sábado, 16 de novembro de 2013

A voz da Sacerdotisa


Delírios Hiperbóreos 
A voz da sacerdotisa

Lá, do alto de sua torre de marfim, no Templo dos Mistérios de Hiperbórea, canta a sacerdotisa para as salas vazias a sua frente. – entendam, o templo está sempre vazio, pois os hiperbóreos adoram somente a Apolo e a sacerdotisa adora a todos os deuses.
E do alto dos seus próprios mistérios ela fala por si mesma de tempos antes que sua vida existisse. Ela chora, pois compreende estar sempre só na majestade divina que exerce. Seu consorte será sempre um Deus.
De fato, ela não entende a si mesma, mas entende o mundo como nenhum homem poderia entender – nem sobre o mundo e nem sobre ela. – estudou os mistérios por toda a vida e além e antes desta. Ela era o próprio mistério encarnado em si próprio. A Deusa em forma pré-humana.
Ainda há muita coisa sobre mim que se é necessário saber e não há tempo suficiente no mundo para que alguém o saiba.
Ela chorava e suas lágrimas cobriam os mundos que pairavam sobre o poço de Urd, o caldeirão de ferro no meio do salão de mármore. Seu hálito fresco era o vento que tocava a face dos iniciados e sua voz era como o sussurro silencioso que a todos chama e a poucos recebe.
Por hora, seu sussurro a captava nas mil almas que possuía e nos mil amantes que carregava no coração gelado. Ela era a única dentre os hiperbóreos a quem o sorriso eterno jamais foi dado. Ela era a vida que pulsava no contato com os deuses esquecidos.
Por muito, esperou o pouco que pediu ao Destino, mas o Grande Pai é tão austero quanto bondoso e raramente caminhava nas terras em que sempre é verão. A sacerdotisa sabia, mas ousava tentar ignorar, que não adiantava pedir auxilio ao destino, pois seu caminho era livre, como as linhas da mão que inexistiam em sua pele clara.
Tudo que eu sei é que o silêncio da noite não há de calar o vento e os sussurros.
Não havia noite, apenas o silencio noctâmbulo que caminhava oco por sobre os salões, ela podia vê-lo e até tocá-lo se quisesse, mas de que adiantava? Sentia-se cansada demais para pensar...
Seu corpo pulsava sem que ela mesma o usasse. Havia o passado que agora era presente, o ciclo que sempre se repete, ela chorava de novo, ela havia sido dada de novo, ela prometera de novo. Ela não pertencia a si mesma de novo.
Mas há coisa que apesar de misteriosas deveriam de quaisquer formas ser explicadas. Há muito a jovem fora virgem e se entregara ao Deus que a Deusa trouxera. Na noite escura seus cabelos loiros foram tocados e o livro dos rituais fora aberto pela primeira vez. Ali era se tornara a maga, mas logo se perdera nas areias do tempo e do sacerdócio.
O livro agora havia sido aberto, como o coração da sacerdotisa que fora talhado em mil pedaços a cada ano do ciclo. Seus cabelos, agora negros como a própria noite, haviam sido novamente tocados e ela se entregara e entregara seu corpo para uma nova magia.
Em seu ventre o filho do mundo nascia, mas ela era oca por dentro e ele sairia de sua boca como uma profecia não contada. Uma profecia dita há muito tempo quando ela havia amado. As palavras não eram novas, mas o sentido começava a ter novo significado.
A Sacerdotisa via a si mesma e se conhecia através de seus próprios olhos.
Eu vivi vidas além dessa vida e vi coisas além das coisas que se pode ver. Eu vi o céu irromper-se do horizonte no principio dos tempos. Eu vi Deus e ele sabia meu nome. Meu verdadeiro nome.
Sim, seu nome, pois muitos tivera ao longo dos séculos. Pois existia desde o tempo antes das estrelas, mesmo antes de estar viva. Fora Tharzanita, Guarczenacal, Sofia, Amanda, Trevas, Gea, Pandora, Eurídice, Flavia, Alessandra, Alexandra, Cleópatra, Pagu, Channel, ela fora todas as mulheres do mundo antes de ser Tríade, a sacerdotisa do templo dos mistérios. A Deusa.
Triade ouvia o som de sirenes ao longe, talvez advindos do mar principal que era sempre gelado como o coração dos hiperbóreos. Mas não se interessava, os sons, assim como os sonhos, eram apenas ilusões e reflexos de sua própria alma no mundo.
Havia apenas ela e todo o resto era um sonho, um grandioso sonho sonhado por todos os deuses que havia dentro dela.
O Senhor coração, A Senhora Mente, A Sacerdotisa Alma, o Padre Corpo, o Bispo Espírito e o Xamã Existência partilhavam juntos aquela forma feminina para ensinar os mistérios a aqueles que nunca os ouviriam. Ela estava condenada a sempre entender, mas jamais ser entendida.
Eu sou aquela que nenhum homem jamais levantou o véu, eu sou tudo que foi, que é e será. O fruto que pari foi o sol.
Eu sou Maria, eu sou Isis, eu sou Cedriween, eu sou a Religião.
Ela ainda chorava, mas suas lágrimas já não eram mais cheia de lastimas. Seu amor cobria o mundo de paz e felicidade, mas ambos jamais seriam eternos. Pois ela era a mulher que fazia pulsar o mundo e como toda mulher, era tão mutável quanto à lua em seus quatro mistérios e faces.
Apesar de cansada, por um ritual que nem mesmo realizara por si mesma. Ela agora voltava a sentir-se cheia e completa. Sua visão erguia-se acima dos homens e das coisas vãs. Ela podia ouvir Apolo lá fora a chamando e podia ouvir Isis dentro dela gritando por ele.
Ainda não era a hora de se libertar. A torre de Marfim que ainda é a torre das ilusões de todos os homens ainda não estava pronta para ruir. Do alto-mar principal viriam ainda mil barcos e do alto da torre ela os veria passar a espera de cumprir a profecia para o qual fora criada.
De fato, não podia ser entendida em suas palavras. Pois ela era a própria religião e ela precisava de alguém para professá-la. De um homem que através de seus lábios lhe tocasse a alma e lhe abrisse o espírito. O homem que a faria parir a luz de um novo conhecimento. O Deus consorte da Deusa, aquele que jamais a subjugaria e nem seria inferior a ela, sua alma gêmea.
Suas mãos brancas adquiriam um tom vermelho, advindo do cansaço de olhar o espelho de si mesma. Ela ainda cantava sua canção silenciosa e o noctâmbulo ainda vagava indolente pelos mundos dos salões.
Os salões que na verdade eram sua alma, o templo que de fato era seu corpo erigido no País do Verão, o noctâmbulo que nada mais era do que sua sombra, seu duplo que prediria sua morte quando a hora fosse chegava, mas que por hora apenas a fazia lembrar das outras vezes que morrera e os segredos que nessa vida ela não podia deixar morrerem com ela.
Esta era sua última vida, não por imposição do destino, mas porque esperava cumprir seu papel no mundo. O tempo ainda não era chegado, mas chegaria tão breve quanto ela aprenderia mais sobre a Anciã do corpo jovem. Sobre os mistérios da gruta dos mistérios. O dia em que o salão ruiria em verde fogo e vermelho sangue estava tão próximo quanto o hálito do vento norte.
Hiperbórea a chamava e ela não podia mais escondê-la dentro de uma caixinha de pandora, pois até mesmo a esperança se fora. A verde fada estava lá, no salão das florestas, drogada, nua, bêbada e prostituída. A esperança se perdera para sempre por entre as árvores da solidão.
Eu sou aquela que caminha em Calêndula, cheia de promessas e tristezas, aquela que espalha sobre o chão doces duvidas que serão apanhadas por incautos visitantes. Eu sou aquela que ama e foi amada, mas que jamais se entregará nas mãos de alguém que não seja o Escolhido.
Sua respiração se mantinha entrecortada e o livro ainda precisava ser terminado. Ainda havia muito para se conhecer e muitos feitiços silenciosos para despertar do seu interior.
Logo, em mais um de seus sonhos ela estaria no Templo das Estrelas, onde o príncipe negro a mostraria seu sorriso de escárnio e sua amizade eterna. Onde ela sentaria nas escadas, sorrindo enquanto chorava a espera do príncipe Branco.
Haviam muitos príncipes e talvez nenhum deles fosse o escolhido ou talvez assim como ela, o escolhido tivesse muitos nomes e fosse muitos príncipes. De novo, ela recitou a profecia a espera de que novos versos viessem.

O príncipe branco e o príncipe negro juntos estão sob o poço de Urd
Atrelados caminham com suas espadas mortais
A caminho do coração espectral
Cuidado com o cálice ó mortal
Posto que a vida é uma só
Para aqueles que nunca renascem.

E de fato, os novos versos vieram, mas apenas o primeiro era dedicado a ela. O príncipe Branco e o Príncipe negro juntos estão sob o poço de Urd. Mas podiam não ser os mesmos príncipes do Templo das Estrelas. Afinal ali estava entre suas lembranças e as coisas que viveria, mas não vivera de fato. A profecia era tão incerta quanto um sonho de uma noite de verão na terra em que seria eternamente dia.
Antes porem de esquecer os novos versos, os escreveu. Era uma iniciada e aprendera a sempre guardar os mistérios para si e depois mostra-los ao mundo. Se não tivessem significados para ela, de certo o destino se encarregaria de levá-los a quem poderia os entender. E notou, como não poderia deixar de notar, que as palavras juntas formavam um prato ou copa, o Santo Graal do conhecimento.
Estava cansada e ainda pensava no amanha que talvez não viesse e antes de esperar sua visita ao templo das estrelas, resolveu ir visitar um velho amigo no mundo dos sonhos.
Ela visitaria a pessoa a quem ela mais ansiava conhecer.
Ela mesma.


sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A Estrada No Fim de Tudo

Como a maioria de vocês deve saber, estarei lançando na semana que vem um ebook promocional com o primeiro conto do meu novo projeto: Os Corvos; mas para deixar vocês já com um gostinho, aqui disponibilizo o primeiro capitulo da obra e um vídeo sobre o conto feito para o Egoísmo Pitagórico, meu canal do youtube.

Que a morte sempre ouçam suas súplicas,
Thiago Félix



***
Primeira Parte
O senhor do meu sofrimento

Depois de morta, ficarás um dia estendida, sem que, para ninguém, reste qualquer lembrança tua, pois nunca foram tuas as rosas da Piéria.
Desconhecida, então, mesmo no Hades, tua alma errará entre as sombras, as obscuras sombras esquecidas dos mortos…”
(Safo, fragmento número 63)
F


  azia frio e o frio que fazia não era essa que a carne nos conforta, também pudera, meu lugar era bem longe das caldeiras, quase no fim do vagão. O meu assento era um par de irônicos números que sugeriam uma lembrança do que eu abandonara, proporcionando um aviso do que estava por vir: trinta e três, a idade em que cristo fora crucificado, morto e sepultado.
O número perfeito para conduzir um ateu até os mais profundos abismos circulares do inferno. Um número talvez perfeito demais para que justamente eu o obtivesse, mas talvez eu fosse realmente a pessoa certa, aquela que mesmo na ansiedade prestaria atenção nesse detalhe tão ínfimo que passaria despercebido pela maioria.
O trem para o inferno é lento, arrastando-se em ansiedade e temor, como se o passar dos minutos pudessem atravessar os milênios sem sequer chegar a um destino, mas havia um destino, isso era uma certeza eminente. Vagar a esmo pela eternidade, com a crescente duvida de quais seriam meus tormentos não era o bastante, não era nem sequer perto de uma punição adequada.
Não para mim, eu sequer conseguia pensar no sofrimento que me seria infringido; havia uma paz mórbida em meu coração que o ambiente teimava em não querer perturbar. Eu estava pronto, esse era o problema, eu estava pronto para aceitar o meu destino e não havia nada mais que pudesse me fazer tremer diante dessa perspectiva.
Era de se esperar que o trem para a danação eterna estivesse abarrotado de pessoas a gritar e a chorar por perdão, mas a realidade era completamente diferente do que qualquer um pudesse imaginar. Vez por outra, havia um gemido baixo de tristeza, o som baixinho de um choro, tímido demais para se tornar maior que um sussurro: mas era só e deveras momentâneo para sequer incomodar.
Em verdade, aquilo não surpreendia: as cadeiras ocupadas eram poucas e espaçadas, não havia gente suficiente ali para uma grande comoção. Todos se mantinham calados, impassíveis, extremamente solitários e alheios a quem mais estivesse perto.
Nem mesmo a ruiva moça que chorava era digna da atenção de quaisquer dos passageiros, egoísmo é uma característica comum a todos os condenados, eu não estava sendo diferente a observando com minha indiferença característica daqueles que já perderam tudo.
A númerologia parecia brincar com sua significância ou talvez aquele fosse o modo da minha mente trabalhar ante a ociosidade das horas que se passaram desde que eu havia morrido. De qualquer modo, em condenados éramos cinco, um número bruxólico, digno de um sabá e, talvez, se estivéssemos vivos, poderíamos nos juntar em um circulo e fazer uma invocação ao anfitrião que nos esperava.
O sexto passageiro, ciente do número maldito que possuía, era um sedutor demônio que guardava a porta traseira enquanto fumava. Seu cigarro era inacabável, avermelhando-se junto com seus olhos castanhos a cada baforada. Vendo-o, percebi porque o pecado era tão atraente: por detrás daquela sugestiva camiseta colada, um torço de alabastro sugeria-se voluptuoso e eu já em decadência não ousaria hesitar se ele me chamasse para decair um pouco mais no acarpetado chão do trem.
Ele me sorriu, ciente dos pecados que passavam sorrateiros pela minha cabeça. Sua língua, extremamente desejosa lambeu vagarosamente seus rubros lábios e eu a senti como se tocasse os meus. Seu olhar indagou por permissão se voltado para o último dos presentes, erguido portentoso e magnificamente impassível na porta da frente, este, porém, moveu lentamente sua cabeça em negativa. E o sorriso triste e decepcionado que o demônio me lançou quase partiu meu coração, sua mão, porém, discretamente fechou-se e eu senti seu rígido e prazeroso toque num único efêmero momento.
Meus olhos então se encontraram naquele que me negara o prazer voluptuoso do pecado: o sétimo passageiro, portador do número que representa a divindade; como tal, ele era parte da luz que povoa o mundo.
Austero com sua espada flamejante, guardando a porta que levava ao maquinista, estava um anjo. Sua alva pele brilhava cintilante como se possuísse o sol em si mesma; parecendo ainda mais brilhante que sua dourada armadura.
Seus olhos continham os céus, seus lábios o fogo, seus cabelos o sol. Sua beleza não era dotada de metáforas, ele era, de fato, forjado das partes mais grandiosas de toda criação. Seu corpo era o ápice do gênesis e eu não podia deixar de perceber sua semelhança com o demônio, contudo, ele era algo maior, magnífico. Sua beleza não era apática, fútil e voluptuosa, era, em verdade, carregada de sabedoria, pureza, beleza e significância.
Vê-lo não significava adora-lo ou mesmo o desejar, vê-lo era como o amar e sentir dentro do peito, o desejo intrínseco de ser como ele, para um dia ver em seus olhos a admiração.
Entretanto, tudo que eu via naquele céu era decepção e repulsa. Nunca antes eu me sentira tão vulgar, tão baixo, tão mesquinho e pela primeira vez, dentro do trem que me levaria ao inferno, eu senti o peso de ser punido.
Nenhuma dor era mais poderosa do que aquele olhar.
Então, para evitá-lo, pela primeira vez eu voltei meu olhar a algo que não fosse minhas próprias divagações: a ruiva garota que chorava. Esta era de um branco róseo tal qual uma matrona de cera, seus cabelos eram de um vermelho acobreado sem viço, mortos como seus verdes olhos também pareciam estar.
Levantei-me, tentando caminhar em sua direção. O ar era denso como o peso da culpa e cada um de meus passos mais se assemelharam ao caminho para o calvário do que a uma simples caminhada. Ela era incapaz de perceber minha presença, absorta em seus próprios pensamentos.
A toquei gentilmente e sorri, o mais cálido e simpático que pude, mas essa é uma atitude incomum no inferno e mesmo estando apenas em seu caminho, parecia um erro agir daquela maneira. Ela olhou nos meus olhos perdida e eu notei que ela havia morrido jovem, jovem demais para ainda estar deveras assustada com tudo aquilo.
Eu não. Eu já havia aceitado a morte, assim como aceitei a solidão enquanto estava vivo. Também pudera, apesar de ali aparentar ter não mais que vinte e poucos anos, quando meu coração finalmente parou por puro cansaço, seis décadas já haviam se passado desde que eu cometera o pecado que me trouxera até aqui.
Sentei-me ao seu lado, sem fazer pergunta alguma. O motivo de sua condenação era obvia: sangue jazia coagulado pelo meio de suas pernas, indicando não só a forma como morrera, mas também o motivo por ela estar aqui, chorando feito uma criança.
— Você estava grávida de quantos meses? —  perguntei.
— Seis —  seus olhos exprimiam incredulidade, como quem esperava gritos ao invés de perguntas. — Era tarde demais para que algum remédio fizesse efeito. Meus pais tentaram me dissuadir da idéia, mas Carlos havia me largado e eu precisava me vingar dele de alguma forma. Não sei por que eu cometi tamanha burrice, eu sou uma tola, uma idiota! — ela começou a chorar copiosamente, chamando atenção dos sobrenaturais seres que nos vigiavam, mas não o suficiente para que qualquer um deles esboçasse alguma reação. — Eu imitei a idéia de um seriado, coloquei um ferro em mim mesma, esperando assim que o bebe morresse, mas acabei pegando uma infecção e morrendo. Acho que foi melhor assim, deve ter sido castigo de Deus pelo o que eu fiz.
— O castigo está apenas começando. — estranhamente aquilo pareceu confortá-la, mas eu a entendia. Eu também sentia como se dor alguma pudesse me redimir. — Então é tolice começar a chorar agora, quando tudo que temos para sofrer é pela espera.
— Eu não estou chorando por mim. Eu estou chorando pelo meu bebe. Ele merecia ter uma vida boa. Era um menino, é estranho, mas agora eu não consigo parar de imaginar como teria sido a infância dele: se ele seria um bom garoto, se ele jogaria futebol bem, se ele teria muitos amigos. Eu daria tudo para saber como seriam as namoradinhas dele.
— Ou os namoradinhos — eu disse, sem me dar conta de que aquilo não era o tipo de coisa a se dizer a uma mãe, mesmo uma que matara o próprio filho.
— Eu não me importaria se ele fosse gay. Eu odiava os gays quando estava viva, mas acho que era tudo por causa da religião e porque o meu Carlos me deixou por um cara. Agora que eu estou morta percebo o quão idiota foi a atitude dele, mas não porque ele gostava de homens e sim porque ele era um canalha, não importando sua sexualidade. É estranho o quanto a gente cresce quando se despe de tudo aquilo que deveria ser.
— Então seu namorado era narniano? Quero dizer… ele estava no armário? Não o culpe, é difícil viver na situação dele, sem se aceitar. O que ele fez foi errado, mas ele estava apenas confuso, assim como você também estava quando fez o que fez. É duro viver num mundo onde você mesmo não se aceita.
— Então você acha que tudo que eu estava era confusa? — Ela disse, incrédula.
— Ouça, eu mesmo já me apaixonei e também fui jovem. Um coração partido faz a gente cometer uma série de coisas que nunca faríamos se estivéssemos bem. O que você fez foi estupidez, mas você tinha acabado de ser largada, estava grávida, tinha quantos? Dezesseis anos?
— Quinze.
— Está vendo? Você era jovem, estava em desespero. Fez a primeira coisa que passou em sua cabeça. Você me lembra Medeia, uma personagem mitológica grega. Todo mundo lembra dela como a mulher mais atroz de toda a literatura clássica por matar os próprios filhos para se vingar do marido, mas pouca gente lembra o porquê.
— E porque foi?
— Porque ela fez tudo para o marido. Entregou-lhe o velocino de ouro: o grande tesouro de seu reino. Matou seu pai e seu irmão para protegê-lo e no final das contas, ele a deixou para casar-se com uma princesa mais jovem.
— E qual foi o fim dela? — disse a inocente moça, talvez esperando por alguma redenção no final daquela história. Infelizmente, como são as tragédias, redenção era algo tão longe quanto o céu era para nós dois.
— Ela morreu sozinha, deixada abandonada em uma ilha, amaldiçoada pelos homens e pelos deuses.
A jovem calou-se, virando-se por um momento a ficar a janela sem, no entanto, conseguir ver nada. O breu do lado de fora ainda era total. Ela pareceu digerir toda aquela informação e talvez calcular as conseqüências de seus próprios atos, por fim, depois do que me pareceu meia hora, mas poderia ter sido um quarto de século , ela sorriu em minha direção e disse simplesmente:
— É justo.
— Talvez seja.
— Mas então… você me disse que foi apaixonado uma vez. O que aconteceu?
— Ele morreu por minha culpa. — disse cabisbaixo, demonstrando que ainda não me sentia forte o suficiente para falar sobre aquilo, mesmo tendo se passado tanto tempo.
— Qual era o nome dele?
— Henrique, eu li em seu santinho de morte, ele nunca me disse e é por eu nunca ter tido a coragem de perguntar que agora eu estou aqui.
— Meu avó sempre dizia — ela sorriu ao lembrar-se de sua vida anterior —  que o diabo mora nos detalhes e o inferno eram todas as coisas não ditas que não pareciam ter importância.
— É.
Percebi que aquele era o momento perfeito para que eu saísse dali. Não importava o quanto minha resposta parecera vaga, eu não queria falar sobre aquilo. Não depois de todos os anos de tristeza que isso causara ao meu coração, destruindo-me por dentro, arrasando todos os meus sonhos, até que por fim eu morresse sozinho, após dois casamentos, deixando uma vida bem sucedida — e vazia. — para trás.
Algo queimava em meu estomago, uma sensação amarga que subia por minha garganta e me causava calafrios. Lágrimas, eu as conhecia de tempos imemoriais, de quanto o céu ainda era azul e o inferno era apenas uma vaga idéia que os cristãos inventaram para se sentirem privilegiados.
De alguma forma, tais lágrimas fizeram-me me sentir despido, fraco e aquilo me revoltou. Não era hora para ceder à depressão que tornara a minha vida um inferno morno tão insuportável quanto era possível.
Caminhei então pesadamente, ignorando o impávido e pesado olhar que o anjo empregava às minhas costas. Em toda minha vida eu tentara me redimir de pecados que existia apenas em minha cabeça, eu sabia exatamente porque estava sendo condenado: eu estava sendo condenado por nunca ter tentando, por ter sido temeroso, por ter sido um covarde.
Naquele momento, entreguei-me nas mãos do desespero, da raiva e da repulsa por mim mesmo e o demônio? Este me devolveu o beijo com volúpia, mas sem poderes sobrenaturais, apenas fortes mãos tateando minhas costas e seus lábios percorrendo meu pescoço, queixo e lábios, de novo, de novo e de novo, não necessariamente nessa ordem.
Eu havia decaído a um nível que já não havia mais permissões a serem pedidas, nos enroscamos feito serpentes nos corpos um do outro, rasgando as roupas que nos cobriam e juntos experimentamos todas as vertentes da luxuria ali mesmo, sem se importar com aqueles que inevitavelmente nos viam.
Asmodeus, esse era o nome daquele com quem eu cometia concupiscências no rubro chão acarpetado, beijou-me novamente no pescoço, descendo sua língua pelo meu torso, ao encontro dos róseos mamilos que eu sustinha rijos, delineados pelos inúmeros anos em que eu freqüentara a academia.
Mordico-os lentamente, depois com mais força, levando-me a um prazer nunca antes sentido em momento algum de minha vida, mas aquele momento estava apenas começando e quanto mais sua avermelhada boca de veludo descia pela minha barriga em direções mais sensíveis ao prazer, mais minha respiração entrecortada se tornava pesada e minhas fortes pernas prendiam seu corpo com mais força ao meu.
Terminando de me enrijecer e fazendo-me ter espasmos involuntários de desejo ele pousou uma forte mão em meu peito e subiu em meu ventre, executando com maestria movimentos rítmicos.
No entanto, aquele momento que em vida parecia explodir em seu ápice em não mais do que dez minutos, em morte não havia limites, levando-me para além do orgasmo, para um mundo em que nunca estive e — sabia — nunca estaria de novo depois que o corpo de Asmodeus por fim me abandonasse.
Ele, é claro, não fazia quaisquer menções de que desejava fazer aquilo, largando meu ventre e correndo novamente com sua boca pelo meu corpo em direção ao meu pescoço, mordendo-o com desejo, puxando meu corpo para perto do meu pela minha cintura. Subiu um pouco mais para morder a ponta de minha orelha e depois passando lentamente sua língua por ela.
Meu ponto fraco. Ali, naquele momento, num raro momento de iniciativa empurrei-o e subi em seu corpo, mordendo cada parte de seu abdômen duríssimo, subindo por seu peito forte e seus ombros largos até seus lábios que eu tanto desejava provar novamente.
Seus lábios tinham gosto de verão e jambo tirado do pé ou tinham gosto de chuva durante uma tempestade. De fato, ele tinha o gosto de todos os amantes que já tive e aqueles que eu deveria ter tido, mas que o destino tomou de mim sem que eu percebesse.
Então, sem dar aviso, ele virou-me apertou com força minhas nádegas, invadindo-as totalmente sem pudor, tomando meu corpo como sendo seu, uma, duas, três, duzentas e quarenta e duas vezes, até por fim saciar sua vontade e dar-se para mim, para que então eu saciasse a minha.
Saciamo-nos dos corpos um do outro, como Adão e Lilith no paraíso, bem antes de Eva e o casamento e até mesmo o romantismo surgirem. Entregamos-nos completamente a luxúria, mas isso me denunciava mais do que qualquer outra coisa, afinal de contas, ele mergulhou em sua própria natureza e eu inadvertidamente me afoguei ao segui-lo sôfrego e sedento.
Fechei meus olhos por um instante e um breve lampejo de arrependimento invadiu meu rosto ruborizado — agora completamente consciente dos olhos que me julgavam — pesadas lágrimas rolaram pela minha face e eu desejei nunca mais ter de abrir os meus novamente.
No entanto, enquanto eu estava lá, com frio, sozinho, nu e completamente entregue a auto-piedade, um beijo invadiu o muro de minha lamentação e este era completamente diferente do primeiro.
Os lábios eram quentes como o sol e beija-los era como sentir o nascer do dia no meu coração. Suas mãos traziam todo conforto que eu precisava e quando eu abri os olhos, encarando o anjo que me salvara da autodepreciação, ele parou de me beijar e sorriu amavelmente, deitando-se ao meu lado.
Encostei minha cabeça em seu delicado peito — agora nu. — percebendo a maciez sobrenatural de sua pele, confortável como a campina em meus sonhos, na qual inúmeras vezes eu me deitei com o rapaz por quem eu de certa forma de apaixonara — mas jamais perguntara o nome.
 Fechei meus olhos novamente, resgatando aquele sonho que tantas vezes me invadira na juventude e enquanto Haniel, o anjo, segurava minha mão eu me senti novamente ali, sob a bruxelante luz do luar, embaixo da fina garoa, dormindo junto aquele que eu amava.
No entanto, fora apenas um sonho e aquele momento fora apenas um pequeno lampejo dele. Quando novamente abri os olhos, estava novamente vestido com as mesmas roupas que o demônio rasgara.
— Você experimentou coisas demais na vida Miguel para se deixar levar por puro desejo. Você por acaso não se lembra como é a sensação de se apaixonar, puramente pelo desejo de se apaixonar? — Ele disse, beijando-me de maneira suave; aquele beijo fez com que eu me lembrasse.
Cai em lágrimas, ainda arrependido de ter descido a um ponto ainda mais baixo do que eu havia descido quando vivo. Abracei-o, buscando em seus braços o conforto que me faltou em toda a vida, mas mesmo a luz da qual ele era feito não era suficiente… nem mesmo em seus portentosos braços eu havia encontrado a paz.
Talvez não houvesse paz para mim, afinal de contas, eu estava indo para o inferno carregado pela minha culpa. Anjo nenhum podia me dar àquilo que eu não merecia. O céu estava carregado de justiça, eu sabia.
— O céu está carregado de justiça —  ele me disse depois que eu me acalmei, com sua voz suave como o vento de primavera — no entanto, justiça significa dar o necessário e fazer o que é preciso. E às vezes, isso traz conseqüências inesperadas.
Encarei-o sem entender a profundeza do significado de suas palavras, ele sorriu novamente com aquele sorriso capaz de fazer o mundo parar de girar se assim o desejasse.
— Você foi o mais baixo que estava disposto a ir para se martirizar. É hora, no entanto, de parar de sentir pena de si mesmo. Aqui ainda não é o inferno e você ainda tem tempo de lá entregar-se a sua culpa, mas há seu tempo. Agora, você está atrasado para uma coisa.
Ele tomou-me pelo braço, me levando corredor à frente passando por cada um dos condenados que agora me assistiam de fato curiosos com a sina que eu cumpria. Éramos ao todo cinco: a jovem garota que abortara, o velho negro que carregava em suas mãos os dados nos quais era viciado, a católica fervorosa detentora do olhar mais acusativo que eu já vira em minha vida, eu com meu coração culpado e o rapaz de não mais do que vinte anos com os pulsos marcados, cuja aparência me era vagamente familiar.
Este sorriu ao me ver, num misto de lascívia e afeto que me fizeram imediatamente reconhece-lo. Afinal, ele era meu anjo e meu demônio.  Ele era o meu céu, salvando-me do caos que fora minha adolescência, a minha perdição, o motivo pelo qual eu estava ali.
Ele era alguém cujo nome eu não devia saber, mas cujos olhos eu reconheceria até no inferno. Então, olhando-me como um velho amigo, pela segunda vez em toda minha vida eu escutara sua voz, desta vez a me dizer:
— Você demorou, estava começando a pensar que você não viria!
Como se eu tivesse escolha.


quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Oníricos Palácios

Oníricos Palácios
“Amor é o filho mais sensato de Desejo, no entanto, está sempre se esquecendo de quem é. Sozinho, nada faz senão sentar-se e chorar, deixando-se esvair aos poucos, entregando- se aos seus primos mais próximos, os desgarrados filhos de Desespero: Solidão e Monotonia.
Amor é um brilhante jovem iluminado por luzes multicoloridas, mas é frágil demais para viver muito tempo no mundo real. Sem loucura, para tirar-lhe de sua ilusão construída à distância e lhe forçar a dar o primeiro passo,

Amor seria apenas um sonho num palácio esquecido.”

Ele está na chuva. Não que ele esteja chorando, não é a tristeza que o consome, mas a falta de si mesmo. Em sua mão um coração de cristal translúcido brilha sob a cor dos raios distantes. A noite vibra dançante ao seu lado, mas tudo que ele observa são as cinzas de sua própria existência. Ele não se encontra em suas imagens refletidas.
Está tarde, já passa da meia noite e as belas carruagens já se tornaram abóboras. A mágica da Cinderela se perdera, mas todos continuavam freneticamente dançando no baile. Uma boate era uma boate, mesmo passada à hora da magia onde todas as pessoas são belas e estão bem arrumadas.
O cheiro do álcool inebria. Todos dançam. Todos têm um coração partido e um amor oculto que desejam afogar no uísque e nas batidas rítmicas da música. Todos tentam substituir as batidas do coração por uma melodia sem letra.
Entretanto, ele continua na chuva. Perdido, amorfo em sua mente. Apenas uma peça defeituosa no incomensurável relógio da vida. Já passa da décima segunda badalada noturna e descalça Cinderela corre em direção a sua abóbora.
Encharcada, ela não vê o estranho parado na porta da boate. Se visse, não se importaria, mas ousaria sorrir timidamente apenas pela educação inerente de sua natureza. Apenas para desarmá-lo caso ele fosse algum lunático.
Claramente, o rapaz é uma estranha espécie de monstro voraz que tudo deseja. E não é difícil imagina-lo segurando perigosas fechas fatais que levariam senão a morte, a uma loucura ininterrupta e eterna. Ainda assim, Cinderela sorriria, se o notasse.
Desgrenhada, ela chora. Senta-se no meio fio e chora como nunca chorou antes em sua vida. A magia acabou e ela irrompeu em lágrimas cadentes e pulsantes por seu coração esperançoso. Alguma coisa faltava em seu peito, mas ela não conseguia perceber o que.
Sentada, desgrenhada e já sem atrativos, ela se descobre apenas uma garota tola e suburbana. Seu nome é apenas Joana e singularmente ela percebe no meio da chuva que a tal da magia nunca existiu. Ela comprara o vestido, ela fizera o irmão traze-la de carro, mesmo sabendo que ele a buscaria de bicicleta e ela jamais conhecera o príncipe encantado. Ela deixou de acreditar em magia.
Não notado, abandonado na chuva, o estranho continua sem identidade. Apenas um estranho no meio da chuva, cabisbaixo junto a uma moça que ele também não notara. Sentou-se, virtualmente invisível e cego ao lado dela, antes sequer notar sua presença.
Joana, que agora já não mais se achava Cinderela, foi a primeira a notar a presença estranha ao seu lado. Fitou longamente aqueles olhos cintilantes e em seu coração as multicoloridas engrenagens da magia passaram a trabalhar como nunca antes trabalharam. Ela o beijou longamente, antes que ele se apercebesse dela. Sorriu e correu de volta a boate com seu estonteante penteado e seu magnífico vestido de cetim.
O rapaz demorou a perceber o beijo e apenas deu-se por conta da garota quando ela correu em direção a porta da boate. Com o reflexo dos raios, ela parecia calçar sapatos de cristal.
Levantou-se reticente do meio fio, ainda tentando absorver aquela imagem e aquele gosto salgado do beijo. Havia algo que ele deixara escapar, mas ainda não conseguia identificar exatamente o que.
Seu reflexo no carro o fitou longamente, com um fantasma de um sorriso. Só então ele percebeu quem ele era e o tal fantasma voltou à vida. A própria chuva ganhara uma conotação diferente e ele assobiou uma canção enquanto entrava na boate, cujo nome significava A Dourada.
Raindrops keep falling on my head… Ele cantarolava enquanto passou despercebido pelo segurança. O alto, forte e atlético guarda da porta flertava com uma loira miúda, de não mais de um metro e cinqüenta: uma boneca animada. O estranho, que agora se conhecia muito bem não se surpreendeu.
Todos ainda dançavam ritmados sob a dança dos corações partidos e já altos de bebida, mal se lembravam de suas dores e de quem eram. Até mesmo o príncipe que nem sequer virou-se de sua vodca para fitar Cinderela.
Onde está o amor? Perguntou Fergie em sua música habilmente escolhida pelo DJ. Este nutria um secreto sentimento pelo barman que gratuitamente oferecia um copo de vinho ao estranho que acabara de entrar na boate.
O barman fitava os olhos do rapaz como se não houvesse nada mais belo, nada mais desejável, nada melhor no mundo além daqueles coloridos olhos de arco-íris. A verdade era que realmente não havia. Onde está o amor? Perguntou Fergie.
— Eu estou aqui. — Respondeu o estranho. — Eu sempre estive aqui.
Ele fechou os olhos e apesar de sentir-se molhado e de possuir um aspecto doentio, ele sorriu. Segurou firmemente em sua mão o coração multicolorido, puxou as amarras que o prendiam ao seu pescoço e o lançou ao chão com toda força que havia.
As cores vibrantes da boate pareciam opacas e sem vida em comparação com as dançantes e multicoloridas cores que dançavam ao redor do estranho chamado Amor, cujos olhos possuíam a cor de supernovas brilhantes e diamantes lapidados com luzes de todos os tons prismáticos.
Seus cabelos loiros enxugaram e ele parecia trajado com brilhantes sedas dos tempos antigos, quando os deuses verdadeiros caminhavam com a humanidade em harmonia, ele sorriu e brilhou com o calor de todos os corações que dançavam.
A luz de seu coração multicolorido espalhou-se ao redor de cada ser vivente naquela boate. Iluminar o local era apenas a mínima coisa que a tal essência poderosa fazia, modifica-lo e torna-lo um amplo salão de um castelo em um baile fora a coisa mais irrisória que ela podia fazer. Dada à mudança que se operou em cada um dos corações ali presentes, as mudanças do ambiente mal foram percebidas.
O escritor e seu namorado com uma caveira no pescoço deram-se as mãos e dançaram insólitos diante de todos que atordoavam ainda estavam, eles foram os primeiros a dançar a nova dança, porque jamais dançaram a dança dos corações partidos. Aline, a tal caveira branca e chamativa, sorria levemente indecorosa com sua natureza. Naquela noite ela não se importou em sorrir.
O DJ, percebeu já não mais ser necessário, pois a musica vinha daquele lugar de onde vem os sonhos, inatingível na maioria das vezes em que estamos despertos, de todo lugar e de lugar nenhum ao mesmo tempo.  Desceu de onde quer que estava, posto que sua bancada naquele mundo não existia e pediu uma dança ao barman que o esperava. Já não eram mais secretos os sentimentos que cada um dos dois nutria.
Casais juntaram-se ao som da musica que para cada um era diferente. Não era mais a vontade de substituir as batidas do coração por outras batidas, a musica que agora tocava era de um tom superior, como se ela pudesse entender a alma de cada um, de um jeito que nem mesmo eles eram capazes de entender.
Amor vibrou ao descobrir-se em todo lugar e sorriu alegremente. Deu alguns passos desventurados e girou como um maluco, pois era livre como um quasar errante pulsando pelo universo.
A dama de farrapos multicores sorria desvairada. Seus olhos heterocromáticos, azul e verde possuíam um brilho inocente, de uma alegria sem par no universo, uma alegria descomedida, despretensiosa e sem objetivo. Seus cabelos em tons loiros, azuis e vermelhos dançavam desgrenhados suas próprias danças, eles reluziam dando fulgor a face branca maquiada em tons rosados da jovem mulher.
Apesar de todo aspecto desleixado, ela era linda e ao vê-la Amor brilhou um tanto mais intensamente. Sorrindo com infantilidade e chamando-a para dançar sem tato ou jeito.
Loucura e Amor juntos dançavam apaixonadamente.

Sob luzes vivazes no cubículo negro, o príncipe ébrio maldizia a própria sorte, ainda bebendo vodka, uísque e tequila. Em sua cegueira, ele não percebeu o brilho opulente que levara a todos para uma dimensão celeste, pura e bela. Sozinho com sua bebida, ele ainda permanecia em seu inferno chamado desespero.
Cinderela não mostrou sinais de estar aborrecida. No escuro, sem musica alguma ela fitou seu príncipe com olhar meigo e um sorriso sincero e brilhante. Sua voz suave e aveludada precisava ser ouvida para que ela fosse notada.
— Danilo? — Ela disse temerosa em não ser ouvida.
Ele ouviu sua voz como um sussurro por detrás do mar de vodka, mas ainda assim a ouviu e foi suficiente para virar-se e vê-la. Vestida daquela forma, Joana mostrava-se uma figura onírica, como um sonho ou uma princesa dos contos de fada aos quais ele nunca dera importância.
No chão, ele percebera uma estranha jóia translúcida que ao seu toque adquiriu estranhas cores dançantes. Mesmo não sabendo como ela fora parar ali, ele sentiu aquele coração quente em sua mão como se fosse dele; e cambaleante, cheirando fortemente a álcool ele aproximou-se da onírica imagem que era Joana.
De bom grado, ela aceitou o presente deixando que desajeitado ele o colocasse em seu pescoço, singularmente não havia repulsa em seus modos, apesar de estar sendo cortejada por um bêbado, aquele era seu príncipe e nada nele estava errado.
De olhos fechados, ambos se beijaram e a luz que se seguiu da jóia, iluminada pelo calor dos corações de ambos, invadiu até mesmo a escuridão de suas pálpebras fechadas. No meio do salão, o belo príncipe bêbado, agora apenas de amor por Cinderela, abriu os olhos, reconhecendo ao seu redor o próprio palácio iluminado por luzes de sonho. Sorriu para aquela que seria sua esposa e a mãe de seus filhos.
Em um mundo sem magia chovia intensamente, mas ali as luzes deixaram-se esmaecer para que por trás das janelas a gigantesca lua jorrasse sua luz prateada ao redor dos dois amantes.
Cinderela quedou sua face no forte ombro de seu príncipe e tomados pela prateada claridade, dançaram como Amor e Loucura: apaixonadamente.

domingo, 23 de junho de 2013

Concupiscência

Concupiscência
“Concupiscência é a filha mais jovem de desejo. Sua essência é o caos que há em cada beijo, a cada vez que um amante abre sua porta e suas pernas. Ela é um mundo inteiro de coisas a serem descobertas em seu corpo moreno e esguio, um universo de caricias e volúpia. Ela é o início de toda a vida, a compulsão abissal que cada um de nós têm pelo corpo alheio, a fome irracional e libertina pelos lábios do outro; a canção telúrica de atração entre a taça e o obelisco.

Concupiscência é um copo de uísque, um cigarro e um sorriso.

Inteira pernas, coxas e segredos...”

Suor entre peles suadas, suspiros intermináveis dele sob as coxas intermináveis dela. Ela, é claro, era toda sorrisos, mordendo-o como jambo maduro e rindo em apetite ébrio e apetecencia. 
Balançava a cabeça, não em duvida ou negação, mas como fazem os leões a balançar suas jubas magníficas e cheias de sol, ela possuía a lua em suas madeixas de cobre e sua boca carnuda e vermelha eram os desígnios secretos de Marte.
O deus da guerra estava em seus lábios e ela percorria com sua língua molhada sua lança e os dois escudos que ele trazia na base entre os flancos de pelos pubianos. Ele era todo suspiros e gritos, inteiramente entregue a ebriedade do momento. Inteiramente dominado pelo par de olhos verdes demoníacos que o possuíam por completo coroando aquele corado rosto angelical.
Ela não possuía um nome, forças pungentes como aquela jovem de feições concupiscentes são dotadas apenas de instinto. Apenas do movimento eterno de vai e vem sob os lençóis rasgados, ela beija seu umbigo, peito, tórax e boca. Duas orelhas não eram suficientes para sua língua tácita e desejosa.
Alex não entendia como alguém como ela o usava dessa forma. Há quanto tempo ele a conhecia? Mil anos, quatro, cinco? Parecia que ele podia entender toda a alma dela naquele instante, traduzindo sexo em cada movimento suave de seu corpo curvilíneo, parecia a conhecer a anos, mas não fazia sequer um par de horas desde que ela a trouxe de volta ao apartamento dele, conhecendo-o por detrás do primeiro copo de uísque que ele tomava em sua vida.
Sorte? Sorte não era uma palavra que se podia usar naquele momento. Aquele segundo era um mistério, um rito não revelado de um povo esquecido no tempo, de uma magia perdida, queimada junto ao farol de Alexandria. Fechando seus olhos, ele quase podia ver o estandarte fálico que se erguia decaindo em fogo, assim como o seu se esvaia em gozo e excitação.
Ele gritou, desejou parar até. O nível daquele prazer era sobre-humano, não podendo ser real, beirando a base do impossível. No entanto, fechando os olhos tudo era possibilidade e sua mão perdia-se no cabelo dela, puxando-a com força de maneira mais selvagem para perto de si.
Esperou protestos que jamais vieram. Ela ria, ela ria e ria como se soubesse um segredo do qual ele partilhava sem compreender. Como se ela fosse a sacerdotisa ancestral que conduzia a faca ante o peito do adolescente virgem que gemia perante seu destino inevitável. Ele era de fato virgem, mas ela não possuía uma faca, apenas seus beijos, apenas seus lábios, apenas suas coxas grossas e morenas.
Seus peitos eram rijos, fartos, Alex de apercebia disto enquanto os descobria lentamente com suas mãos tremulas. Porém, restava pouco espaço para sua percepção enquanto ela o cavalgava como um potro que acabara de se tornar o novo reprodutor da fazenda: de maneira arredia, incontrolável, tempestuosa.
Quando ele fantasiava, com suas mãos em seu sexo, seus instantes de prazer não chegavam a durar mais que três ou seis minutos. No entanto, já estava ali fazia horas. Quando fora a última vez em que comera algo que não fosse o fruto proibido entre as pernas de sua deusa? Não conseguia lembrar, mas não podia ser muito, afinal não sentia fome de nada que não fosse ela, de nada que não fosse dela.
Alex a tomou com força, quase violentamente, tornando-se homem, o consorte poderoso da deusa, o senhor absoluto daquela terra e como Marte, tomou Vênus nua em suas posições mais animalescas. Ele a usou como se fosse um homem, mas dela não ouviu protestos ou dor.
Dela também não ouviu gemidos, mas podia sentir sua aprovação no modo como ela movimentava-se, suavemente lasciva, entregue em total graça ao que fazia, entregue inteiramente no braço dele.
Ela o prendeu em suas coxas puxando-o cada vez mais forte para perto dela. Arranhando-o lentamente, cada vez com mais força, já voltada novamente para ele, que agora se movimentava como seu igual. Ambos estavam conectados e queimavam em desejo e excitação.
Ele não notou a dor que vertia de suas costas sangrentas, ou mesmo de seus lábios já roxos de tanto serem beijados ou das partes de seu corpo que estavam esfoladas devido à repetição demasiada de seus movimentos. Alex permanecia cego diante da figura a qual era devoto.
Totalmente entregue aos seus desígnios, inocentemente envergando-se cada vez mais dentro dela; ele deixou-se incendiar como uma fogueira, cuja tocha causadora da existência estava nas mãos daquela mulher a quem ele devia tudo. E quando ela acendeu a pira que era o corpo dele, ele incendiou-se por completo, se deixando levar apenas pelo prazer daquele momento que era derradeiro e único,
 Fechou os olhos enquanto seu falo semeava a fértil terra daquela mulher, naquele momento ele viu a explosão das estrelas, o nascimento dos primeiros cometas, a formação da terra. Em cada coisa ele via o modo como desde o principio dos tempos ela existira, o principio casual do desejo, a força que move todas as outras.
Tudo tem o desejo de ser, de vir a existir; ele agora via e entendia que ela era a encarnação vida daquele desejo. Lágrimas caíram de seus olhos em profunda paixão, devotado como um louco a aquele momento.
Alex apagou-se lentamente, exaurido pela força do rito que acabara de cumprir. Jamais saberia seu verdadeiro nome, sequer se ela, de fato, era dotada de nominação, qualquer pergunta perdera-se no exato momento em que ele perdera suas forças completamente extasiado.
Ele esvaiu-se em sexo, fechando seus olhos para nunca mais abri-los.
Ela abotoou os botões de sua camisa, dei-lhe um beijo na testa em despedida e sorriu. Sorriu porque não importava o quanto ele fosse jovem e bonito, ela não sentia remorso por aquela vida desperdiçada; afinal, diante dela, Alex não era nada mais do que um instante de gozo.
Regozijada, tudo que ela conhecia era o prazer. Sua essência era a efervescência sublime do amor. E como tal, o beijou uma última vez em agradecimento antes de ir.
Antes do próximo copo de uísque.


terça-feira, 4 de junho de 2013

As luzes




As luzes

Ando por sobre as quedas,
Mas não é nas pedras da vida que tropeço,
São nas luzes no final da festa,
Vidro quebrado, orbes incompletos.
Oh! Que maravilha é viver


It's ok to feel the rain on my hands, my love, my enemy …
A mesma música, de novo e de novo, enquanto na estrada apenas o som da chuva e dos carros, que passavam rápidos demais para serem ouvidos por muito tempo, imperava. Miguel, no entanto, os ouvia atentamente, sabendo que, cedo ou tarde, encontraria a luz no final daquela curva; a coragem para seu intento.

***
Não que importasse; não que alguém fosse ouvi-la, mas ela gritava mais alto que o som já altíssimo da música, num grito de ajuda, num pedido de socorro, numa única frase repetida tantas vezes que já chegava a se tornar um lema. Feita de titânio, ela sabia que solidão alguma iria a derrubar.
Já haviam sido tantos copos de tequila que agora, enjoada do sal, ela buscava vodka, primeiro misturada, posto que quisesse fingir para o russo que a atendia que não desejava de fato ficar bêbada, sendo que já estava, depois, já despretensiosa, a tomava pura e sem gelo, num ato de puro desespero.
Alguns a chamavam devassa, festa, após festa, semana após semana de beijos vazios e manchas de batom nas roupas de homens variados e talvez, (porque não?) Algumas mulheres. Sinceramente? Não importava mais onde seus lábios seguiam, em quem seus dedos tocavam, porque o que seu coração desejava já não era mais amor e sua mente já não buscava mais o esquecimento.
Houve um tempo em que ela fora especial, uma estrela brilhante na escuridão latente da alma humana, uma alma rara, daquelas que amam intensamente e sempre buscam o bem, o melhor e o mais iluminado para aqueles que com ela compartilhavam a vida. Mas sua luz fora constantemente desperdiçava, usada sem pudor, nexo ou permanência; sua constância sempre fora recompensada com efemeridade. Machucada tantas vezes, ela levantou-se o quanto seus joelhos permitiram.
Quando o amor de sua vida a trocou seis vezes, mesmo depois dos pulsos cortados, dos gritos desnecessários, da alma esmigalhada, ela levantou-se; então veio a esperança: um último namoro por quem mesmo sem gostar totalmente, ela entregou-se; fora destratada, chamada de nomes que tentou esquecer, mas que se arraigaram tanto em sua alma que se tornaram os mesmos pelos quais ela hoje se chama; não demorou muito até que ela mesma terminasse.
Quem diria então que mesmo assim ela continuaria imutável, sempre a boa aluna, a companheira adorável, eternamente ajudando aqueles que permaneciam ao seu lado apesar de tudo. Quebrada por dentro, mais uma vez ela tentou lembrar a si mesma de porque estava viva e qual era o seu único sonho: casar, ter um filho, uma casa, um lar. Mais uma vez desfizeram seus castelos de sonho.
Não que ela fosse santa, por detrás de seus olhos castanhos de tempestade sempre havia maldade suficiente para fazer sucumbir o mundo. Era vingativa, luciférica, desorganizada e seu caminhar trazia consigo os passos amaldiçoados de sua sina: destruir tudo aquilo que tocava; transformar toda a estrada por onde seus pés haviam passado; sua existência era a essência divina do caos, feita somente para provocar mudança. Talvez por isso, autodestruição era o único caminho ao qual conhecia.
No mais, ela raramente falava de seus sonhos, afinal, chorona, passional e frágil do jeito que era; todos a julgariam ainda mais fraca do que já haviam julgado anteriormente. Ainda assim, apesar de todos os seus dissabores, quase morta por dentro, ela sorria grandiosamente esperando de cabeça erguida o próximo golpe, já despida de qualquer esperança.
No entanto, sempre há fé a ser comprada no mercado de ilusões, mais uma vez, uma derradeira vez, ela tentou. Morta por dentro, ela recebeu o golpe, outro após outro. Sua amizade, generosidade, amor, afeto, carinho, aconchego, todos foram destruídos por um motivo torpe, uma brincadeira sem sentido: ela apenas foi mais um jogo, mais uma vez apenas um jogo.
É estranho pensar como esse evento a mudou completamente, afinal, o que a fizera esperar o sol nascer fora imaginar as inúmeras formas de como poderia dar cabo a própria vida. Aquilo se tornara tão grotescamente divertido, tão doentio e tétrico que sua única ação no final do dia fora rir e rir tão alto que cada movimento de seu corpo beirava a insanidade. O ódio que fervera seu sangue evaporou sua alma na mesma medida.
Naquele dia, Verônica Vasconcelos Marques jurou a si mesma que sua morte seria feita de fogo e de luzes e que quando seus olhos, por fim, se fechassem, não haveria pena ou lágrimas em seu enterro, posto que todos que lá estivessem saberiam de como ela havia feito de si mesma a estrela mais iluminada do seu céu em decadência. Naquele dia, verônica decidiu morrer e se tornar uma outra pessoa qualquer.
Cabelos pintados em tons de vermelho, roupas trocadas, meses de academia e ainda assim ela chorava todas as noites sem entender porque ainda não se sentia completa, porque ainda desejava no fundo ser amada por mais que tentasse tantas vezes desistir de si mesma. Viver, para ela, tornara-se uma prisão da qual ousava buscar uma libertação que não fosse a mais obvia.
A verdade é que tudo começou como um efeito placebo: beber e dançar era sua válvula de escape para não lembrar-se dele nos finais de semana, quando ela se sentia mais sozinha. Contudo, nas primeiras noites ela não reconheceu o batom vermelho em sua boca ou o vestido preto decotado que tanto combinava com sua tez morena clara; nunca estivera tão bonita e jamais tão distante de si mesma.
As luzes da festa a ludibriaram; bêbada ela descobriu a libertação do que era de fato dançar como se o mundo inteiro dependesse do caminho trôpego ao qual estava atrelada. Aquela era a mão do seu destino finalmente imperando, finalmente mostrando-a que seu caos tinha lugar onde pudesse ser lei, ser ordem; seu lugar de direito na existência: bem longe do amor, bem longe da significância. Bem ali, na pista de dança, estava a chave para sua felicidade.
Não que fosse fácil, apesar da diversão. Houve momentos em que ela quis desistir, seus pés cansados, seu espírito quebrado quando alguém não a beijava ou noticias distantes do seu amado chegavam aos seus ouvidos. Afinal, apesar de estar se divertido, tudo aquilo ainda tinha um sentido: esquecer. Sua liberdade completa adviria somente do caos, ela sabia, mas era incapaz de se desvencilhar de sua vontade de tentar de novo.
Dos homens que nesta época a beijaram, muitos permaneceram em sua vida como amigos, alguns como amantes corriqueiros, porém não houvera nenhum que com ela partilhasse algo mais que alguns sussurros na noite que transparecia afetos e um adeus solícito quando o dia amanhecia. Não porque eles não quisessem, mas porque ela não deixaria que isto a magoasse, não havia como interromper o curso de sua demanda. Um pedaço dela estava sempre solto por ai e por mais que custasse caro este pecado, ele era a única forma de mantê-la sã, a manter viva.
Até que um homem a beijou fora da pista, tomando dela mais do que qualquer outro havia tomado, dando a ela, mais do que qualquer outro lhe havia dado. Alguém especial que a via como ninguém antes a havia visto. Não que Verônica tivesse voltado a ser quem era, ou mesmo se apaixonado completamente por ele, mas naquelas três semanas que se seguiram, ela foi dele, literalmente dele e de mais ninguém.
O tempo em que ele segurou sua mão fora suficiente para que ela largasse todas as amarras que a prendiam ao seu passado, seu coração cicatrizara e os homens que ainda tinham esperanças em seu amor, desistiram. Ela nunca esteve tão feliz, seus olhos brilharam, ela sorria. Pela primeira vez desde que fizera doze anos, e perdera a virgindade, ela sorria verdadeiramente, liberta da tristeza que tanto a possuía.
O fim não fora trágico, nem coroado de adeus e lágrimas de sangue, fora apenas um sorriso, uma ciência de que ambos estavam em lugares diferentes do caminho; talvez um dia seus destinos se cruzassem de novo, mas não ali, não naquele momento. E com um último encontro, eles se abraçaram e disseram até logo. Sem se beijar, sem fazer promessas, sem pedir nada de volta.
Os dias de cão haviam acabado, sua espera era apenas dos cavalos que prometiam vir nas músicas que ela ouvia dançando insanamente em sua própria sala até cair ao chão exausta. Seus cabelos vermelhos mudaram novamente para o preto corriqueiro, seus lábios e rosto, no entanto, continuavam maquiados, ela brilhava, genuinamente junto as luzes da cidade que lá em baixo festejavam.
Seu momento favorito, antes da pista de dança, era ficar sentada num barzinho próximo à beira da colina de onde o movimento apocalíptico da megalópole era observado em toda sua glória. Não havia beleza em todo o universo que pudesse suplantar o lampejar das luzes da cidade num complexo misto anárquico de cores que formavam juntas um espetáculo único.
Então, entre onze e meia noite, ela entrava iluminada de si mesma e dançava de olhos fechados, como se o mundo inteiro fosse acabar sob os pés dela, bêbada, sem se importar com preço da comanda, afinal, muitas das bebidas que estavam em suas mãos foram pagas por outros, nunca com promessas, nunca pagas com seu corpo, apenas sua presença, apenas sua luz, seus beijos e caricias.
Todos a queriam e todos poderiam tê-la, seu corpo não tinha distinção de ritmos, aceitando em suas curvas tanto o funk do final das festas, quanto o indie das pistas alternativas; suas roupas eram sempre diferentes, como se sua identidade fosse tão volúvel quanto seu humor, às vezes muito fêmea, às vezes como macho e ocasionalmente como um bicho estranho, vindo do Tártaro ou Olímpo, mandado pelos deuses como um presente ou maldição.
Aquela altura, muitos foram os que tentaram dissuadi-la, achando que seu caminho a levaria a autodestruição, de fato, esta era sua intenção desde o inicio, mas naquele momento, ela estava completamente livre, fazendo toda aquela estapafúrdia em cair no chão e beijar os mais bonitos que passassem por puro prazer, sem objetivo.
Aquela altura, ela já estava ciente que seus sonhos eram vãos e que seu caminho, seu destino, era continuar vivendo festa após festa, como os hiperbóreos das lendas; naquela parte de sua vida, ela sabia que, para ela, não haveria felicidade fora da pista de dança.
No fundo, já não mais se sentia sozinha, porque não precisava mais estar com alguém, tanto que não sentia mais o ocasional arrependimento no final das festas, raramente havia lágrimas, e até àquela altura, mesmo a culpa pelos corações que partia foi deixada de lado.
Os poucos que a seguiram, acompanhando-a fora da boate, não permaneceram muito tempo ao perceber que apesar de divertida, ela pertencia a uma outra classe de pessoa: inteligente demais, conhecedora demais, pronta a saber todos os idiomas e ainda assim dançar todos os ritmos.
Quando estavam em suas vidas, eles percebiam que seu caminhar era trajado de ocultismos que ela não demonstrava na balada. A pista de dança era sua religião, a dança, seu ritmo e era um fato de que sua vida era voltada ao sacerdócio do culto informal a Lilith, Ishtar e Maria Padilha, mas ainda assim, fora deste momento nos finais de semana, Verônica ainda rezava a essas deusas, dançando nua ao redor de fogueiras sob a lua cheia e sua casa tinha cheiro de incenso e almíscar.
Mesmo fora de seus domínios, ela mesma era um aspecto da deusa: seu lado destruidor, autofágico; Sequer ignorava isto, estava completamente ciente de seu lugar naquele universo estranho e efêmero.
Os que ficaram foram apenas aqueles que já a conheciam, mesmo antes dos seus primeiros passos trôpegos em festas; restavam também os que a magoaram; agora completamente perdoados, afinal, ela já não se importava em guardar rancor ou ser vingativa, tudo em sua vida era passageiro. Ocasionalmente alguns destes tentavam faze-la voltar a sua antiga forma, completamente sem sucesso.
Cada vez mais bêbada, cada vez mais extasiada em músicas, felicidade, luzes esmaecidas pela ebriez e, finalmente, pelos beijos de pessoas cujo nome sequer significam mais do que sussurros vazios e palavras sem importância, Verônica chegou num ponto tão alto que a única saída seria se jogar de braços abertos num último amplexo suicida.
E era isso que ela fazia naquele exato instante, entre tantos copos de vodka e tequila que suas mãos já eram incapazes de segurar mesmo latas de cerveja. Ninguém sabia, mas aquele gritar de que ela era feita de titânio, linda como diamantes caindo do céu e que ninguém dava a ela mais do que doces nadas não eram nada mais do que seu jeito de dizer que era o fim.
Eram quatro horas da manhã e a chuva dava seus primeiros indícios de que ia surgir lá fora; mas Verônica ainda estava alheia a este sinal, seus olhos estavam fechados e ela permanecia dentro da boate, imersa completamente em seu próprio caráter de divindade alternativa para a qual ninguém rezava.
Então, já bem no alto de seu apogeu hiperbóreo, seu salto magistral foi dado; sua consciência deixou-se expandir violenta, caótica e indiferente a qualquer um que estivesse ao seu lado.
As luzes explodiram, enquanto todos passaram a correr assustados, mas não ela; seu coração sabia o que estava a acontecer: as lâmpadas explodiam, mas suas luzes continuavam, derramando-se em cores pelo chão negro. A música também continuou a tocar, independentemente do caos que se instaurara enquanto as garrafas de vodka se quebravam, misturando-se nas estantes do bar aos outros líquidos que também se derramavam sozinhos.
Ela dançava, de olhos fechados, chorando descalça, havia jogado os saltos em algum lugar do qual já nem se lembrava, não faria sentido procurá-los. Todos foram embora e ela estava sozinha, incomodada não com os cacos de vidro que feriam seus pés, mas com a ciência de que a música, as luzes e o fogo de sua alma diminuíam engolidos finalmente pelo cansaço.
A festa havia chegado ao fim e Verônica estava só no escuro, tremendo de frio, sozinha, com o coração esmagado pelo peso de seu próprio existir. Sua maquiagem borrada e o sangue em seus pés demonstravam o seu status de mortandade, sua epopéia estava se esgotando, com poucas notas a ainda serem cantadas.
Ela não sabia que o amor podia doer tanto assim, mas ela mesma era incapaz de acreditar que havia visto tamanha paixão. Um apaixonar-se tão intenso que a fizera chegar a aquele momento de profunda escuridão. Quem seguraria em sua mão?
Bêbada demais para andar em linha reta, ela caminhou para fora; ainda estava escuro e as nuvens de chuva tomavam completamente o céu precipitando-se no exato momento em que ela abriu a porta de seu carro. Dirigiu em ziguezague pela estrada, incapaz de controlar a si mesma e muito menos o sedan vermelho que estava em seu poder.
Ligou o radio, ouvindo o CD da sua banda favorita mais recente: A is for Alpine e naquela chuva, ela correu já tão morta por dentro que fora incapaz de perceber a ironia na letra.
It's ok to feel the rain on my hands, my love, my enemy …

***
Apenas o som da chuva imperava e de novo e de novo, Miguel ouvia a mesma música do novo CD de sua banda favorita mais recente; sentia-se só, morto por dentro, como se parte de sua alma houvesse explodido em algum lugar daquela colina e sua existência não fosse mais do que parte do destino de uma outra pessoa.
Desistente da vida, já era o oitavo carro que passava sem que ele houvesse criado coragem para seguir em frente com seus planos suicidas. Fechou seus olhos e sentiu a chuva novamente, respirando de forma a tomar coragem. O nono carro vinha em alta velocidade e farol alto.
De forma impulsiva, Miguel lançou-se em direção ao Sedan vermelho que vinha praticamente desgovernado pela pista, a motorista sequer tentou desviar de tão bêbada que estava. Logo depois da colisão, o carro não acompanhou a curva, precipitando-se junto à chuva colina abaixo.
Os primeiros raios de sol despontaram durante as últimas notas do poema que havia sido a vida do rapaz estendido exangue no asfalto; sua missão estava completa, seu lugar no universo havia finalmente feito sentido, no mais, era ali, jogado no asfalto, quase morto, que o destino o queria.
Ali, jogado no asfalto, já morrendo, ele viu o brilhar da luz de uma explosão, para não ver mais nada em seguida.
Ali, no asfalto, a morte o aceitou como a uma canção e partiu, dançando-o.