“Respire. Aqui não há tempo que possa alcançá-lo, as
árvores cobrem o céu, de forma que você não sabe se é dia ou noite. Tudo que
você pode ouvir é o som da minha voz, a minha voz que lhe alcança através das
árvores, nada mais lhe alcança através das árvores, nem mesmo a luz. Tudo que
você vê é o caminho a sua frente. Aqui não há passado ou futuro, aqui é o
eterno presente, aqui é um feitiço, o feitiço que você jogou sobre si mesmo.” Ela diz antes de sua voz cessar no escuro
da floresta que não ouso adentrar.
Meus
pés estão descalços, mas as pedras não os machucam, assim como o frio não
incomoda meu corpo nu. Eu caminho na estrada sem me preocupar com tempo, não há
relógios aqui ou deuses para medir o tempo. Aqui, nesta floresta, é onde os
deuses nascem. E onde — dizem — eles vêm para morrer.
Meu
nome é Henrique nesta vida, mas aqui todas as vidas que vivi são também eu e
carrego comigo todos os nomes que tive desde que Prometeu roubou o fogo dos
céus e deu ao primeiro homem. Eu sou filho da deusa que carrega consigo esta
chama numa tocha que nunca se apaga, é a voz dela que me guia nesta estrada que
não existe, é sua força que me mantém de pé na estrada que leva para fora do
mundo.
A
minha frente há uma encruzilhada de três caminhos e eu paro no meio dela,
incapaz de decidir por onde continuar.
— A esquerda. — diz minha mãe. Eu a obedeço.
Tudo
está escuro. Eu sou uma gota que cai numa taça, uma gota de sangue, do meu sangue.
Há apenas a taça e a gota que cai, mas eu sei, porque eu lembro, as palavras
que foram recitadas junto a este feitiço.
“Tudo começou com um feitiço. Um
simples feitiço para reencontrar alguém que quis ir embora. Um feitiço para
destruir, um feitiço para criar. Um feitiço de amor de um jovem que não estava
ciente de que nenhum poder é capaz de fazer alguém amar a quem não quer.”
As
palavras dela são um rio, um rio que corre ao contrário e que desemboca numa
memória. E como eu estou no meio de um feitiço, aquilo que deveria ser uma mera
lembrança se torna a repetição real de um momento ensaiado. Este é o passado, o
passado que acontece agora, como um fantasma fadado a repetir-se, a repetir-se
no Eterno Presente.
Felipe
sorri para mim. Seus olhos azuis contrastam com o mar à sua esquerda, seu
sorriso preenche o mundo à sua volta e nada mais existe além da escuridão e
aquela felicidade. Ele toma em suas mãos uma garrafa de Heineken e sorri para
mim, o universo para naquele instante, ele é o universo naquele instante, o
coração da deusa bate por ele ama porque eu o amo.
—
Só existem duas coisas capazes de mudar o Destino: o amor e uma garrafa de
bebida. — ele diz com sua voz firme, enquanto sua imagem desvanece como um
filme antigo.
Cerveja
é o há na taça. Era isso que eu queria na época, mudar o Destino, pois eu sabia
que ele se apaixonaria de novo, eu sabia que ele se apaixonaria por alguém que
não era eu. Meu feitiço não foi capaz de interromper seus passos em direção ao
amado, mas o trouxe em direção a mim.
“Eu
quero o amor de Felipe uma vez mais por mim” foram minhas palavras exatas.
“Você veio a mim, você veio até a
minha encruzilhada à procura de vingança. Você a encontrou, Henrique? Você
encontrou a paz que buscava ao descobrir o símbolo que lhe permitiria matar
Felipe?”
Não.
Eu não consegui aquilo que buscava. Felipe era um poderoso oráculo capaz de me
levantar com o poder de seu pensamento e me impedir de ferir mortalmente o seu
peito, como ele havia feito metaforicamente com o meu. Eu precisava atar suas
mãos, eu precisava atar seu poder, e foi exatamente isso que eu fiz.
Felipe
já não sorria. Seu olhar me encarava furioso. Eu era mais alto que ele, mais
forte fisicamente, mas ele me olhava como se pudesse parar o meu coração com
seus olhos, enfrentando-me sem medo da faca rente a sua garganta.
Eu
precisava matá-lo, eu precisava. Ele havia dito que me amava tantas vezes que
eu acreditei e agora que meu coração estava completamente preenchido dele, quem
mais poderia me amar? Ninguém. E para me ver livre deste sentimento, tudo que
eu precisava fazer era enfiar o fio de minha adaga um pouco mais, um tanto mais
e não haveria mais Felipe Casemiro no mundo para me fazer sofrer com sua
ausência.
A
faca caiu de minha mão. Eu não tive forças.
—
Para mim, basta saber que eu poderia tê-lo matado, Felipe, mas decidi não
fazê-lo.
Ele
olhou para mim. Seu olhar preenchendo o Eterno Presente. Seu olhar tomando a
forma de um par de deuses que vaticinam sempre a verdade, sua voz preencheu o
vazio e não parecia irritada, não parecia magoada, sua voz estava até mesmo
entediada.
—
Ambos sabemos que isto não é bem verdade.
E
ele tinha razão, então eu o deixei ir, eu o deixei continuar.
“Mas ambos sabemos que isto não é
bem verdade, filho. O feitiço que você pôs nele era poderoso, você que é filho
do Destino, aproveitou-se das fraquezas de seu próprio avô e perverteu os
caminhos que não poderiam ter sido mudados. Você criou um feitiço e o feitiço
reclamou sua conseqüência.”
Sim.
Eu havia feito um feitiço que eu mesmo não era capaz de quebrar e assim, André,
aquele por quem Felipe havia me deixado, terminou o relacionamento. Mas o
Destino é uma criança cruel, e as conseqüências por mexer com ele nunca são
baratas.
As
imagens sumiram repentinamente e eu estava no meio da estrada novamente, só e
nu, como estamos todos no caminho da morte, mas aquela não era minha morte,
era? Ainda estávamos na minha vida e a encruzilhada me levou ao caminho do meio
desta vez.
“Esta não é a sua vida.”
—
E porque estamos aqui?
“Porque todo feitiço de amor só leva
a um lugar: a outro feitiço de amor.”
Estamos
no meio de Setembro, o vento frio dos primeiros dias outonais invadia sua casa
espalhando as folhas que ele jogara no chão para potencializar a invocação.
Felipe estava nu e tremia sob o julgo do ar que lhe roubava todo calor.
Sua
respiração ofegante, sua pele rubra, e seus olhos lânguidos como se houvesse
alcançado finalmente os frutos de seu desejar... Desejo esse seria o deus que
invocaria. Não a força intangível e metafísica, existente apenas nas lendas
gregas, mas uma criatura ainda mais poderosa: o filho mais novo da Morte,
Tertuniel.
––
Na escuridão se esconde a lascívia e o medo –– começou, falando as palavras que
nem sequer compreendia, forjadas em línguas há muito perdidas pelo homem –– e o
diabo na encruzilhada fornica com o desespero. –– Felipe moveu seus braços
lentamente para o alto, acompanhado por algumas folhas que se desprendiam do
chão, burlando a lei da gravidade. –– As dríades rodopiam sob os falo dos
faunos, sobre a relva da floresta entregues, diante da vontade inertes,
indolentes de prazer. –– Num movimento rápido, as folhas se ajuntaram aos seus
pés, engolindo-os com seus amarelados corpos vegetais. –– Queimem em desejo,
borbulhem diante do amor, incendeiem-se nos beijos lascivos da sombra, pois até
os mortos em sofreguidão se inflamam diante do coração flamejante de Tertuniel.
Eu vos invoco caminhante do fogo, eu vos chamo por um beijo, eu vos chamo por
um desejo, eu vos chamo pelo preço do meu coração. –– Chamas irromperam de seu
corpo, tomando toda a sala, queimando as folhas, lambendo suas pernas e braços.
O fogo acompanhou ao movimento de seu braço, quando ele estendeu sua mão ao
nada. –– Dance comigo na chama que é minha alma.
Ao
redor de sua mão, uma forma cinérea se formou numa mão negra que o segurava,
logo atrelada a um corpo de uma criatura angelical o cujos olhos de fogo o
encaravam.
O
anjo cinéreo era dotado de longas asas que se desfaziam sob a menor lufada de
vento, para logo se refazerem, constantemente alimentados pelas cinzas que
agora infestavam todo o ambiente.
Completamente
exposto frente à figura portentosa, Felipe tremeu de excitação, medo e receio.
Sua pele formigava, principalmente em volta da mão que tocava o anjo, era uma
sensação boa, mas aterrorizante, comparável aos primeiros momentos em que se
descobrira apaixonado.
Talvez,
compelido pelo ímpeto dessa nova paixão, seu próximo ato fora impensado, feito
para os moldes de um filme em câmera lenta. Puxou o anjo para perto de si e
encostando seu peito junto ao dele, beijou-o no lugar onde deveria estar sua
boca e misteriosamente não sufocara com a fumaça, ao contrario, beija-lo fora
como apagar as luzes no meio de um colapso, como sentir o gosto de todas as
chuvas e raios do mundo em seus lábios, como sentir o mundo inteiro parar
diante da glória da luz que emanavam.
De
fato, ambos emanavam luz naquele beijo, posto que estavam tomados pelas chamas,
reluzentes como duas criaturas angelicais no meio na escuridão tartárica que se
fazia na casa de Felipe.
Ao
final do beijo, o anjo se mostrou em sua forma verdadeira. Seus profundos olhos
prateados encararam o garoto nu e ruborizado a sua frente, eram impassíveis
como à lua, incapazes de mudar sua trajetória sob quaisquer circunstancias. O
franzir de seus lábios indicava que ele esperava o fim daquele ritual,
impaciente.
––
Eu desejo ter André em minha cama, ao menos uma vez.
Estava
feito, o pacto fora selado com algo mais poderoso do que sangue, ele fora
forjado no fogo da paixão de Felipe, no flamejar de todo o sentimento que ele
já sentira e que um dia viria a sentir. Um beijo, por um desejo, essa era a
regra que Tertuniel seguia.
“Mas Desejo não se importa com o
coração alheio e ainda assim, Felipe feriu-se com o que queria. Nada nos fere
mais do que aquilo que desejamos de todo coração sem se importar com as
conseqüências. André o deixou novamente e então, Felipe entregou-se a Morte.”
Ela
fala como se aquilo fosse o passado, mas onde estou fora do Eterno Presente,
aquilo é o futuro. Felipe estaria morto por minha causa? Eu me perguntei, mas
minha mãe sorriu e me levou de volta para sua encruzilhada.
“O caminho à direita é o futuro, mas
você deve ir por este caminho apenas se estiver preparado para saber o que seu
desejo criou. A maioria das pessoas não quer saber a verdade sobre as
conseqüências daquilo que desejam para si.”
Eu
caminhei.
Enquanto
caminhava em meu futuro, as pontas soltas se juntavam em minha mente. Felipe
havia se entregado a Morte, sim, mas não morreu, ao contrário, havia se tornado
a mesma. Tornou-se a Morte, conheceu sua alma gêmea e teve o coração partido.
Voltou a ser um mortal e por conta disso milhares de pessoas morreram em uma
noite.
“Seu desejo causou o apocalipse.”
Tudo
que eu quis era o amor de Felipe.
“Tudo que você queria era ter o amor
de Felipe para si, e não se toma a força nenhum amor. Não existe algo como um
feitiço de amor, meu filho, tudo que existe é o domínio da vontade e aqueles
que acreditam que isto lhes bata.”
Felipe
casou-se com André, mas o deixara para salvar o mundo. E isto o trouxe até mim,
e isto o trouxe até a cena que agora eu assistia.
Eu
morria em seus braços, para salva-lo. Meu sangue tomando todo o chão branco de
uma torre que no futuro traria bastante dor a muitos.
—
Porque? Porque você ficou na frente dele, seu tolo? Agora você vai morrer.
Porque diabos morrer por mim?
—
Isto não ficou claro, Felipe? Eu estou morrendo por você, porque você fez minha
vida parecer mais bonita, minha morte parecer nobre. Porque você é o único
motivo pelo qual eu morreria.
E
então eu morri, enquanto ele me deu um último beijo nos lábios, levando-me com
este beijo ao mundo dos mortos.
Não se pode deixar de amar os
mortos. E foi assim que você conseguiu o amor dele. Valeu a pena?
Ela
me deixa, as imagens da floresta desvanecem e eu estou de volta ao circulo que
montei antes desta meditação. A minha frente, uma taça de cerveja, em minhas
mãos, a gota de sangue que iniciaria tudo.
Eu
gostaria de dizer que enxuguei minha mão e mudei o destino. Que derramei a
cerveja na terra em libação para minha mãe e vivi minha vida como deveria, em
felicidade e harmonia.
Eu
gostaria de dizer que fui sábio e por isso estou comunicando esta história a
você, para que seja sabido que Henrique Calvalcante fez a escolha certa e que
ninguém morreu porque ele derramou uma gota de seu sangue numa taça de cerveja.
Mas
eu estaria mentindo e a Morte não teria nada a dizer.