segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O Apagar das Luzes: À fria luz de dezembro






Art. 1º. Parágrafo único. A Hegemonia na figura do Arconte é soberana e incontestável.
Art. 2º. A partir da presente data, toda fronteira está revogada.
I.       Cada Nação é parte constituinte federativa da Hegemonia.
II.    Cabe a decisão do Arconte Máximo a escolha do governo das federações.
III. Cabe ao presidente de cada federação a escolha do governador geral de suas províncias; bem como o Tribunal de Causas Especiais, que deverá ser presidido por este.
Art. 3º. Todo aquele que se souber portador de Licantropia deve apresentar-se imediatamente ao Tribunal de Causas Especiais de sua província para que seja devidamente treinado como Guardião.
I.       A autoridade do Guardião é inquestionável a cidadãos comuns.
II.    A estes, durante o período de Lunação não pode ser imputado o crime de homicídio, salvo sob ataque direto a um membro do Tribunal ou a figura pessoal do Arconte.
III. Ao não cumprimento destas determinações deve ser imputada a pena de morte sumária.
Art. 4º. Todo aquele que se souber portador de Mediunidade deve apresentar-se imediatamente do Tribunal de Causas Especiais de sua província; para que se realizem os testes necessários.
I.       Qualquer um que atinja nível 3 ou superior nos testes é considerado Oráculo e deve ser contido para seu próprio bem e para o bem de todos os cidadão.
II.    A utilização de tais poderes mediúnicos é expressamente proibida e o descumprimento desta medida será caracterizado sob crime de Oraculia; cuja pena é morte por alvejamento publico.
III. Fica vedada a qualquer instituição religiosa a utilização destes poderes em seus rituais.
IV. A todo aquele que não se apresentar aos testes deverá ser imputado o crime de não submissão à soberania da Hegemonia, cuja pena é alvejamento publico.
Art. 5º. Todo aquele contrário aos dogmas Hegemônicos deve ser alvejado publicamente e seu corpo impossibilitado de velamento e deixado para apodrecer.
Art. 6º. Felipe Casemiro deve morrer.

(Constituição Geral das Nações Hegemônicas)

Chovia. E se há algo que é sabido por toda tradição é que certas chuvas significam, na verdade, a tristeza de um oráculo que lhe escapa o peito e ao invés de cair por seus olhos, abre as comportas celestes, como se seu próprio espírito se dissolvesse em nuvens, em precipitação. Chovia muito nos últimos tempos; era tempo de caça, eram os tempos da Lei e todo aquele que tivesse qualquer poder acima do considerado normal, era julgado, preso, morto e esquecido pelos anais da história, pois o governo é soberano e nada pode esconder-se de sua vontade.
Naquele exato instante, a causadora da chuva sequer sabia ser ela a culpada de tal subversão da natureza, ensinada a esconder seus dons, ela esquivou-se por mais tempo que pode, se mudando da capital, Cuiabá, para Argentopolis, uma cidade agrícola as margens da BR. 070. Poucos habitantes, lugar pacato, do qual pouca gente, ou sequer ninguém, tinha realmente de fato conhecimento tangível do que era Lei e porque a Hegemonia era algo tão absurdo. Para eles, o vento da mudança pouco fez alarde quando chegou. No entanto, o lobo uiva; o lobo sempre acha o que quer achar.

Gabriela nunca se ocupara em saber sobre as lendas locais, para ela, a cidade pequena acalentava superstição demais; para alguém que estava sendo seguida por um exercito de criaturas saídas a pouco tempo do folclore mundial, aquele fora seu principal erro. Ela jamais seria capaz de imaginar que se apaixonaria justo por um lobisomem, tendo em vista que ela só descobriu a existência deles durante o Apagar, quando a maioria das estrelas apagou-se do céu, numa chuva de cacos de estranhos vidros.
Rafael, por outro lado, também nem sempre soube que era um lobisomem e pouco conhecia do seu papel na nova ordem; nascera assim, era bem verdade, mas só havia percebido o real motivo de suas regulares aparições deitado seminu no cemitério da cidade quando finalmente soube da existência de pessoas iguais a ele. Argentopolis não era nenhuma potência na região, por isso, o ataque massivo dos lobos durante o Apagar não atingira aquele lugar; ali, a notícia chegara muito mais tardiadamente, na forma da defesa do novo governo que se instaurava.
Lobisomens existiam, este era um fato que não podia ser negado ante a morte de 700 milhões de pessoas em apenas uma noite, no mundo inteiro. O perigo era real, mas podia ser contido; afinal, a lua cheia acontece apenas uma vez a cada vinte e oito dias, no entanto, por mais estranho que possa parecer, a guerra que se instaurou, junto ao governo que pretendia abranger toda a humanidade, não era contra os lobos, estes seriam, na verdade, beneficiados pela situação.
Havia uma força irrefreável no mundo, algo que não era periódico ou facilmente medível: Os oráculos; eram estes os verdadeiros culpados pelo Apagar, os lobos apenas enlouqueceram com a situação, contudo, foram aqueles, os causadores de todo mal, segundo toda imprensa mundial à época.
Diante do horror da população que acabara de viver um holocausto, o terror ao perceber a existência de pessoas, aparentemente como eles, mas capazes de mover objetos, causar ilusões em suas mentes e até mesmo derrubar as estrelas; a ideia de uma nova caçada as bruxas não parecia ser tão absurda. Os oráculos deviam ser caçados e mortos, enquanto que os lobisomens, anistiados de sua culpa, deviam tornar-se os guardiões da população humana, pois podiam sentir, mesmo quando não transformados, o cheiro de quem era diferente.
O governo hegemônico foi instaurado na figura de Domenique Stravinsky; ele, e apenas ele, conseguiu estabelecer um acordo entre os lobos e os homens. Responsável por desvelar a ameaça oracular de uma maneira tão sensacionalista que mais parecia ter saído de um filme dos x-men, ele galgara para si o titulo de arconte máximo, e seu palacete na capital russa, tornou-se o centro do governo mundial.
Quando a constituição geral da hegemonia ficou pronta, ela foi apresentada em todos os canais abertos de televisão; a população de Argentopolis pouco sentiu que sua vida havia mudado; afinal, quem em uma população de pouco mais de cinco mil habitantes seria um lobisomem? Havia lendas, é claro, mas ninguém se importava. Nem mesmo a prefeitura pareceu se importar em colocar um Tribunal de Causas Especiais para averiguação de possíveis oráculos e apresentação de lobisomens para serem soldados de vigia.
No entanto, a cidade possuía um lobisomem escondido em seu cerne; um que verdade seja dita, não estava a par das mudanças mundiais, nem fizera mal a ninguém durante o Apagar; tudo que Rafael quisera durante toda sua vida era ser normal, tentara por diversas vezes renegar sua condição, mas isso lhe era impossível. Ele jamais teria percebido que o cheiro da garota por quem ele se apaixonara era diferente, se porventura, não tivessem frisado tanto na TV a importância da identificação dos oráculos.
Gabriela havia chegado à cidade assim que os tramites para a criação da hegemonia começaram; ela havia percebido que, cedo ou tarde, a culpa total recairia para os oráculos; amplamente citados por Stravinsky em seus discursos. Toda a atenção estava sendo voltada para eles, em vez, dos lobisomens, tomados como vitimas históricas da situação.
Era tudo uma questão de controle, no entanto; era mais fácil conter alguém que se torna um monstro uma vez a cada vinte e oito dias, do que alguém que era capaz de decidir quando e onde usar seu poder. Num confronto ideológico entre manter lobisomens e matar oráculos, o verdadeiro monstro foi revelado: a raça humana, capaz de tudo para assegurar sua sobrevivência, mesmo que esta não estivesse diretamente ameaçada.
Pais entregaram filhos, irmãos revelaram irmãos. Mães chorosas eram deduradas por sua própria prole e levadas acorrentadas para os tribunos; pessoas arrastadas em veículos negros durante a noite, poucas execuções publicas, guardadas apenas para aqueles que se mantiveram firmes em desejar sua liberdade. Todos os outros, os que se deixaram vencer pelo medo: presos e acorrentados em campos longínquos ou casas de detenção. O homem comum dormia em paz, surdo para os gritos de socorro.
A cena era tétrica, fazendo-a lembrar da guerra contra o terror promovida pelos EUA, quando ela era mais jovem; naquele instante, arrependia-se de ter sido a favor de uma infinidade de pequenas guerras a favor da paz. Ali, sendo caçada feito bicho, ela percebia que nem tudo era o que parecia e que as vezes a sensação de paz custa mais caro do que se imagina.
Quem diria que diante daquele cenário desolador, o amor entre dois seres tão distintos cresceria? Como Romeu e Julieta, diante da adversidade, Gabriela e Rafael conheceram-se numa festa e se apaixonaram sem saber que este amor estava fadado ao fracasso. A primeira a perceber a incongruência deste relacionamento foi ela, incapaz de revelar a verdade sobre si mesma; ao ouvir a verdade sobre a existência dele, percebera que devia terminar o relacionamento. Mas como? Como terminar um relacionamento que a fazia sentir viva? Não poderia.
Então, quando Rafael propôs a ambos que viajassem até Cuiabá para que ele pudesse alistar-se no Tribunal, a fim de se tornar um dos soldados desta Nova Ordem, ela viu-se obrigada a contar-lhe a verdade, valendo-se da esperança de que ele a amasse o suficiente para abdicar de suas ambições. Felizmente, ele a amava.
Contudo, o preço a se pagar era alto; o desespero tomou o coração de ambos: ele já havia mandado a inscrição à Tribuna e eles viriam buscá-lo no final da semana; lobisomens treinados iriam chegar à cidade, certamente reconheceriam de longe o cheiro de um oráculo; Gabriela seria encontrada se ali permanecesse. Ambos teriam que fugir.

Na chuva, ela esperava pacientemente, sem se importar com as malas no chão, encharcadas e sujas de lama; seu medo era que ele desistisse de repente, que ele não viesse. Seu medo era de ter de partir sozinha e assim o faria invariavelmente aos primeiros raios da manhã; com ou sem ele.
Sutilmente, baixinho, ela recitava a oração das luzes; o texto a estampar a contracapa do livro de Laars Zaham. Pedia ao sagrado coração da estrela que a protegesse naquele momento de dor e frio; não sabia para onde ir e se ele não viesse, não sabia pelo o que continuar vivendo. Ali, sozinha na chuva, ela pediu aos deuses sobre as luzes que o trouxessem depressa.
Como resposta às suas preces, um par de luzes divisou-se na estrada. Seu coração apertado sabia de quem se tratava, mas parecia temer alguma coisa. Receio de que não conseguissem fugir, talvez? Gabriela não sabia, mas sentia em seus ossos que algo estava para acontecer.
Uma extensa nuvem negra parou sobre o céu de Argentopolis aquela noite; acima do par de luzes do carro; da garota que a havia invocado e da estranha figura de negro parada no horizonte fitando a cena como quem assiste a uma novela. Este não se molhava; não se mexia, não respirava. Sua única intenção era esperar.
Gabriela não notou a terceira presença em seu cenário; seus olhos obcecados com o carro a sua frente não eram capazes de divisar outra coisa. Rafael demorou a descer como quem hesita diante do pulo, mas por fim, acabou o fazendo; trazia em seu semblante um sorriso e brilhantes olhos chorosos.
Sua aproximação foi lenta e compassada, como é típico dos lobos fazer; seu abraço foi apertado e quente, assim como seu beijo que fez a jovem esquecer todos os seus receios; ela queria possuí-lo ali, em cima das malas, no meio da chuva, mas conteve-se; manteve-se por satisfeita com o beijo na chuva, no escuro quebrado apenas pelas luzes dos faróis. Assistida pelos deuses acima destas luzes, assistida pelo anjo silente no horizonte, assistida pelas fiandeiras do destino que sustinham uma linha carmim em suas mãos carcomidas.
— Eu quase cheguei a pensar que você não vinha. — disse a garota ofegante.
— Eu quase pensei em não vir, mas não podia deixar de te ver, Gabriela. Algo em mim me impediu de deixar de te ver. — seus olhos azuis a fitavam amargurados, ele tremia; a moça percebia que não era de frio, apesar do frio que fazia.
— Há algo errado? Eles chegaram? Eles nos descobriram?
— Não; eu é que descobri uma coisa.
— O que?
A garota fitou-o perplexa; o que ele havia descoberto? Seria algo sobre ela que o fez desistir de amá-la? Seu coração quase parou de tão apreensiva que estava; a chuva se intensificou, seu rosto era parte da nuvem negra que pairava acima de todos. Involuntariamente mordeu o lábio esperando a resposta.
— Você sabe a Verônica V. A cantora?
— Sei.
— Bem, eu estava no meu quarto arrumando a bagagem quando uma música dela começou a tocar no rádio. “When they fell”; você sabe, a música sobre os dois garotos que se amam, até que um morre e tudo desmorona. Você conhece a tradução, não conhece?
— Sei. “Quando eles caíram, a sombra do mar nos levou. Não mais prateadas luzes pra servir de guia, apenas um último beijo na chuva manchada de sangue.” — ela recitou o trecho que se lembrava da música, Verônica nunca fora uma de suas artistas favoritas, mas era impossível não conhecer suas músicas quando elas tocavam incessantemente em todo lugar.
— Pois é. E ai tem aquele trecho “Quando você se foi, o mundo calou-se num grito. Apenas eles, eles a comandar o infinito. Matem os filhos das estrelas, ordenou a soberana lua no céu mais bonito. Quando você se foi, o mundo encheu-se de noite e de gritos. Eu estava só diante da escuridão iníqua do mundo”. Você não percebe? Ela está falando da hegemonia; os filhos das estrelas são os oráculos, não entende? Os lobisomens são a voz da soberana lua; eu não sei o que ela quer dizer com essa história dos garotos, mas… mas eu acho que Veronica V. é um oráculo.
— Você ta viajando, Rafael; a gente tem que ir embora.
— Não, acompanha só meu raciocínio. Ela é uma das maiores cantoras da atualidade, ela é ouvida toda hora, em todo lugar. Talvez existam outros que como eu perceberam a conexão do que ela diz com o que está acontecendo no mundo; até mesmo de músicas que ela lançou antes da Lei, de tudo isso acontecer. Você não percebe? Ela está tentando avisar a todo mundo contra a Hegemonia. Ela está incitando uma rebelião!
— E daí, Rafael! A gente tem que ir embora!
— Você não entende Gabriela! Eu fiz uma descoberta que pode me valer uma condecoração na Nova Ordem. Eu descobri que a maior cantora do mundo é uma artista anti-hegemonica; eu posso ficar famoso, eu posso acabar fazendo parte da história.
— Então você está me dizendo que não vem comigo?! É isso?! — A jovem chorava, tomada por desespero e raiva. Como ele podia deixá-la assim?
— Não, eu não vou. E nem você.
O jovem afastou-se da garota e puxou uma pistola de seu moletom. Seu braço em riste, sua face chorosa que teimava em não sucumbir às lágrimas. Ele sabia o que estava fazendo, pensara muito sobre isso antes de pegar o carro e a vir encontrar pela última vez; não iria ceder agora.
— Pra onde você fugiria? Nós estamos no mundo todo, Gabriela. Nós somos o mundo todo. Nós somos a hegemonia.
— Você está começando a falar como eles.
— Eu sou parte deles. Caralho! — Rafael tremia, estava nervoso demais para conseguir pensar. Devia continuar com o plano, sabia que aquilo era o justo, que aquilo era o certo. Não podia se deixar chorar agora, não agora. Talvez um dia, mas não agora. — Eu sou um deles. Você vai fugir pra sempre, Gabriela? Como? Pra onde você vai? Não há lugar para gente como você no mundo e cedo ou tarde você vai encontrar um lobo que não te ame feito eu, e ele vai te torturar antes de te matar.
Gabriela chorava.
— Mas você vai me proteger. Você disse que me protegeria.
— E eu vou te proteger. Pra onde tu vai; ninguém mais vai te machucar. Eu juro que não vai doer, meu amor; é melhor que você morra pelas minhas mãos do que pelas mãos de qualquer outro. Eu te amo, estou fazendo isso pelo o seu bem.
— Pelo meu bem?! Você vai me matar pelo meu bem?! Você vai me matar porque você é covarde demais para enfrentar o mundo. Você é covarde demais pra fugir comigo. Você realmente me amou, Rafael? Você realmente me amou sequer um minuto a mais do que você ama a esse seu desejo por poder?
Gabriela esperou a resposta, chorando compulsivamente, não por medo, mas pela raiva de saber que estava sendo trocada por uma possibilidade remota de uma posição de poder. Não era capaz de aceitar tamanha traição: dois tiros em sua cabeça.
O jovem à sua frente nada disse; trazia em seu semblante chorosos olhos da cor do céu em dias de chuva, no entanto, não chorava de fato, não estava arrependido. O mundo mudou, sabia ele, e era hora de deixar a mulher que amava para trás ou ambos seriam tragados juntos pela iniqüidade da nova ordem; antes ela, do que ele. A verdade era que Rafael continuava sendo um egoísta, um profundo egoísta cruel e insensível o suficiente para matar a mulher que amava.
No entanto, ele a amava; dois tiros.
***
O Fiat 2003 vermelho cortava a noite num rastro de sangue e falta de pudor. Fora difícil, era verdade; mas no caminho até Cuiabá ele acabaria por esquecer o resquício da dor que lhe insuflava o peito. Para seu primeiro assassinato a sangue frio, até que ele fora bem; muitos outros viriam se ele fosse aceito como um integrante da Guarda Lunar.
Rafael acendeu um cigarro. Ligou o rádio e deixou-se levar pelo caminho do destino que tomara para si a ferro e fogo. O som da música o invadiu. “Wolf Boy”, anunciado pelo apresentador do programa como o novo single de Veronica; o jovem não pode conter o riso.
“Você pensa que acabou? Onde você vai chegar com isso menino lobo? O amor que escorre por seus dedos não pede perdão. O amor que escorre por entre os seus dedos não faz promessas. O amor que escorre por entre os teus dedos, oh! Estes teus alvos dedos, pede retribuição. Aonde você pensa que vai, menino-lobo? O mundo é grande e vai te engolir como se fosse nada.”
Parecia contundente, ele sabia; era um recado para ele. Aumentou o volume do rádio, em atrevimento. “Aonde você pensa que vai, menino-lobo? Seus sonhos estão sujos de pó.”
— Em busca da glória, Verônica. E você se engana, eu é que vou engolir o mundo.
“Você acha que ninguém te viu desperdiçar o amor dela?”

A estranha figura de negro adquiriu traços humanos à medida que lentamente caminhava em direção a garota morta sobre a grama. Era um rapaz jovem cuja fronte possuía a expressão mais triste que alguém podia manter num rosto tão belo, sua feição era grave e carregada de pesar, como se ele houvesse estado em funerais por toda sua vida.
Ele era mais antigo que sois; mais antigo até mesmo que a maioria das estrelas. Estava lá quando os anjos caíram da cidade de prata, viu a terra sair de um amontoado de rocha derretida para se tornar um santuário repleto de vida. Ele estava lá quando os primeiros homens se formaram, e quando olharam pela a primeira vez as estrelas, incapazes de conceber sua origem. Ele era mais velho que o tempo; e sim, como o filho primogênito da Morte; ele esteve sua vida inteira em funerais.
Azrael sentou-se ao lado da sombra que um dia fora a moça; um misto de dor e sofrimento translúcido, que olhava incrédulo para a carcaça inerte ao chão. Ambos se entreolharam em reconhecimento, não é difícil reconhecer um anjo quando se está morto.
— Ele realmente atirou em mim. Eu ainda não acredito nisso. E sequer foi capaz de me dar um funeral ou de me enterrar. Filho da mãe.
— Você merecia mais; é certo. Não posso te oferecer uma segunda vida, um segundo caminho para trilhar. Eu sinto muito, garota; eu não sou minha mãe, eu não sou a Morte.
— E onde ela está?
— Ela se perdeu, sumiu quando as estrelas caíram. Sabe… O amor transforma até mesmo os deuses. Minha mãe, ela foi banida do céu porque se apaixonou pelo general do exercito caído, creio ter sido por isso que ela, por fim, exilou-se e entregou sua coroa, e tudo que ela representava, a um mortal. A primeira encarnação de minha mãe foi um vampiro que se apaixonou pelo sol. A segunda, uma bruxa que esperou milênios até que seu amado retornasse aos vivos. O último? Casemiro, ah, Casemiro, esse sim tinha muita história pra contar.
— Felipe Casemiro? — perguntou o fantasma da moça. — O garoto do artigo seis?
— Sim. Felipe cometeu o erro de se apaixonar e não medir as conseqüências do que fazia. Ele chegou a invocar até mesmo meu irmão mais novo, Tertuniel; para conseguir reaver o seu amado. Não deu muito certo. Ele tentou se matar e no processo acabou se tornando a própria Morte. Também foi por amor, por amor a um garoto que adotara; o amor de um pai, por um filho; que ele chorou quando o garoto morreu na chuva, no dia do Apagar. A Morte não pode chorar.
— Espera. Você quer dizer que Rafael estava certo? Verônica é um oráculo? Esse Felipe… ele é o garoto da música não é? O garoto que lamenta a morte do amado? Então… droga!  O maldito estava certo e vai conseguir o que queria. Amaldiçoado seja o dia que eu amei aquele lobisomem.
— Sim; ele está certo, Verônica é um oráculo e Felipe é o garoto da música. Ao chorar, ele quebrou o equilíbrio e derrubou as estrelas, ele causou o Apagar; não que ele tenha toda culpa nisso: era tudo parte de um plano. O general dos caídos, o homem que você conhece como Domenique Stravinsky precisava ascender ao poder; Felipe era o que estava em seu caminho.
— Então você quer dizer que o Arconte… O Arconte é literalmente um demônio? Essa história está começando a ficar cada vez mais esquisita. Eu não estou conseguindo compreender.
— Meu irmão, Tertuniel; é também filho do Arconte; é por isso que ele ajudou a acabar com a vida do Casemiro. Não que eles esperassem que ele se tornasse a Morte, nada disso; tudo que eles precisavam era eliminar o garoto e o universo entraria em colapso por causa dele. O problema é que Felipe se tornou a Morte e quanto à mulher de Tertuniel morreu… bem… Não havia mais a quem culpar. Ele passou a nutrir um profundo ódio dos oráculos desde então.
— Eu não entendo.
— O que eu quero dizer é que tudo isso está ligado, entende? Toda esta história é sobre corações partidos desde antes de o tempo existir. Minha mãe amava o Arconte, ainda assim o derrotou e foi responsável por sua queda; todos os portadores de seu poder foram pessoas que tiveram seus corações partidos. A própria sacerdotisa que previu o lugar de Casemiro na confluência do fim dos tempos fora abandonada pelo deus com quem perdera a virgindade, a própria mãe de Casemiro fora abandonada por este mesmo deus. Oráculos são hoje perseguidos, porque meu irmão perdeu sua amada; o mundo entrou em colapso porque Felipe se magoou duas vezes. Verônica não seria o que é hoje, se não houvesse buscado irrefreavelmente um remédio para curar a dor de ter se apaixonado e ter sido largada.
— Nós não estaríamos tendo essa conversa se o meu amado não tivesse atirado em mim.
— Exatamente. Se qualquer um destes, apenas um; não tivesse sido ferido pelo amor que carregava no peito, toda a história da humanidade até aqui teria sido diferente.
— Porque você está me contando isso?
— Porque achei que você precisava saber do poder que o amor e o ódio podem exercer na configuração dos fatos. Era o que você precisava saber antes de começar a sua busca.
— Minha busca? Minha busca pelo que?
— Por vingança, minha criança. Não é isso que você deseja?
— Mas eu estou morta!
O filho da Morte sorriu ante a declaração da moça. Não que estar frente a um fantasma perdido fosse algo divertido, não, não era; mas a percepção da piada obvia presente na cena o fez lembrar-se de certa vez em que ele próprio tivera o coração partido. E nessa onírica imagem ele deixou-se perder por uns momentos antes de exclamar de forma natural, como quem conta um segredo.
— Podemos dar um jeito nisso.


 Para os interessados no início desta história: