Delírios Hiperbóreos
A voz da sacerdotisa
Lá, do alto de sua torre de
marfim, no Templo dos Mistérios de Hiperbórea, canta a sacerdotisa para as
salas vazias a sua frente. – entendam, o templo está sempre vazio, pois os
hiperbóreos adoram somente a Apolo e a sacerdotisa adora a todos os deuses.
E do alto dos seus próprios
mistérios ela fala por si mesma de tempos antes que sua vida existisse. Ela
chora, pois compreende estar sempre só na majestade divina que exerce. Seu
consorte será sempre um Deus.
De fato, ela não entende a si
mesma, mas entende o mundo como nenhum homem poderia entender – nem sobre o
mundo e nem sobre ela. – estudou os mistérios por toda a vida e além e antes
desta. Ela era o próprio mistério encarnado em si próprio. A Deusa em forma
pré-humana.
Ainda há muita coisa sobre mim que se é necessário saber e não há tempo
suficiente no mundo para que alguém o saiba.
Ela chorava e suas lágrimas
cobriam os mundos que pairavam sobre o poço de Urd, o caldeirão de ferro no
meio do salão de mármore. Seu hálito fresco era o vento que tocava a face dos
iniciados e sua voz era como o sussurro silencioso que a todos chama e a poucos
recebe.
Por hora, seu sussurro a captava
nas mil almas que possuía e nos mil amantes que carregava no coração gelado.
Ela era a única dentre os hiperbóreos a quem o sorriso eterno jamais foi dado.
Ela era a vida que pulsava no contato com os deuses esquecidos.
Por muito, esperou o pouco que
pediu ao Destino, mas o Grande Pai é tão austero quanto bondoso e raramente
caminhava nas terras em que sempre é verão. A sacerdotisa sabia, mas ousava
tentar ignorar, que não adiantava pedir auxilio ao destino, pois seu caminho
era livre, como as linhas da mão que inexistiam em sua pele clara.
Tudo que eu sei é que o silêncio da noite não há de calar o vento e os
sussurros.
Não havia noite, apenas o
silencio noctâmbulo que caminhava oco por sobre os salões, ela podia vê-lo e
até tocá-lo se quisesse, mas de que adiantava? Sentia-se cansada demais para
pensar...
Seu corpo pulsava sem que ela
mesma o usasse. Havia o passado que agora era presente, o ciclo que sempre se
repete, ela chorava de novo, ela havia sido dada de novo, ela prometera de
novo. Ela não pertencia a si mesma de novo.
Mas há coisa que apesar de
misteriosas deveriam de quaisquer formas ser explicadas. Há muito a jovem fora
virgem e se entregara ao Deus que a Deusa trouxera. Na noite escura seus
cabelos loiros foram tocados e o livro dos rituais fora aberto pela primeira
vez. Ali era se tornara a maga, mas logo se perdera nas areias do tempo e do sacerdócio.
O livro agora havia sido aberto,
como o coração da sacerdotisa que fora talhado em mil pedaços a cada ano do
ciclo. Seus cabelos, agora negros como a própria noite, haviam sido novamente
tocados e ela se entregara e entregara seu corpo para uma nova magia.
Em seu ventre o filho do mundo
nascia, mas ela era oca por dentro e ele sairia de sua boca como uma profecia
não contada. Uma profecia dita há muito tempo quando ela havia amado. As
palavras não eram novas, mas o sentido começava a ter novo significado.
A Sacerdotisa via a si mesma e se
conhecia através de seus próprios olhos.
Eu vivi vidas além dessa vida e vi coisas além das coisas que se pode
ver. Eu vi o céu irromper-se do horizonte no principio dos tempos. Eu vi Deus e
ele sabia meu nome. Meu verdadeiro nome.
Sim, seu nome, pois muitos tivera
ao longo dos séculos. Pois existia desde o tempo antes das estrelas, mesmo
antes de estar viva. Fora Tharzanita, Guarczenacal, Sofia, Amanda, Trevas, Gea,
Pandora, Eurídice, Flavia, Alessandra, Alexandra, Cleópatra, Pagu, Channel, ela
fora todas as mulheres do mundo antes de ser Tríade, a sacerdotisa do templo
dos mistérios. A Deusa.
Triade ouvia o som de sirenes ao
longe, talvez advindos do mar principal que era sempre gelado como o coração
dos hiperbóreos. Mas não se interessava, os sons, assim como os sonhos, eram
apenas ilusões e reflexos de sua própria alma no mundo.
Havia apenas ela e todo o resto
era um sonho, um grandioso sonho sonhado por todos os deuses que havia dentro
dela.
O Senhor coração, A Senhora
Mente, A Sacerdotisa Alma, o Padre Corpo, o Bispo Espírito e o Xamã Existência
partilhavam juntos aquela forma feminina para ensinar os mistérios a aqueles
que nunca os ouviriam. Ela estava condenada a sempre entender, mas jamais ser
entendida.
Eu sou aquela que nenhum homem jamais levantou o véu, eu sou tudo que
foi, que é e será. O fruto que pari foi o sol.
Eu sou Maria, eu sou Isis, eu sou
Cedriween, eu sou a Religião.
Ela ainda chorava, mas suas
lágrimas já não eram mais cheia de lastimas. Seu amor cobria o mundo de paz e
felicidade, mas ambos jamais seriam eternos. Pois ela era a mulher que fazia
pulsar o mundo e como toda mulher, era tão mutável quanto à lua em seus quatro
mistérios e faces.
Apesar de cansada, por um ritual
que nem mesmo realizara por si mesma. Ela agora voltava a sentir-se cheia e
completa. Sua visão erguia-se acima dos homens e das coisas vãs. Ela podia
ouvir Apolo lá fora a chamando e podia ouvir Isis dentro dela gritando por ele.
Ainda não era a hora de se
libertar. A torre de Marfim que ainda é a torre das ilusões de todos os homens
ainda não estava pronta para ruir. Do alto-mar principal viriam ainda mil
barcos e do alto da torre ela os veria passar a espera de cumprir a profecia
para o qual fora criada.
De fato, não podia ser entendida
em suas palavras. Pois ela era a própria religião e ela precisava de alguém
para professá-la. De um homem que através de seus lábios lhe tocasse a alma e
lhe abrisse o espírito. O homem que a faria parir a luz de um novo
conhecimento. O Deus consorte da Deusa, aquele que jamais a subjugaria e nem
seria inferior a ela, sua alma gêmea.
Suas mãos brancas adquiriam um
tom vermelho, advindo do cansaço de olhar o espelho de si mesma. Ela ainda
cantava sua canção silenciosa e o noctâmbulo ainda vagava indolente pelos
mundos dos salões.
Os salões que na verdade eram sua
alma, o templo que de fato era seu corpo erigido no País do Verão, o noctâmbulo
que nada mais era do que sua sombra, seu duplo que prediria sua morte quando a
hora fosse chegava, mas que por hora apenas a fazia lembrar das outras vezes
que morrera e os segredos que nessa vida ela não podia deixar morrerem com ela.
Esta era sua última vida, não por
imposição do destino, mas porque esperava cumprir seu papel no mundo. O tempo
ainda não era chegado, mas chegaria tão breve quanto ela aprenderia mais sobre
a Anciã do corpo jovem. Sobre os mistérios da gruta dos mistérios. O dia em que
o salão ruiria em verde fogo e vermelho sangue estava tão próximo quanto o
hálito do vento norte.
Hiperbórea a chamava e ela não
podia mais escondê-la dentro de uma caixinha de pandora, pois até mesmo a
esperança se fora. A verde fada estava lá, no salão das florestas, drogada,
nua, bêbada e prostituída. A esperança se perdera para sempre por entre as
árvores da solidão.
Eu sou aquela que caminha em Calêndula, cheia de promessas e tristezas,
aquela que espalha sobre o chão doces duvidas que serão apanhadas por incautos
visitantes. Eu sou aquela que ama e foi amada, mas que jamais se entregará nas
mãos de alguém que não seja o Escolhido.
Sua respiração se mantinha
entrecortada e o livro ainda precisava ser terminado. Ainda havia muito para se
conhecer e muitos feitiços silenciosos para despertar do seu interior.
Logo, em mais um de seus sonhos
ela estaria no Templo das Estrelas, onde o príncipe negro a mostraria seu
sorriso de escárnio e sua amizade eterna. Onde ela sentaria nas escadas,
sorrindo enquanto chorava a espera do príncipe Branco.
Haviam muitos príncipes e talvez
nenhum deles fosse o escolhido ou talvez assim como ela, o escolhido tivesse
muitos nomes e fosse muitos príncipes. De novo, ela recitou a profecia a espera
de que novos versos viessem.
O príncipe branco e o príncipe negro juntos
estão sob o poço de Urd
Atrelados caminham com suas espadas mortais
A caminho do coração espectral
Cuidado com o cálice ó mortal
Posto que a vida é uma só
Para aqueles que nunca renascem.
E de fato, os novos versos
vieram, mas apenas o primeiro era dedicado a ela. O príncipe Branco e o Príncipe negro juntos estão sob o poço de Urd. Mas
podiam não ser os mesmos príncipes do Templo das Estrelas. Afinal ali estava
entre suas lembranças e as coisas que viveria, mas não vivera de fato. A
profecia era tão incerta quanto um sonho de uma noite de verão na terra em que
seria eternamente dia.
Antes porem de esquecer os novos
versos, os escreveu. Era uma iniciada e aprendera a sempre guardar os mistérios
para si e depois mostra-los ao mundo. Se não tivessem significados para ela, de
certo o destino se encarregaria de levá-los a quem poderia os entender. E
notou, como não poderia deixar de notar, que as palavras juntas formavam um
prato ou copa, o Santo Graal do conhecimento.
Estava cansada e ainda pensava no
amanha que talvez não viesse e antes de esperar sua visita ao templo das estrelas,
resolveu ir visitar um velho amigo no mundo dos sonhos.
Ela visitaria a pessoa a quem ela
mais ansiava conhecer.
Ela mesma.
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