segunda-feira, 11 de março de 2013

Sete tons de Setembro




Sete tons de Setembro

O Suicida

Ele corta os pulsos reticente; como quem teme o próximo corte, mas ainda assim continua. Um após o outro, fios transversais de esperança de que seu sangue pague seus pecados e encontre uma porta para sua verdadeira identidade.
Não há vida em seus olhos, nem mesmo dor, talvez um pouco apenas da confusão que cerca sua mente. Nada mais lhe satisfaz por tempo suficiente para que julgue possuir felicidade em seu corpo ou fazer verdadeiro o sorriso que mantêm sempre entre os lábios de qualquer maneira.
A verdade é que ele não morrerá agora. Sua vida não se acabará por entre o fio da lâmina que corta sua pele, mas isso ele já sabe. Tudo que ele precisa é de uma resposta, um sentido, um por quê.
Tudo que ele precisa é se lembrar de quem ele é.
Ou inventar de novo, um novo alguém para ser.

A Desamada

Seu beijo é frio, já não se importa mais em produzir calor. Já não dá mais importância em doar-se por afeto, já não faz mais sentido gemer por amor. Talvez por isso, hoje ela se vende na rua pela primeira vez.
Não perguntarão sua idade, nem devem; ela não tinha mais de dezesseis essa manhã, mas agora nem ela mesma sabe ao certo quantos anos tem, sente-se uma mulher de meia idade, destruída pelo peso da experiência.
Ela é jovem demais pra perceber o mal que faz a si mesma.
No entanto, talvez ela esteja certa em não voltar pra casa: tudo em seu quarto faz com que ela se lembre dele: seu cheiro ainda está nos lençóis manchados pelo sangue da virgindade dela. As lágrimas que ela verteu não foram capazes de limpar a lembrança da magoa que ele deixou por não estar lá quando o sol nasceu.
Abandonada, não havia lágrimas suficientes para o que ela pretendia ousar em sua própria decadência. Tentara inutilmente morrer, mas não possuía intento suficiente para tanto. No mais, percebeu que tentar encontrar a morte era redundante, a morte já havia lhe encontrado no momento em que ele havia cruzado a porta de sua casa.
E ela seguiu tão falsa e vazia quanto seus gemidos.

No embalo de todas as noites

Bêbado, ele segue sua noite com um sorriso nos lábios, tão falso quanto o brilho corriqueiro esverdeado de seus olhos. Seu beijo é doce e seus braços fortes, ele, contudo, irá te abandonar pela manhã na esquina. Não importa o quanto você se importe.
Não é nada pessoal, ele não vê ninguém à sua frente de verdade, são apenas corpos, peitos e bundas; homens e mulheres que irão parar em sua cama cedo ou tarde, porque todos o desejam sem saber quem ele é de verdade.
Seus amigos duvidam que ele saiba algo sobre verdades, tudo que sai de sua boca é alguma forma de mentira, vinda em tons de elogios mal intencionados ou mesmo sobre seu status de felicidade.
Ele se perde na pista de dança, todos o invejam. Não há ninguém que dance como ele, não há ninguém tão brilhante. O maior pesar é que isso é a única coisa sobre ele que não é mentira, seu brilho é real, mesmo que desperdiçado entre um copo e outro de uísque e tequila.
No meio do afago certo ele talvez se encontrasse o que tanto busca.
Mas afeto, para ele, é um meio de fuga da verdade:
Seu sorriso eterno é como ele chora.

Olhos verdes

Seu nome é esquecível como o vento que passa, ele mesmo é ausente e sem importância. Paisagem para qualquer um que passe ao seu lado. Apenas mais uma boca sem sal para aqueles que o beijaram.
Seus sonhos morreram, levados por mãos egoístas e sem consideração, seu coração parou de bater antes disso, traído pela única pessoa que fora capaz de amar em toda sua breve existência.
Sua vida é uma história triste para assustar crianças na fogueira. Indigna de comiseração, cada gota de lágrima em seus olhos fora merecida, mesmo que todo o seu respirar tenha se manifestado em formas de suspiros longos e olvidados de sua verdadeira função.
Todo seu caminhar trôpego é melancólico, incapaz de dividir a verdadeira tristeza da profunda necessidade de exagero. Ele anuncia sua dor nos jornais, sem esperar que alguém se importe.
Para aqueles que se importam, aqueles olhos verdes tornam-se incapazes de acreditar que alguém lhe estenderia a mão, ou mesmo lhe abraçar quando estivesse frio. Ele agarra-se a si mesmo nestes dias, tentando não chorar com a lembrança desolada.
Alguém prometera lhe aquecer nas noites nevadas, mas na primeira chuva, braço algum lhe envolveu o corpo, deixando-o sozinho para morrer de frio.
E ele, de fato, estava morto, a despeito de toda vida que ainda tinha pela frente.

Em pedaços

Cacos de vidro pelo chão, ela não conseguiu nada do que queria. Ainda há muito mais para ser quebrado noite a dentro. Copos, pratos e travessas todos já não mais existiam, como se a presença do vidro a lembrasse do fracasso que se sentia.
Seu marido tentou lhe consolar, mas ela estava além de qualquer consolo, incapaz até mesmo de notar a decepção nos olhos dele quando partiu para dar uma volta de carro e espairecer. Incapaz até mesmo de temer que ele não voltasse.
Ele, no entanto, voltaria para encontrá-la pendurada cinco palmos do chão, sem nem mesmo uma carta a dizer seus motivos, nem mesmo uma explicação, a verdade é que não havia uma.
Ela gritava histericamente minutos antes de seus últimos segundos, incompreensível, os vizinhos não ousaram bater a sua porta, lembravam-se das outras vezes, quando coisas foram atiradas contra cada um deles nos acessos que ela ocasionalmente tinha.
Talvez esse fora o motivo de sua decisão: perceber que apesar de se importar, ninguém queria mais se envolver. Ela estava só porque aquela era a conseqüência da vida que levava. Entre os cacos de vidro, estavam as garrafas do vinho e uísque que tanto lhe acompanharam pela vida, morrer fora sua única decisão sóbria. A única coisa sagrada que faria.
A corda fora seu caminho, o laço a redenção. A cadeira que era seu cadafalso era o altar de seu ritual, para aquele era seu derradeiro feitiço, sua última prece. Ela se tornara um problema na vida de todos que amava: sempre bêbada, sempre gritando, sempre devolvendo dor a quem lhe dava afeto. O pé que lhe deu o impulso fora seu ato de amor, sua forma de provar que, apesar de tudo, se importava; aquele era seu pedido de perdão, sua eucaristia, sua conversão.
Sua religião era libertar os outros.



Olhos Azuis em mares de magoa

A culpa o corroia, ele não entendia bem por que. Era certo que sua demanda era justa, era certo que seu caminho era próspero, era certo de que secretamente ele chorava, ainda mais alto do que se pensaria.
Ainda assim, a culpa o tomava pelo braço, como se fossem seus os problemas do mundo, como se fossem suas as dores das pessoas que ele amava. Como se fosse ele realmente a causa das más conseqüências se abateram na vida de todos.
Em seu choro, ele esquecia suas próprias mágoas, colocando-as em segundo plano, mas a verdade é que as chorava também. Quantas vezes ele vira braços amados a abraçarem outros corpos e devolverem a outros a devoção que ele tanto lhes dava?
Quantos beijos ele ainda iria suportar observar? Quantas vezes ele ainda viveria para ver aquele que ele tanto desejava sobre outros corpos consumindo os desejos da carne e da alma? Inúmeros, seu espírito era forte, mesmo que sua alma fosse fraca e ainda caísse cada vez que visse sombras de lágrimas nos olhos dele.
As palavras de Drummond reverberavam em sua cabeça: Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheio escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor.  Era sua verdade pessoal, sua palavras de honra, o cadafalso de sua personalidade.
A noite veio, a madrugada passou em ferro e sangue;  então na manhã veio a chuva e com ela o funeral. Tudo sempre termina com flores e lágrimas, diz o ditado, mesmo que todas as lástimas sejam formas sucintas de adeus.
“Eu sinto muito. Mas havia alguma coisa que eu poderia ter feito?” era tudo que seus olhos azuis diziam enquanto o caixão baixava e algumas parcas pessoas lhe abraçavam para lhe consolar.
O consolo veio apenas mais tarde em forma de comprimidos para amenizar a dor. Foram necessários sete para que o sono viesse, acompanhado de paz. Deitado em sua cama, imaginou os momentos felizes ao lado do amado, num tempo em que a tristeza ainda não havia sido inventada. Em seus sonhos sóis distantes e campos floridos confluíam-se com praias, mãos e carícias não reveladas.
Mergulhou-se inteiramente neles e deles jamais saiu.

O Poeta

Seus olhos são baços e sem vida, mas suas palavras são carregadas de sentimentalismo; são a única coisa que o mantêm ligado a este mundo, é o modo como ele sabe estar vivo. Ainda assim, boa parte de suas palavras são carregadas de mentira, porque ele mesmo é incapaz de definir o que sente.
Seu adeus, não é mais forte que um até logo, seu suicídio é apenas uma forma de dizer que ele se encontrará deitado no banheiro por horas a fio ouvindo Beethoven, seu amor é eterno, mas ele não revela quem ele ama de verdade, talvez porque ele mesmo não esteja completamente ciente de quem é. Talvez ele seja incapaz de amar e ainda não saiba.
Sua vida é carregada de “e se...”, “talvez...”, “mas...” e “contudo”, nunca foi uma linha reta, nunca será. Seu caminho é trilhado com aleatoriedade e caos, seus vinte e dois guias são os arcanos maiores das cartas de tarô.
Seus vinte e dois anos não fazem sentido, se assemelham a uma coleção de histórias estranhas e mal contadas. Sempre parece faltar um detalhe que ele ignora, ele sabe que algo ali não se encaixa, mas se tornou incapaz de lembrar o que é.
As datas não coincidem, seu calendário colapsa, suas lembranças queimaram junto com alguns de seus cadernos. O passado é apenas um amontoado de fotos em tom de sépia em sua cabeça, só porque lhe interessa escrever sobre a tristeza, só porque lhe interessa contar sobre o beijo que dera na praia; tudo aquilo que não era literatura era descartada. Assim, sua vida se resumia as palavras e ele vivia unicamente para escrevê-las.
Morreu sozinho, cercado por vinte gatos em seu apartamento.
Talvez a sua seja a história mais triste: ele foi o único que não fez nada.