quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Sob o Sangue No Assoalho II



II
Luzes


João fugia. Não da força das autoridades, mas do circulo vicioso do vigiar e punir da imprensa, das linhas nem sempre suaves da opinião pública. Para tanto optou não só por se mudar, mas também por esconder o sobrenome do pai, famoso pelo sucesso repentino no ramo petrolífero e, mais recentemente, pelo envolvimento com trafico de drogas e lavagem de dinheiro, mostrando apenas o sobrenome da mãe, comum e acima de qualquer suspeita.
João Augusto Dias C. foi o que escreveu no contrato, naquele ínfimo ponto no final de seu nome escondia-se toda uma vida de opulência e glamour de um abastado jovem carioca, uma vida que ele agora deixava para trás.
Não que fosse fácil ou que ele não apoiasse os pais, presos há alguns dias. Os constantes jornalistas o importunavam claro, mas ainda assim não eram seu maior temor, este lugar era destinado a Marcão, o chefe do cartel de drogas responsável pelo fornecimento dos negócios secretos de seu pai. Ele queria a cabeça de toda a família Castelamari e não descansaria até que João estivesse sob o sétimo palmo da terra.
A casa, abandonada há vinte anos, recém reformada não dava sinais de ser algo digno de seu sobrenome ou de quem ele era. Mas ali, no distrito de Nova Esperança, em Montes Claros, ninguém o procuraria. Aquela cidade faria certamente jus à seu nome, ali ele estaria à salvo.
— A casa tem dois banheiros, um aqui em baixo para as visitas, outro no quarto principal lá em cima. Tem mais dois quartos. A vizinhança é silenciosa, posso garantir. Eu moro umas quatro casas descendo a rua, então se precisar de alguma coisa pode me chamar. Alguma duvida senhor Dias? — João deu de ombros, já havia pagado em dinheiro o montante do valor da casa, não interessava saber se ela tinha dois ou um milhão de quartos, contanto que ali fosse seu refugio.
Agora ele via que comprar uma casa mobiliada não fora sua melhor escolha, a maioria dos moveis se mostrava em péssimo estado, pertencendo a uma época esquecida até mesmo por Deus e apenas o pequeno móvel ao lado do sofá puído dava sinais de ter sido reformado e envernizado.
Ignorando os moveis sujos de fuligem, ele apenas se sentou e ligou a TV procurando noticias do julgamento de seus pais, mas não havia nenhuma novidade no caso e nenhum dos traficantes envolvidos foi encontrado durante as batidas policiais. Marcão ainda estava solto e mesmo tão longe de casa, o rapaz tremeu ante a possibilidade de encontrá-lo.
Não demorou muito para que a noite caísse, no entanto, mesmo cansado, João recusava-se a dormir tal seu estado de alerta, temia a ruidosa noite que o deixava irrequieto. Dormir e ser surpreendido por um dos capangas do traficante era seu maior temor.
Vencido pelo cansaço, horas depois, ele adormeceu deixando as luzes acesas. A cozinha foi a primeira a se apagar, seguida do banheiro que ele havia usado, de seu quarto; uma a uma, até que restasse apenas a luz da tela a iluminar seu rosto, como um holofote que encontra algo digno de nota, até que mesmo esta fora apagada, restando apenas o luar sob seu rosto refletido através da janela.
E olhar da casa em sua direção.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Versos à um amor defunto



Para quem ainda não  sabe, eu publiquei à um tempo um livro de microcontos e poesias sobre amores que não deram certo. O livro se chama Versos à um Amor defunto e está disponível para compra na Amazon.Você pode acessar o livro clicando na figura abaixo:

http://www.amazon.com.br/Versos-amor-defunto-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00ZBQCV5A

Resposta à uma carta datilografada



Yule é renovação,

Esta é a resposta a uma carta datilografada que em seu conteúdo não possui quaisquer perguntas, nem mesmo foi forjada em busca de quaisquer respostas; era um agradecimento, uma carta de gratidão por ter recebido o maior dos presentes: a capacidade de começar de novo, como uma pessoa melhor. Um presente que custou a mim respectivamente: dias de paz, uma mágoa e por muito tempo minha capacidade de acreditar nas pessoas; minha capacidade de acreditar no amor já havia morrido antes disso e os eventos que culminaram em meu auto-sacrificio foram apenas circunstâncias que empurrariam a terra necessária para cobrir o caixão. Aquele à quem se dedica este texto, no entanto, não o lerá.
Muito aconteceu, meu caro amigo, desde que nos cruzamos pela última vez: eu me encantei verdadeiramente por uma série de mancebos, conheci pessoas maravilhosas as quais amei intensamente, algumas destas eu beijei, outras não. Ganhei um colar e uma série de nãos, viajei este pais a fora a procura de paz, encontrei os deuses que antes havia deixado de lado por medo do que você ia pensar.
E beijei, beijei num sol anterior a maio, dançando com a sombra infinita do Arpoador, e quer saber? Encontrei prazer, pela primeira vez em minha vida eu senti o que era o verdadeiro prazer carnal do qual tantos escrevem e eu só conhecia nos livros — lembro-me que você fora o único até então que havia aberto para mim esta possibilidade. — Meu corpo que sempre foi frio, sem duvida marcado profundamente pelo preço de ter sido envergonhado a vida toda, libertou-se naquela manhã de sol quando a lua se deitava em virgem. Percebi ali que poderia ser feliz, apesar de você.
Não houve como lhe perdoar todo este tempo, no entanto, mesmo depois de libertar meu corpo da tristeza que ele carregava anterior a ti, mas que contigo se calcificou. Não pude lhe perdoar pelo seguinte: meu corpo é frio, mas meu coração era quente, de veias abertas capazes de conter o mar em sua abundancia. Seu mal me quer fechou as portas da minha alma que se mostrou incapaz de acreditar na veracidade das emoções humanas deste então.
Até aqui. Aqui não mais tua sombra me atormenta, pois meu coração encontrou paz, encontrou confiança, encontrou verdade e o lar que você lhe negou. O meu coração não aprendeu ainda a abrir-se totalmente, ainda há muitos escombros a serem retirados. Ainda há muita escuridão à ser varrida para fora.
Nas trevas que habitei, teu fantasma resistente persistiu por tanto tempo que havia me esquecido que eu não era possuidor somente da força e de um altruísmo pelos quais tanto fui elogiado em sua carta, mas que eu também possuía uma capacidade de amar anterior as fronteiras — e era isto que eu havia perdido. — um dom que se expande sem limite, incapaz de ser parado. E o amor muda as pessoas, por mais que sofra; e foi isto que lhe tocou como faca, foi isto que destruiu seu mundo forjado de ódio e ressentimento; na época não percebi, mas não foi minha força e resiliência a atingir fatalmente suas vontades mesquinhas: foi meu Amor — não a paixão que senti por você, o Amor, o verdadeiro amor que desconhece pessoalidade, que se estende não só pela humanidade, mas também por cada pedra, anjo, deus ou ser. E foi por ter gastado tanto deste amor neste teu mundo negro, que acabei esquecendo o rosto do sol nesta que foi a mais negra das noites, esta noite longa demais, longuíssima como o solstício de inverno.
Yule, no entanto, é renovação; é perceber que o sol nasce apesar de tudo. E ao seu muito obrigado, eu agora respondo: não há de que.

Thiago Félix,
Anno 3

domingo, 13 de dezembro de 2015

Sob o Sangue do Assoalho I




I

ECOS


 
Ela está sonhando, por detrás de suas janelas esfumaçadas lembranças acordam como se ganhassem vida. Os fantasmas são apenas ecos de sua memória, espíritos não existem de fato, são apenas ecos do tempo e do espaço que se cruzam nos atravessamentos temporais em suas paredes.
Não são historias felizes, no entanto. Seu assoalho, caibros e colunas estão marcados por gritos de socorro e dedos de acusação. Vozes que penetraram no mais profundo abismo de suas fundações e a fazem ruminar pesadelos quando a noite chega, as vezes mesmo sob a luz do dia estas imagens persistem em se manifestar.
Suas cortinas estão fechadas como pálpebras que protegem suas oníricas imagens da luz do luar que as desvaneceriam. De vez em quando, um desavisado transeunte vislumbra uma dessas imagens na janela, e treme de medo e de frio, pois todas as noites assombradas são geladas como o coração da morte que a tudo leva.
As árvores no quintal se retorcem temerosas. Um recuo de medo, um esgar de dor e o alivio do esgotamento. Nada daquilo é real, porém, sendo apenas oníricas paisagens em repetição sistemática, de novo e de novo, todos os dias durante o último século.
Um sonho que se repete, numa cinemática cinematográfica, um quadro por vez. A casa range num ronco de quem mal respira afogado em mofo e bolor. O ar é pesado, impregnado de tanta poeira que é quase capaz de ser tocado; um homem sobe as escadas sem se dar de nenhuma destas coisas.
Não é difícil entender que, de fato, ele não está lá, é só uma lembrança. Mas a casa o olha com remorso e rancor, como se ele fosse real. Não que ele se importe; em sua época a casa não sonhava, não respirava, não via. Em sua época a casa não era assombrada por constantes pesadelos. Ele sobe a escada.
Os primeiros gritos, na verdade, são de prazer. Na cama uma jovem de cabelos vermelhos beija intensamente o loiro de meia idade, não há espaço ali para nada além de desejo e, de certa forma, paixão. A casa regozija-se no deleite daquele momento, na única parte do sonho em que tudo parece estar certo.
A mulher anseia por mais, provavelmente grita uma ou duas vezes frases desconexas. Seus olhos estão fechados e sua atenção totalmente voltada para o amante, por isso ela não ouviu os passos na escada e nem notou o homem parado a sua porta.
A cama range, gritando para avisá-la, mas ela não entende os sinais. Ela não se importa com mais nada além daquele momento. Nada mudaria se ela o notasse com antecedência, o homem não tinha pressa, mas estava determinado.
Tal determinação era evidente em seus olhos injetados, vermelhos de insônia e luzidios de ódio. Sua boca mostrava um esgar, mas igualmente um esboço malfadado de sorriso. Fora de si ele ao olha com o escárnio e o nojo de quem vê um verme se alimentar da carcaça do amor que possuía.
Um estremecer vara a noite e mancha de sangue os lençóis.
— Então é por isso que você me deixou, sua vadia? É por isso Joana? É por isso sua rameira?! Responde desgraçada! — Em choque ela o encara tremendo, seu amante jaz desacordado ao seu lado, o sangue gruda em sua pele nua, mas em seu medo não havia espaço para ele. Seu grito desesperado não é lhe trouxe ajuda, e os outros que se sucederam não lhe abençoaram com conforto.
O dia nasce e a casa acorda silenciando seus gritos entre o canto dos pássaros.