como ela era saber que não havia como sair ileso. Preferiu abdicar de sua companhia, era a coisa certa a fazer.
O vazio que deixou ao sair pelo corredor não foi preenchido. Não porque Verônica acreditasse, por um momento sequer, que o amava, ou que o teria amado; mas porque era triste ficar sozinha quando se tem o mundo nas costas e os sentimentos do mundo nas mãos.
Por muito tempo, Verônica deixou-se seduzir e seduziu muitos homens, mas nunca ficou o suficiente para amá-los. Isso não é o papel de uma estrela, dizia a si mesma, desde o acidente, fugir do amor era tudo que ela podia fazer; agora que sabia estar tão perto do fim que podia sentir o gosto do beijo da Morte, ela sentia falta de beijar alguém de verdade; de entregar-se inteira.
Por muito tempo, ela escondeu o que havia em seu coração esperando o fim de sua vida; era hora de ouvir o conselho de Izrail.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Capitulo V - Requiem




Sombras se acomodam no lugar que você deixou...
Não havia ninguém para buscar as coisas restantes no apartamento. Ninguém que não fosse aquele que havia sido deixado para trás, Carlos. Amanda se fora e deixara para trás uma dúzia de caixas, tão pouco para uma vida inteira, tanto para alguém que nunca havia se apegado a coisa alguma.
Amanda era a força sagitariana de alguém que cavalgava em direção à um mundo que não iria amá-la nunca; Carlos sentia a dor de seu fantasma em seu peito sombrio, pois estava ciente de que, além das lembranças naquelas doze caixas, tudo que restava dela estava ali em seu peito: a dor que ela deixou ao ir embora.
...Nossas mentes estão aflitas pelo vazio
O Lucky Strike em seus dedos nunca lhe parecera mais convidativo, acomodou-se sentado em uma das caixas e abriu aquela que tinha seu nome: uma modesta, pequena, sem duvida. Pequena demais para conter um relacionamento, mas, no final das contas, talvez o número tão parco de lembranças significasse a importância escassa daquilo para ela.
O cigarro queima, a fumaça sobe e as lembranças vem, na memória e em suas mãos, uma coletânea de fotos de uma era que parecia ter sido a um milênio; fora a pouco mais de um ano. Ela sorria, Carlos havia esquecido como aquele sorriso era belo, como aquele sorriso era belo quando sorria para ele. Aquele sorriso que agora gargalhava no inferno, certamente.
Fotos sensuais dela. Amara seu corpo, cada curva do seu corpo, como se pertencesse a uma divindade. Suas pernas, seus seios rijos, seu olhar perdido de garota; havia amor, certamente, mas o desejo lhe queimava como o cigarro se acabava sozinho. Era desejo ou saudade o que sentia por ela? Era o desejo de beijar sua boca ou a saudade de abraçá-la que doía mais?
Havia vida depois da dor?
E se você ainda está respirando, você é um dos sortudos
Cartas, milhares de cartas que mal cabiam naquela caixa. Se cada palavra fosse um punhal, Carlos sangraria até a morte, um sangue rubro chamado arrependimento. Arrependimento de que? Se perguntava. Por mais que ele olhasse para trás, por mais que ele visse os cabelos dela indo embora naquela ponte, a última ponte em que se viram, ele não conseguia mudar o que acontecera, em nenhuma hipótese, em nenhum mundo.
Então porque estava arrependido? Talvez não tivesse aproveitado o bastante e beijado aqueles seios o bastante, mordido seus pés macios, sugado o doce mel de sua vulga, o som melódico daqueles gemidos intermitentes que para ele podiam durar horas como uma sinfonia eterna.
— Eu sou tua. — mas ela não era.
Porque a maioria dos nossos sentimentos, estão mortos e acabados
E essa garrafa de conhaque de onde viera? Não sabia ao certo, era uma lembrança perdida em meio a fotos; uma lembrança que ele logo percebeu que não era dele, pois vinha acompanhada de um pequeno bilhete.
“Sob as flores outonais — flores preguiçosas — que escondes nas matas entre tuas pernas, encontrei um lugar de descanso. Te amo, F.”
Ele certamente não havia escrito esse poema, jogou-o de lado, junto com a ponta terminada do cigarro. Abriu a garrafa, enquanto ouvia os sussurros dela na memória. “eu sou tua, ela dizia”, era prazer e não amor. Tudo que ela sentia por ele era um gemido e não amor. Não. Estava mentindo, ela tinha o amado, sim, por algum tempo, mas havia acabado, acabado como o cigarro que fumara. Acendeu outro.
Nós estamos incendiando nossos interiores por diversão
Um gole e depois outro, noite adentro, enquanto remoia aquelas memórias à sua mão. Ele a amava? Certamente que sim e a odiava. Odiava-a por tê-lo abandonado, odiava-a por não ter ficado. Ela preferiu morrer em Londres a viver com ele. Ela preferiu morrer nas mãos de outro que passar mais um dia o amando mal.
A garrafa escorrega de sua mão, o cigarro também. E logo o fogo se alastra entre as fotos. O sorriso dela some em meio a fumaça, o gosto do beijo dela não some jamais, no entanto.
Foi uma inundação que destruiu esta casa e você causou isso.
— Você está bem, senhor? — o porteiro havia aparecido para apagar o inicio de incêndio que havia causado.
— Foi só um acidente. Só isso, apenas um acidente.
Um acidente. Uma sagitariana corria em seu devaneio, uma pequena garota que logo chegaria à fase adulta e feriria seu coração, ela cai, machuca-se, um garoto beija-lhe a testa. O seu primeiro amor.
Um acidente. Carlos, um jovem de então vinte e um anos, comprava um buque de violetas para sua jovem namorada — que ainda não era Amanda — mas ela amava outro, todas sempre amavam outros. Todas cedo ou tarde iriam amar outros homens.
Um acidente. Anos mais tarde os dois se esbarraram, tinha quase a mesma idade, Amanda era um tanto mais alta e se amaram. O amor é um acidente, uma colisão de dois universos que certamente pode destruir a ambos ou criar algo novo. Um deles respirava, a outra estava morta, mas ambos estavam destruídos. Quem teria apostado nesse caminho?
Bem, eu perdi tudo, eu sou apenas uma silhueta
Um rosto sem vida que você logo esquecerá
— Alo. Gabriel Arcanjo? Eu gostaria de comprar uma casa, o mais longe possível dessa cidade. O mais longe possível dessas lembranças.
O porteiro que ainda esperava Carlos, não mais o deixando estar só, temeroso de um novo incêndio. Aguardou o fim da conversa com o corretor e, alheio a todos os sentimentos que pairavam no coração do jovem, perguntou a única coisa que podia:
— O que eu mando fazer com essas caixas? — o que aqui significava: o que eu faço com todas essas lembranças?
— Elas não são mais problema meu.
Mas eu sentirei falta dela pra sempre.
E você causou isso.