Se você está interessado no início desta história:
I http://www.cronicasdamorte.com/2013/06/as-luzes.html
II- http://www.cronicasdamorte.com/2016/02/Oapagardasluzes.html
II- http://www.cronicasdamorte.com/2016/02/Oapagardasluzes.html
"Eu
estou perdido na escuridão entre os mundos, oh sagrado coração da estrela, eu
estou sozinho na imensidão de um universo implacável, sob o julgo de um deus inominável;
oh poderosas luzes acima e abaixo dos deuses, guardiãs supremas do caminho,
ouvidoras da criação, cantem a música do inicio, vós que engendram em si o
principio do fim. Para que quando eu olhar para o céu diante da voraz noite, as
veja e me sinta livre. Multicolorido coração das estrelas, que sua luz nos
encontre na escuridão do céu.”
(Zaham, Laars; A oração das luzes)
(Zaham, Laars; A oração das luzes)
O sol nasce para todos; menos para o
vampiro na janela, no entanto, nasce principalmente para este. Ela o ama, tem o
amado nos últimos três milênios; e é irrestritamente correspondida. Por mais
estranho que possa parecer, o uso do feminino ao citar o sol é necessário,
pois, inegavelmente o sol é uma mulher; uma das estrelas. Nada disso desafia a
lógica; estrelas são bolas de plasma fulgurante acima do segundo céu, sob o
julgo do qual orbitam os planetas e também são, não obstante, uma raça de
apaixonantes mulheres que presidem em argêntea morada em algum lugar dos céus
acima da Criação. A mulher, que é também o sol, atende pelo nome de Aurora.
Este é o nome que sussurra o vampiro
na janela e este é o nome que o acompanha por todos os corredores da mansão
Casemiro até a cripta subterrânea, onde ele costuma dormir desde quando a
Hegemonia começou. Ele já foi a Morte, mas isso fora há tanto tempo, que até
mesmo a língua que se falava quando ele deixou de sê-lo estava morta. Ele fora
a primeira encarnação da Morte, e agora dormia sobre o túmulo dos antepassados
do último jovem a tomar para si este fardo, moravam ambos sobre o mesmo teto. E
assim como seu antecessor, Felipe Casemiro já estava acordado quando o sol
nasceu.
Seu olhar distante acompanhava o sol
em seu caminhar; raros são os humanos que podem dizer já terem visto a face de
Aurora a carregar sua tocha pela imensidão celeste. Ele, no entanto, não está
feliz; sua face é de sofrimento e dá sinais de há muito não dormir direito. Sua
casa é inexpugnável, ele sabe; nada seria capaz de invadi-la sem sua permissão,
seu coração não tem a mesma sorte.
— De novo acordado, Felipe? — perguntou
André ainda deitado na cama que ambos dividem. Não obteve resposta, o jovem
oráculo permanece na janela a sofrer as dores do mundo, a observar o sol
esconder-se por detrás de pesadas nuvens.
André levantou-se num salto, sendo
um tanto mais alto que seu consorte, e de aparência mais forte, seu abraço
oferecia um corpo impar, como quem diz que deseja proteger o ser amado. Isso
não passava de ilusão, ele sabia; mesmo agora, sendo apenas um mero mortal,
Casemiro seria capaz de dar fim aquele quarto num mínimo gesto sem se cansar.
Não era a toa que seu namorado tinha um artigo da Constituição Geral da
Hegemonia inteiramente voltado para ele; Felipe não era o oráculo mais poderoso
do mundo, mas sabia usar os seus poderes como poucos e conhecia segredos que mortal
algum seria capaz de conceber.
— Eu não consigo dormir. Você não
entende André o quão terrível é os ouvir gritar, noite após noite. São milhares
e só aqui em São Paulo. Eles nos caçam como feras; nos torturam, nos matam
desenfreadamente e para que? Para garantir a existência da Hegemonia, eles
dizem; besteira. Nós servimos para alimentar a histeria e o medo, sem isso,
governo nenhum conseguiria dominar o mundo. Nós somos a desculpa que eles usam
para eliminar quem querem, sem dar respostas. O medo cala as pessoas, André; e
o silêncio delas permite a nossa morte.
— Você não pode fazer nada para
protegê-las, amor. — disse o garoto a beijar o alvo pescoço de Felipe.
— Eu sei; mas a culpa é minha. Se eu
tivesse aceitado que você não amava, que você não me queria; eu jamais teria
feito um acordo com Samael. Que tipo de pessoa faz um acordo com o diabo e lhe
entrega o que ele mais quer; o que ele vem querendo desde que Lucifer
desapareceu? Sem mim, ele jamais teria conseguido o apoio dos lobisomens. E
tudo isso só pra que eu aprendesse a invocar Tertuniel.
— Mas eu te amava. Eu só era tolo o
suficiente pra fingir que não, por medo da reação do meu pai. Agora, ele está
morto; quase toda a minha família está morta. A culpa é também minha.
— Não; que culpa você tem de me
dizer não? Milhares de pessoas recebem não todos os dias e nem por isso invocam
o filho caçula da Morte e pedem o ser amado para si uma vez mais. Eu fui
egoísta, André; tão egoísta que eu troquei o bem estar do mundo para ter uma
noite de amor com você. Tão egoísta que depois que esta noite acabou, eu tentei
me suicidar. Eu me tornei a Morte; e nem assim eu aprendi a ser menos egoísta.
Eu falhei na minha única obrigação.
— Você cumpriu o seu destino. Você
não tinha escolha; tudo que você fez foi chorar, Felipe; foi demonstrar
compaixão e humanidade por alguém que você amava, por seu sobrinho que morria
aos seus braços. Porque a Morte tem de ser tão dura? Tão severa?
— Porque não existe justiça sem dor.
Um sétimo da população mundial teve de morrer para que eu aprendesse isso; um
bilhão de pessoas morreu para que você estivesse hoje em minha cama. Quantas
ainda vão morrer pelo que eu fiz?
— Você se arrepende? — perguntou
André, por fim.
Foi a primeira vez que Felipe sorriu
durante esta conversa.
— Não, se fosse preciso, pra ter
você, eu teria destruído pessoalmente o mundo inteiro. Esta é a minha culpa,
saber que por mais que tenha sido egoísta o que eu fiz; eu teria feito
novamente ainda pior.
O jovem abraçou ainda mais forte o
ser amado, Felipe era egoísta, mimado e cheio de poderes; mas André não tinha
motivo algum para supor que seu namorado não o amasse e faria de tudo para
protegê-lo, senão do mundo, ao menos de si mesmo.
— Você era jovem; tinha uma profecia
nas mãos que dizia que você faria exatamente o que fez; tinha um anjo caído, o
filho da Morte e a Própria ao seu encalço. Não importa suas escolhas, Felipe,
porque você não tinha como fugir de todas essas coisas. Você era um grão de
areia no meio de um poderoso oceano; tudo que você poderia ter feito era
deixar-se levar por ele.
— Talvez, mas Tertuniel sabe: cedo
ou tarde, eu vou começar a lutar.
O dia já havia nascido em Toronto;
contudo, Verônica ainda dormia; não que ela não fosse constantemente
adormentada pelo grito dos aflitos, mas o Canadá era longe o suficiente dos
problemas para que ela pudesse dormir em paz, por hora. No entanto, não é certo
dizer que ela se mantinha ali a salvo de seu destino; há nos sonhos um grande
poder que por muitos é desconhecido, mas não por ela, pois não há nada que um
desesperado possa fazer a não ser sonhar. Ela sonha com um mundo além dos muros
de seu quarto.
Em seu sonho, um homem caminha nu
pelas ruas de Londres, a boca ensangüentada. Não há como imputá-lo de culpa
diante do que fez: matar as próprias filhas; ele era um lobo e não sabia; em
breve, ele matará tantas filhas de outros que se esquecerá da própria, até
vê-la em cada rosto das garotas que ele mandará executar como Guardião. O mundo dos humanos é estranho, Verônica
sabe, todos nós carregamos nossas maldições, a pior delas chama-se passado.
E ele também pode ser uma das nossas
melhores bênçãos; na Times Square, um ator desempregado lembra dos felizes
momentos de sua vida, quando os musicais eram idolatrados como a verdadeira
arte humana. Não há mais lugar pra arte no mundo racional da Hegemonia. Houve
um tempo em que a America Estadunidense fora chamada de terra dos livres, não
mais.
E então, Verônica sonha com os
deuses; com aqueles que permanecem por aqui depois de tanto tempo. Apolo senta-se
ao lado de um amontoado de pedras na ilha flutuante onde esteve um dia; ninguém
sabe, mas ali está enterrada uma de suas primeiras amantes mortais. Ele não
chora, não faz sentido chorar diante da morte de mortais; tudo que ele faz é
esperar. “O que você fez, Gabriel?” ele perguntará a si mesmo. Ela quis lhe
responder, mas que diferença isto faria? Até os deuses podem ser tolos.
Para além dos muros, além das
fronteiras, no final do rio, por detrás do mundo dos homens, depois das
querelas dos deuses, a jovem sonha com venerável morada: Uma terra de onde os
deuses vêm, uma cidade de prata, onde os cintilantes soldados marcham à espera
da iminente guerra. “O que você fez, Gabriel?” eles perguntariam ao seu irmão.
“Ele teve um filho e o filho destruiu o mundo. É uma questão de tempo até que
ele destrua os deuses”. O quão ruim isso seria?
“Basta!” Ruge a voz brilhante e
sombria, chama lá de longe, tão perto, em todo lugar. “Venha!”; chama sem
gênero, sem forma, amorfo, inconstante, chama como um portal, como um beijo. O
Principio, O Fim, o Todo, aquilo que existe acima do Sétimo Céu, além até mesmo
do alto trono do Criador, pois se há algo de realmente inefável em toda a
Existência está ali: A Origem chama a sonhadora para algo que está um tanto
depois da cidade sagrada, pois Isso tem muitos filhos além do céu.
“Não se espera que você entenda. Há
muito que é impossível a tua raça compreender. Há muito que pode ser chamado de
divino para seu povo, não se assuste, pois esta é a penúltima estação deste teu
sonho.”
Há um terraço no meio do nada,
literalmente sobre o vazio, um grande jardim atrás de um palácio de vidro, mais
antigo até mesmo que a cidade dourada; uma terra criada por uma simples frase
no inicio da Existência: “faça-se luz”. Zvezda Dom, A Morada das Estrelas,
permanece vazia, exceto por dois jogadores de xadrez que se enfrentam desde que
as primeiras luzes nasceram.
É um sonho, e como tal, Verônica os
reconhece assim que os vê: o jovem que aqui se apresenta como tendo olhos de
oceano e cabelos dourados é muitas coisas, possui muitos nomes, e muitos são os
entes com os quais compartilha o nome sob o qual o designamos em nossa língua.
Destino movimenta uma peça. A Senhora a sua frente sorri.
— É uma estranha escolha. Há uma
guerra começando e você insiste em acreditar que há uma possibilidade dos
humanos a vencerem. O céu cairá D. eu não vejo como lançar essa peça mudará o
fato de que eles estão num mundo que agora pertence aos deuses. Gabriel teve um
filho, o filho cumpriu a profecia, minhas filhas agora estão todas mortas.
Casemiro tem o que quer, tem o amor ao seu lado. A peça que você move não
mudará isso, ele não tem porque entrar nesta guerra. — Ali, jogando com Destino
está à única que pode o ver como igual. O primeiro ser a despontar da Origem, a
primeira a ouvir a canção que a tudo deu inicio: Aster, a Mãe das Estrelas,
indaga a si mesma sobre o que destino tem em mente.
— Mas ele vai entrar, minha cara.
Esta peça é apenas parte do jogo. Ele não vai lutar porque é filho de um anjo,
ele nem mesmo sabe disso; ele não vai lutar porque esta peça aqui estará com
ele. Não. Ele vai lutar porque sente culpa em seu coração. Ele vai lutar por
ela. — é estranho sentir o olhar de Destino em sua direção, mesmo em um sonho.
Porque agora, Verônica sabia que aquilo era um tanto mais que um sonho. Ela
estava realmente ali, de alguma forma.
— E quem é ela? — perguntou Aster.
— Ela é a última estrela no final
dos tempos.
Não era Destino quem respondia, nem
mesmo ele conhece o caminho das estrelas, pois elas como forças pungentes da
efemeridade possuem apenas uma única soberana acima de Aster: a Morte; a
verdadeira Morte segurou fortemente as mãos de Verônica como se fosse uma
sombra, um lembrete do que estava por vir. O chão sumiu sob os pés e ambas
caíram na escuridão entre os mundos.
Isto é um sonho, portanto, não é
difícil ir de um local a outro da Existência tão rápido como apenas os sonhos
são; caminham num salão dourado e negro duas figuras enlutadas. De mãos dadas,
a Morte, a verdadeira Morte, e Verônica caminham em direção a três caixões no
final do corredor.
Há entes que chamamos de anjos, até
mesmo de deuses; e há seres, três, na verdade, que são tão anteriores a estes,
cuja existência surgiu da Origem, junto com as fundações da cidade dourada onde
residiam nos tempos anteriores ao tempo. O primogênito é um deus conhecido, pai
dos homens, senhor de tudo que há abaixo do céu, o Criador, e embora seja
constantemente confundido com a expressão pura da Origem que se manifestou na
terra há dois milênios, Ele é bem diferente do que conta a vã filosofia humana.
O segundo também nos é conhecido,
embora constantemente confundido com seu general, humanos são ótimos em
confundir os personagens da história de suas vidas, aquele que se rebelou; o
Inimigo, também tem sua culpa em nossa existência. Somos os carcereiros de sua
prisão e expressão máxima de seu plano para alcançar novamente os céus. Nós
somos a imagem e semelhança do Criador, isto é inegável, somos seus filhos; mas
aquilo que nos faz humanos, nossa racionalidade, devemos a ele. O fruto que
comemos de certa árvore, no principio dos tempos, era ele, o devoramos, o
conhecemos. Agora possuímos a ciência do bem e do mal que apenas os deuses
deveriam ter para si.
Entre o Criador e o Inimigo, nossas
almas são poderes que Ela guarda; pois estando entre ambos, não possuímos o
céu, não estamos sob a égide do inferno. O terceiro guarda para si a forma do
feminino, o que apazigua a tensão entre os dois opostos tão masculinos.
Enquanto ambos querem tornar certo, como verdade absoluta, suas formas
diferentes de exercer o poder que possuem; tudo que ela quer é manter perpetuo
o equilíbrio, à medida que ela mesma possa permanecer equilibrada. Ela é a
sombra no meio da guerra entre duas luzes. Seu nome é Izrail.
— Há muito que você não sabe,
Verônica. E há pouca coisa que eu possa te contar neste tempo que temos.
Portanto preste atenção e faça sabiamente suas perguntas.
— Você não é a mesma Morte que me
buscou, não é? Você parece ser a mesma, mas não é. Quem me buscou disse que já
havia sido humano um dia… você é a original, não é? Você é Izrail? Onde esteve
esse tempo todo?
— Sagaz, como sempre, jovem moça, a
questão é: onde eu não estive? A morte está sempre em todo lugar esses dias.
Isto é um sonho, desde que Felipe me perdeu tudo que eu sou é um sonho, um eco
de poder que ainda reside no mundo à espera de ser encontrado. E eu serei,
porque você vai trazê-lo de volta a mim.
— Como?
— Tudo em seu tempo, sem pressa.
Felipe irá encontrar a parte de mim que ainda reside nele, depois que cumprir a
missão que deve cumprir. Há três caixões nesta sala, como você pode ver.
Verônica não era capaz de reconhecer
os mortos que estavam sendo velados, com exceção de um: ela mesma. A visão de
si mesma ali deitada sem vida não a estremeceu, era o que ia acontecer, ela
sabia; ela soube desde o instante que tomou para si o fardo que agora possuía.
— O belo rapaz ao seu lado é meu
filho. Não conte a Azrael quando o vir, mas Tertuniel sempre foi meu favorito,
é pena que tenha escolhido o caminho que escolheu. Felipe deve matá-lo e é o
que fará. Então, ele voltará a mim, mas não voltará a ser eu, não, ele me
redimirá. Haverá o dia em que eu, a verdadeira eu, será necessária de novo, meu
corpo adormecido por todos estes milênios regressará, mas não agora. Agora é
tudo com ele. Agora é tudo sobre vocês dois, Verônica.
— E quem é o terceiro?
— Felipe matará um de meus filhos,
ele matará um deus. Nenhum mortal tem esse direito. Tudo tem seu preço, garota,
ele pagará o dele.
— Mas este não é ele, é?
— Não, não é. Ele iria preferir que
fosse, acredite.
Verônica não entendia; esta era a
verdade. Por um segundo, pareceu que a
humanidade dependia dela para continuar existindo, agora, todos os holofotes do
mundo estavam voltados para Casemiro e ela nada mais se sentia do que uma
coadjuvante neste jogo sorrateiro entre as divindades.
— Não se engane, menina. Você é mais
importante do que pensa. Felipe é um jovem com imensos poderes, é filho de um
dos mais poderosos arcanjos, embora não saiba disso. Já foi parte de mim,
portanto, conhece segredos que a mortal nenhum são revelados, mas ele não
compreende isso, ele não sabe a extensão do poder que tem e teme o preço que
pagará pelas coisas que sabe. Ele tem poder, minha cara, mas jamais poderá
conceder esperança. Sem você, sem aquilo que você representa, a humanidade está
perdida, porque você é ainda mais poderosa do que ele, você é uma estrela e não
teme seu destino. Você o salvará dele mesmo, mas acima de tudo, provará aos
mortais que nada vale um mundo glorioso de racionalidade sem paixão. A
verdadeira luz está nos sentidos, no sentir; na verdadeira glória que é a
aceitação do devir como motor, da transformação como essência. É isso que
significa ser uma estrela, esta é a sua luz. Por favor, e a Morte raramente
pede favores, ilumine o mundo com o que há em seu coração. Não desista.
Por um momento, a jovem vacilou,
percebendo que o mundo que estava em jogo era bem maior que os pilares da
terra. Não, a guerra em que estava se envolvendo tinha repercussão em toda a
Existência, mas que escolha ela tinha? Estava viva por isso e era por isso que
ia viver. Ou morrer.
— Há, no entanto. — disse a Morte,
antes que Verônica pudesse dizer qualquer coisa. — alguém que eu quero que você
conheça. Esta é a última coisa que eu vou lhe contar, depois disso, você estará
por sua conta até o fim.
Lá ao longe, uma figura distante
caminhava com o sol às suas costas; o que era deveras estranho, pois todos
ainda estavam em um corredor com três caixões. Mas sonhos são inquestionáveis,
por isso, a jovem não se perguntou por que o sol brilhou ali dentro, ou porque
de repente, ela se sentiu a agradável brisa sob o calor do deserto. Nem mesmo
se questionou de como ela poderia saber que aquela figura a sua frente era
Laars Zaham. Ela simplesmente sabia, assim são as coisas em sonhos.
As pesadas batidas na porta a
acordaram; não que ela pudesse esquecê-lo, o escreveria mais tarde, para que
pudesse lembrar sempre que sentisse que era necessário. As batidas continuaram.
Não era costume de ninguém ser insistente com ela nos hotéis, certamente não
era um fã. Certamente não era algo bom.
— Verônica. — o rapaz do outro lado
da porta era moreno, um tanto mais alto que ela; e seus olhos escondido por
detrás de grossos cílios esbanjavam preocupação e medo. Ela o conhecia é claro,
ambos haviam tido um rápido romance de verão assim que o Arconte subiu ao poder
e os primeiros guardiões foram convocados, ele era um deles.
— Theo. O que você está fazendo aqui
no Canadá?
— Você já ligou sua TV? Nós
oficialmente estamos tomando posse de toda America do Norte; com isso, apenas
cinco países no mundo ainda não estão sob o domínio completo da Hegemonia, mas
não foi por isso que eu te localizei e vim até aqui. Liga a TV.
Estava em todos os noticiários; o
Arconte estava dando um discurso geral a toda a nação; enaltecendo a sua equipe
médica por ter finalmente descoberto a cura para o câncer que havia tido 95% de
eficiência no teste com humanos.
— Eles estão testando isso nos
oráculos capturados; não estão?
— Sim, mas tem mais.
— No entanto, ainda há aqueles que se voltam contra nossa amada pátria. —
continuou o Arconte. Seus
intensos olhos verdes pareciam encarar Verônica por detrás da tela. —
fico muito entristecido em saber que a base laboratorial em São Francisco que
estava testando um método mais eficiente de cura para a AIDS foi atacada por
oráculos e completamente destruída. Estas criaturas estão se multiplicando,
enraizando-se em nossa cultura como erva daninha e como tal, devem ser
completamente extirpados. Nossa juventude está sendo corrompida por discursos
falaciosos desses cruéis mentecaptos; utilizam leituras de filósofos como
Nietzsche e Deleuse para vangloriar aquilo que chamam de arte acima da
racionalidade; querem destruir todo o progresso que fizemos até então, isso não
pode ser permitido. Neste instante, estamos lançando uma nota para todos os
Tribunais Especiais com uma lista de livros que devem ser evitados por nossos
jovens. Aconselho a todos os pais a queimarem estes livros e denunciarem todos
aqueles que teimam em distribuí-los para a junta de guardiões mais próxima.
— Um índex. O que isso é? A idade
média?
— Eles não podem a acusar de ser um
oráculo porque não podem sentir o seu cheiro. Você tem usado aquilo que eu te
ensinei, não é?
— Sim, claro. Duas vezes no período
de lunação, nunca tive problema algum com os guardiões depois que você me
ensinou aquilo. Sou-lhe muito grata, você poderia entrar em apuros por ter me
ensinado como burlar o sistema de vocês.
— Eu te amei, Veronica; não podia
ter deixado você se descoberta e morta a esta altura. É por isso que estou
aqui, sei que você é uma profunda leitora de Nietzsche e que manteve relações
próximas com a tradutora dos livros de Laars Zaham; não vai demorar muito até
que este tipo de livro seja completamente proibido, o poder do Arconte se
consolida a cada dia. Até mesmo a China e a Coreia do Norte estão repensando
sobre sua decisão de não aderir a Hegemonia, se eles participarem; então
Domenique terá poder de fogo suficiente para subjugar sem maiores problemas os
outros três países. A questão é: em pouco tempo, até mesmo ter um livro desses
em casa vai ser considerado crime. Você tem que começar a se esconder.
— Obrigado pela consideração, Theo,
mas eu me recuso. Não posso me permitir viver minha vida inteira escondida com
medo da sombra do Arconte sobre minha cabeça. Que eles queimem meus livros, se
quiserem; mas eu nunca vou me curvar em relação a isso.
Por um instante, Theo pareceu
decepcionado; mas aquela fora a Verônica por quem ele havia se apaixonado, era
impossível negar. Então, num átimo, puxou-a para perto de si e a beijou
docemente, depois um tanto mais forte. Poderia ter terminado aquela manhã em
sua cama e ela não se recusaria, no entanto, envolver-se com alguém como ela
era saber que não havia como sair ileso. Preferiu abdicar de sua companhia, era
a coisa certa a fazer.
O vazio que deixou ao sair pelo
corredor não foi preenchido. Não porque Verônica acreditasse, por um momento
sequer, que o amava, ou que o teria amado; mas porque era triste ficar sozinha
quando se tem o mundo nas costas e os sentimentos do mundo nas mãos.
Por muito tempo, Verônica deixou-se
seduzir e seduziu muitos homens, mas nunca ficou o suficiente para amá-los.
Isso não é o papel de uma estrela, dizia a si mesma, desde o acidente, fugir do
amor era tudo que ela podia fazer; agora que sabia estar tão perto do fim que
podia sentir o gosto do beijo da Morte, ela sentia falta de beijar alguém de
verdade; de entregar-se inteira.
Por muito tempo, ela escondeu o que
havia em seu coração esperando o fim de sua vida; era hora de ouvir o conselho
de Izrail.
Nenhum comentário:
Postar um comentário