Sete tons de Setembro
O Suicida
Ele corta os pulsos reticente;
como quem teme o próximo corte, mas ainda assim continua. Um após o outro, fios
transversais de esperança de que seu sangue pague seus pecados e encontre uma
porta para sua verdadeira identidade.
Não há vida em seus olhos, nem
mesmo dor, talvez um pouco apenas da confusão que cerca sua mente. Nada mais
lhe satisfaz por tempo suficiente para que julgue possuir felicidade em seu
corpo ou fazer verdadeiro o sorriso que mantêm sempre entre os lábios de
qualquer maneira.
A verdade é que ele não morrerá
agora. Sua vida não se acabará por entre o fio da lâmina que corta sua pele,
mas isso ele já sabe. Tudo que ele precisa é de uma resposta, um sentido, um
por quê.
Tudo que ele precisa é se lembrar
de quem ele é.
Ou inventar de novo, um novo
alguém para ser.
A Desamada
Seu beijo é frio, já não se
importa mais em produzir calor. Já não dá mais importância em doar-se por
afeto, já não faz mais sentido gemer por amor. Talvez por isso, hoje ela se
vende na rua pela primeira vez.
Não perguntarão sua idade, nem
devem; ela não tinha mais de dezesseis essa manhã, mas agora nem ela mesma sabe
ao certo quantos anos tem, sente-se uma mulher de meia idade, destruída pelo
peso da experiência.
Ela é jovem demais pra perceber o
mal que faz a si mesma.
No entanto, talvez ela esteja
certa em não voltar pra casa: tudo em seu quarto faz com que ela se lembre dele:
seu cheiro ainda está nos lençóis manchados pelo sangue da virgindade dela. As
lágrimas que ela verteu não foram capazes de limpar a lembrança da magoa que
ele deixou por não estar lá quando o sol nasceu.
Abandonada, não havia lágrimas
suficientes para o que ela pretendia ousar em sua própria decadência. Tentara
inutilmente morrer, mas não possuía intento suficiente para tanto. No mais,
percebeu que tentar encontrar a morte era redundante, a morte já havia lhe
encontrado no momento em que ele havia cruzado a porta de sua casa.
E ela seguiu tão falsa e vazia
quanto seus gemidos.
No embalo de todas as noites
Bêbado, ele segue sua noite com
um sorriso nos lábios, tão falso quanto o brilho corriqueiro esverdeado de seus
olhos. Seu beijo é doce e seus braços fortes, ele, contudo, irá te abandonar
pela manhã na esquina. Não importa o quanto você se importe.
Não é nada pessoal, ele não vê
ninguém à sua frente de verdade, são apenas corpos, peitos e bundas; homens e
mulheres que irão parar em sua cama cedo ou tarde, porque todos o desejam sem
saber quem ele é de verdade.
Seus amigos duvidam que ele saiba
algo sobre verdades, tudo que sai de sua boca é alguma forma de mentira, vinda
em tons de elogios mal intencionados ou mesmo sobre seu status de felicidade.
Ele se perde na pista de dança,
todos o invejam. Não há ninguém que dance como ele, não há ninguém tão
brilhante. O maior pesar é que isso é a única coisa sobre ele que não é
mentira, seu brilho é real, mesmo que desperdiçado entre um copo e outro de
uísque e tequila.
No meio do afago certo ele talvez
se encontrasse o que tanto busca.
Mas afeto, para ele, é um meio de
fuga da verdade:
Seu sorriso eterno é como ele
chora.
Olhos verdes
Seu nome é esquecível como o
vento que passa, ele mesmo é ausente e sem importância. Paisagem para qualquer
um que passe ao seu lado. Apenas mais uma boca sem sal para aqueles que o
beijaram.
Seus sonhos morreram, levados por
mãos egoístas e sem consideração, seu coração parou de bater antes disso,
traído pela única pessoa que fora capaz de amar em toda sua breve existência.
Sua vida é uma história triste
para assustar crianças na fogueira. Indigna de comiseração, cada gota de
lágrima em seus olhos fora merecida, mesmo que todo o seu respirar tenha se
manifestado em formas de suspiros longos e olvidados de sua verdadeira função.
Todo seu caminhar trôpego é
melancólico, incapaz de dividir a verdadeira tristeza da profunda necessidade
de exagero. Ele anuncia sua dor nos jornais, sem esperar que alguém se importe.
Para aqueles que se importam,
aqueles olhos verdes tornam-se incapazes de acreditar que alguém lhe estenderia
a mão, ou mesmo lhe abraçar quando estivesse frio. Ele agarra-se a si mesmo
nestes dias, tentando não chorar com a lembrança desolada.
Alguém prometera lhe aquecer nas
noites nevadas, mas na primeira chuva, braço algum lhe envolveu o corpo,
deixando-o sozinho para morrer de frio.
E ele, de fato, estava morto, a
despeito de toda vida que ainda tinha pela frente.
Em pedaços
Cacos de vidro pelo chão, ela não
conseguiu nada do que queria. Ainda há muito mais para ser quebrado noite a
dentro. Copos, pratos e travessas todos já não mais existiam, como se a
presença do vidro a lembrasse do fracasso que se sentia.
Seu marido tentou lhe consolar,
mas ela estava além de qualquer consolo, incapaz até mesmo de notar a decepção
nos olhos dele quando partiu para dar uma volta de carro e espairecer. Incapaz
até mesmo de temer que ele não voltasse.
Ele, no entanto, voltaria para
encontrá-la pendurada cinco palmos do chão, sem nem mesmo uma carta a dizer
seus motivos, nem mesmo uma explicação, a verdade é que não havia uma.
Ela gritava histericamente
minutos antes de seus últimos segundos, incompreensível, os vizinhos não
ousaram bater a sua porta, lembravam-se das outras vezes, quando coisas foram
atiradas contra cada um deles nos acessos que ela ocasionalmente tinha.
Talvez esse fora o motivo de sua
decisão: perceber que apesar de se importar, ninguém queria mais se envolver.
Ela estava só porque aquela era a conseqüência da vida que levava. Entre os
cacos de vidro, estavam as garrafas do vinho e uísque que tanto lhe
acompanharam pela vida, morrer fora sua única decisão sóbria. A única coisa
sagrada que faria.
A corda fora seu caminho, o laço
a redenção. A cadeira que era seu cadafalso era o altar de seu ritual, para
aquele era seu derradeiro feitiço, sua última prece. Ela se tornara um problema
na vida de todos que amava: sempre bêbada, sempre gritando, sempre devolvendo
dor a quem lhe dava afeto. O pé que lhe deu o impulso fora seu ato de amor, sua
forma de provar que, apesar de tudo, se importava; aquele era seu pedido de
perdão, sua eucaristia, sua conversão.
Sua religião era libertar os
outros.
Olhos Azuis em mares de magoa
A culpa o corroia, ele não
entendia bem por que. Era certo que sua demanda era justa, era certo que seu
caminho era próspero, era certo de que secretamente ele chorava, ainda mais
alto do que se pensaria.
Ainda assim, a culpa o tomava
pelo braço, como se fossem seus os problemas do mundo, como se fossem suas as
dores das pessoas que ele amava. Como se fosse ele realmente a causa das más
conseqüências se abateram na vida de todos.
Em seu choro, ele esquecia suas
próprias mágoas, colocando-as em segundo plano, mas a verdade é que as chorava
também. Quantas vezes ele vira braços amados a abraçarem outros corpos e
devolverem a outros a devoção que ele tanto lhes dava?
Quantos beijos ele ainda iria
suportar observar? Quantas vezes ele ainda viveria para ver aquele que ele
tanto desejava sobre outros corpos consumindo os desejos da carne e da alma?
Inúmeros, seu espírito era forte, mesmo que sua alma fosse fraca e ainda caísse
cada vez que visse sombras de lágrimas nos olhos dele.
As palavras de Drummond
reverberavam em sua cabeça: Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo,
mas estou cheio escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na
confluência do amor. Era sua verdade pessoal, sua palavras de
honra, o cadafalso de sua personalidade.
A noite veio, a madrugada passou em ferro e sangue; então na manhã veio a chuva e com ela o
funeral. Tudo sempre termina com flores e lágrimas, diz o ditado, mesmo que
todas as lástimas sejam formas sucintas de adeus.
“Eu sinto muito. Mas havia alguma coisa que eu poderia ter feito?” era
tudo que seus olhos azuis diziam enquanto o caixão baixava e algumas parcas
pessoas lhe abraçavam para lhe consolar.
O consolo veio apenas mais tarde em forma de comprimidos para amenizar
a dor. Foram necessários sete para que o sono viesse, acompanhado de paz.
Deitado em sua cama, imaginou os momentos felizes ao lado do amado, num tempo
em que a tristeza ainda não havia sido inventada. Em seus sonhos sóis distantes
e campos floridos confluíam-se com praias, mãos e carícias não reveladas.
Mergulhou-se inteiramente neles e deles jamais saiu.
O Poeta
Seus olhos são baços e sem vida,
mas suas palavras são carregadas de sentimentalismo; são a única coisa que o
mantêm ligado a este mundo, é o modo como ele sabe estar vivo. Ainda assim, boa
parte de suas palavras são carregadas de mentira, porque ele mesmo é incapaz de
definir o que sente.
Seu adeus, não é mais forte que
um até logo, seu suicídio é apenas uma forma de dizer que ele se encontrará
deitado no banheiro por horas a fio ouvindo Beethoven, seu amor é eterno, mas
ele não revela quem ele ama de verdade, talvez porque ele mesmo não esteja
completamente ciente de quem é. Talvez ele seja incapaz de amar e ainda não
saiba.
Sua vida é carregada de “e
se...”, “talvez...”, “mas...” e “contudo”, nunca foi uma linha reta, nunca
será. Seu caminho é trilhado com aleatoriedade e caos, seus vinte e dois guias
são os arcanos maiores das cartas de tarô.
Seus vinte e dois anos não fazem
sentido, se assemelham a uma coleção de histórias estranhas e mal contadas.
Sempre parece faltar um detalhe que ele ignora, ele sabe que algo ali não se
encaixa, mas se tornou incapaz de lembrar o que é.
As datas não coincidem, seu calendário
colapsa, suas lembranças queimaram junto com alguns de seus cadernos. O passado
é apenas um amontoado de fotos em tom de sépia em sua cabeça, só porque lhe
interessa escrever sobre a tristeza, só porque lhe interessa contar sobre o
beijo que dera na praia; tudo aquilo que não era literatura era descartada. Assim,
sua vida se resumia as palavras e ele vivia unicamente para escrevê-las.
Morreu sozinho, cercado por vinte
gatos em seu apartamento.
Talvez a sua seja a história mais
triste: ele foi o único que não fez nada.
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