sábado, 16 de novembro de 2013

A voz da Sacerdotisa


Delírios Hiperbóreos 
A voz da sacerdotisa

Lá, do alto de sua torre de marfim, no Templo dos Mistérios de Hiperbórea, canta a sacerdotisa para as salas vazias a sua frente. – entendam, o templo está sempre vazio, pois os hiperbóreos adoram somente a Apolo e a sacerdotisa adora a todos os deuses.
E do alto dos seus próprios mistérios ela fala por si mesma de tempos antes que sua vida existisse. Ela chora, pois compreende estar sempre só na majestade divina que exerce. Seu consorte será sempre um Deus.
De fato, ela não entende a si mesma, mas entende o mundo como nenhum homem poderia entender – nem sobre o mundo e nem sobre ela. – estudou os mistérios por toda a vida e além e antes desta. Ela era o próprio mistério encarnado em si próprio. A Deusa em forma pré-humana.
Ainda há muita coisa sobre mim que se é necessário saber e não há tempo suficiente no mundo para que alguém o saiba.
Ela chorava e suas lágrimas cobriam os mundos que pairavam sobre o poço de Urd, o caldeirão de ferro no meio do salão de mármore. Seu hálito fresco era o vento que tocava a face dos iniciados e sua voz era como o sussurro silencioso que a todos chama e a poucos recebe.
Por hora, seu sussurro a captava nas mil almas que possuía e nos mil amantes que carregava no coração gelado. Ela era a única dentre os hiperbóreos a quem o sorriso eterno jamais foi dado. Ela era a vida que pulsava no contato com os deuses esquecidos.
Por muito, esperou o pouco que pediu ao Destino, mas o Grande Pai é tão austero quanto bondoso e raramente caminhava nas terras em que sempre é verão. A sacerdotisa sabia, mas ousava tentar ignorar, que não adiantava pedir auxilio ao destino, pois seu caminho era livre, como as linhas da mão que inexistiam em sua pele clara.
Tudo que eu sei é que o silêncio da noite não há de calar o vento e os sussurros.
Não havia noite, apenas o silencio noctâmbulo que caminhava oco por sobre os salões, ela podia vê-lo e até tocá-lo se quisesse, mas de que adiantava? Sentia-se cansada demais para pensar...
Seu corpo pulsava sem que ela mesma o usasse. Havia o passado que agora era presente, o ciclo que sempre se repete, ela chorava de novo, ela havia sido dada de novo, ela prometera de novo. Ela não pertencia a si mesma de novo.
Mas há coisa que apesar de misteriosas deveriam de quaisquer formas ser explicadas. Há muito a jovem fora virgem e se entregara ao Deus que a Deusa trouxera. Na noite escura seus cabelos loiros foram tocados e o livro dos rituais fora aberto pela primeira vez. Ali era se tornara a maga, mas logo se perdera nas areias do tempo e do sacerdócio.
O livro agora havia sido aberto, como o coração da sacerdotisa que fora talhado em mil pedaços a cada ano do ciclo. Seus cabelos, agora negros como a própria noite, haviam sido novamente tocados e ela se entregara e entregara seu corpo para uma nova magia.
Em seu ventre o filho do mundo nascia, mas ela era oca por dentro e ele sairia de sua boca como uma profecia não contada. Uma profecia dita há muito tempo quando ela havia amado. As palavras não eram novas, mas o sentido começava a ter novo significado.
A Sacerdotisa via a si mesma e se conhecia através de seus próprios olhos.
Eu vivi vidas além dessa vida e vi coisas além das coisas que se pode ver. Eu vi o céu irromper-se do horizonte no principio dos tempos. Eu vi Deus e ele sabia meu nome. Meu verdadeiro nome.
Sim, seu nome, pois muitos tivera ao longo dos séculos. Pois existia desde o tempo antes das estrelas, mesmo antes de estar viva. Fora Tharzanita, Guarczenacal, Sofia, Amanda, Trevas, Gea, Pandora, Eurídice, Flavia, Alessandra, Alexandra, Cleópatra, Pagu, Channel, ela fora todas as mulheres do mundo antes de ser Tríade, a sacerdotisa do templo dos mistérios. A Deusa.
Triade ouvia o som de sirenes ao longe, talvez advindos do mar principal que era sempre gelado como o coração dos hiperbóreos. Mas não se interessava, os sons, assim como os sonhos, eram apenas ilusões e reflexos de sua própria alma no mundo.
Havia apenas ela e todo o resto era um sonho, um grandioso sonho sonhado por todos os deuses que havia dentro dela.
O Senhor coração, A Senhora Mente, A Sacerdotisa Alma, o Padre Corpo, o Bispo Espírito e o Xamã Existência partilhavam juntos aquela forma feminina para ensinar os mistérios a aqueles que nunca os ouviriam. Ela estava condenada a sempre entender, mas jamais ser entendida.
Eu sou aquela que nenhum homem jamais levantou o véu, eu sou tudo que foi, que é e será. O fruto que pari foi o sol.
Eu sou Maria, eu sou Isis, eu sou Cedriween, eu sou a Religião.
Ela ainda chorava, mas suas lágrimas já não eram mais cheia de lastimas. Seu amor cobria o mundo de paz e felicidade, mas ambos jamais seriam eternos. Pois ela era a mulher que fazia pulsar o mundo e como toda mulher, era tão mutável quanto à lua em seus quatro mistérios e faces.
Apesar de cansada, por um ritual que nem mesmo realizara por si mesma. Ela agora voltava a sentir-se cheia e completa. Sua visão erguia-se acima dos homens e das coisas vãs. Ela podia ouvir Apolo lá fora a chamando e podia ouvir Isis dentro dela gritando por ele.
Ainda não era a hora de se libertar. A torre de Marfim que ainda é a torre das ilusões de todos os homens ainda não estava pronta para ruir. Do alto-mar principal viriam ainda mil barcos e do alto da torre ela os veria passar a espera de cumprir a profecia para o qual fora criada.
De fato, não podia ser entendida em suas palavras. Pois ela era a própria religião e ela precisava de alguém para professá-la. De um homem que através de seus lábios lhe tocasse a alma e lhe abrisse o espírito. O homem que a faria parir a luz de um novo conhecimento. O Deus consorte da Deusa, aquele que jamais a subjugaria e nem seria inferior a ela, sua alma gêmea.
Suas mãos brancas adquiriam um tom vermelho, advindo do cansaço de olhar o espelho de si mesma. Ela ainda cantava sua canção silenciosa e o noctâmbulo ainda vagava indolente pelos mundos dos salões.
Os salões que na verdade eram sua alma, o templo que de fato era seu corpo erigido no País do Verão, o noctâmbulo que nada mais era do que sua sombra, seu duplo que prediria sua morte quando a hora fosse chegava, mas que por hora apenas a fazia lembrar das outras vezes que morrera e os segredos que nessa vida ela não podia deixar morrerem com ela.
Esta era sua última vida, não por imposição do destino, mas porque esperava cumprir seu papel no mundo. O tempo ainda não era chegado, mas chegaria tão breve quanto ela aprenderia mais sobre a Anciã do corpo jovem. Sobre os mistérios da gruta dos mistérios. O dia em que o salão ruiria em verde fogo e vermelho sangue estava tão próximo quanto o hálito do vento norte.
Hiperbórea a chamava e ela não podia mais escondê-la dentro de uma caixinha de pandora, pois até mesmo a esperança se fora. A verde fada estava lá, no salão das florestas, drogada, nua, bêbada e prostituída. A esperança se perdera para sempre por entre as árvores da solidão.
Eu sou aquela que caminha em Calêndula, cheia de promessas e tristezas, aquela que espalha sobre o chão doces duvidas que serão apanhadas por incautos visitantes. Eu sou aquela que ama e foi amada, mas que jamais se entregará nas mãos de alguém que não seja o Escolhido.
Sua respiração se mantinha entrecortada e o livro ainda precisava ser terminado. Ainda havia muito para se conhecer e muitos feitiços silenciosos para despertar do seu interior.
Logo, em mais um de seus sonhos ela estaria no Templo das Estrelas, onde o príncipe negro a mostraria seu sorriso de escárnio e sua amizade eterna. Onde ela sentaria nas escadas, sorrindo enquanto chorava a espera do príncipe Branco.
Haviam muitos príncipes e talvez nenhum deles fosse o escolhido ou talvez assim como ela, o escolhido tivesse muitos nomes e fosse muitos príncipes. De novo, ela recitou a profecia a espera de que novos versos viessem.

O príncipe branco e o príncipe negro juntos estão sob o poço de Urd
Atrelados caminham com suas espadas mortais
A caminho do coração espectral
Cuidado com o cálice ó mortal
Posto que a vida é uma só
Para aqueles que nunca renascem.

E de fato, os novos versos vieram, mas apenas o primeiro era dedicado a ela. O príncipe Branco e o Príncipe negro juntos estão sob o poço de Urd. Mas podiam não ser os mesmos príncipes do Templo das Estrelas. Afinal ali estava entre suas lembranças e as coisas que viveria, mas não vivera de fato. A profecia era tão incerta quanto um sonho de uma noite de verão na terra em que seria eternamente dia.
Antes porem de esquecer os novos versos, os escreveu. Era uma iniciada e aprendera a sempre guardar os mistérios para si e depois mostra-los ao mundo. Se não tivessem significados para ela, de certo o destino se encarregaria de levá-los a quem poderia os entender. E notou, como não poderia deixar de notar, que as palavras juntas formavam um prato ou copa, o Santo Graal do conhecimento.
Estava cansada e ainda pensava no amanha que talvez não viesse e antes de esperar sua visita ao templo das estrelas, resolveu ir visitar um velho amigo no mundo dos sonhos.
Ela visitaria a pessoa a quem ela mais ansiava conhecer.
Ela mesma.