domingo, 13 de dezembro de 2015

Sob o Sangue do Assoalho I




I

ECOS


 
Ela está sonhando, por detrás de suas janelas esfumaçadas lembranças acordam como se ganhassem vida. Os fantasmas são apenas ecos de sua memória, espíritos não existem de fato, são apenas ecos do tempo e do espaço que se cruzam nos atravessamentos temporais em suas paredes.
Não são historias felizes, no entanto. Seu assoalho, caibros e colunas estão marcados por gritos de socorro e dedos de acusação. Vozes que penetraram no mais profundo abismo de suas fundações e a fazem ruminar pesadelos quando a noite chega, as vezes mesmo sob a luz do dia estas imagens persistem em se manifestar.
Suas cortinas estão fechadas como pálpebras que protegem suas oníricas imagens da luz do luar que as desvaneceriam. De vez em quando, um desavisado transeunte vislumbra uma dessas imagens na janela, e treme de medo e de frio, pois todas as noites assombradas são geladas como o coração da morte que a tudo leva.
As árvores no quintal se retorcem temerosas. Um recuo de medo, um esgar de dor e o alivio do esgotamento. Nada daquilo é real, porém, sendo apenas oníricas paisagens em repetição sistemática, de novo e de novo, todos os dias durante o último século.
Um sonho que se repete, numa cinemática cinematográfica, um quadro por vez. A casa range num ronco de quem mal respira afogado em mofo e bolor. O ar é pesado, impregnado de tanta poeira que é quase capaz de ser tocado; um homem sobe as escadas sem se dar de nenhuma destas coisas.
Não é difícil entender que, de fato, ele não está lá, é só uma lembrança. Mas a casa o olha com remorso e rancor, como se ele fosse real. Não que ele se importe; em sua época a casa não sonhava, não respirava, não via. Em sua época a casa não era assombrada por constantes pesadelos. Ele sobe a escada.
Os primeiros gritos, na verdade, são de prazer. Na cama uma jovem de cabelos vermelhos beija intensamente o loiro de meia idade, não há espaço ali para nada além de desejo e, de certa forma, paixão. A casa regozija-se no deleite daquele momento, na única parte do sonho em que tudo parece estar certo.
A mulher anseia por mais, provavelmente grita uma ou duas vezes frases desconexas. Seus olhos estão fechados e sua atenção totalmente voltada para o amante, por isso ela não ouviu os passos na escada e nem notou o homem parado a sua porta.
A cama range, gritando para avisá-la, mas ela não entende os sinais. Ela não se importa com mais nada além daquele momento. Nada mudaria se ela o notasse com antecedência, o homem não tinha pressa, mas estava determinado.
Tal determinação era evidente em seus olhos injetados, vermelhos de insônia e luzidios de ódio. Sua boca mostrava um esgar, mas igualmente um esboço malfadado de sorriso. Fora de si ele ao olha com o escárnio e o nojo de quem vê um verme se alimentar da carcaça do amor que possuía.
Um estremecer vara a noite e mancha de sangue os lençóis.
— Então é por isso que você me deixou, sua vadia? É por isso Joana? É por isso sua rameira?! Responde desgraçada! — Em choque ela o encara tremendo, seu amante jaz desacordado ao seu lado, o sangue gruda em sua pele nua, mas em seu medo não havia espaço para ele. Seu grito desesperado não é lhe trouxe ajuda, e os outros que se sucederam não lhe abençoaram com conforto.
O dia nasce e a casa acorda silenciando seus gritos entre o canto dos pássaros.

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