Art.
1º. Parágrafo único. A Hegemonia na figura do Arconte é soberana e
incontestável.
Art.
2º. A partir da presente data, toda fronteira está revogada.
I.
Cada Nação é parte
constituinte federativa da Hegemonia.
II.
Cabe a decisão do
Arconte Máximo a escolha do governo das federações.
III. Cabe ao presidente de cada federação
a escolha do governador geral de suas províncias; bem como o Tribunal de Causas
Especiais, que deverá ser presidido por este.
Art. 3º. Todo aquele que se souber
portador de Licantropia deve apresentar-se imediatamente ao Tribunal de Causas
Especiais de sua província para que seja devidamente treinado como Guardião.
I.
A autoridade do
Guardião é inquestionável a cidadãos comuns.
II.
A estes, durante o
período de Lunação não pode ser imputado o crime de homicídio, salvo sob ataque
direto a um membro do Tribunal ou a figura pessoal do Arconte.
III. Ao não cumprimento destas
determinações deve ser imputada a pena de morte sumária.
Art.
4º. Todo aquele que se souber portador de Mediunidade deve apresentar-se
imediatamente do Tribunal de Causas Especiais de sua província; para que se
realizem os testes necessários.
I.
Qualquer um que atinja nível 3 ou
superior nos testes é considerado Oráculo e deve ser contido para seu próprio
bem e para o bem de todos os cidadão.
II.
A utilização de tais
poderes mediúnicos é expressamente proibida e o descumprimento desta medida
será caracterizado sob crime de Oraculia; cuja pena é morte por alvejamento publico.
III. Fica vedada a qualquer instituição
religiosa a utilização destes poderes em seus rituais.
IV. A todo aquele que não se apresentar
aos testes deverá ser imputado o crime de não submissão à soberania da
Hegemonia, cuja pena é alvejamento publico.
Art.
5º. Todo aquele contrário aos dogmas Hegemônicos deve ser alvejado publicamente
e seu corpo impossibilitado de velamento e deixado para apodrecer.
Art. 6º. Felipe Casemiro deve
morrer.
(Constituição
Geral das Nações Hegemônicas)
Chovia.
E se há algo que é sabido por toda tradição é que certas chuvas significam, na
verdade, a tristeza de um oráculo que lhe escapa o peito e ao invés de cair por
seus olhos, abre as comportas celestes, como se seu próprio espírito se
dissolvesse em nuvens, em precipitação. Chovia muito nos últimos tempos; era
tempo de caça, eram os tempos da Lei e todo aquele que tivesse qualquer poder
acima do considerado normal, era julgado, preso, morto e esquecido pelos anais
da história, pois o governo é soberano e nada pode esconder-se de sua vontade.
Naquele
exato instante, a causadora da chuva sequer sabia ser ela a culpada de tal
subversão da natureza, ensinada a esconder seus dons, ela esquivou-se por mais
tempo que pode, se mudando da capital, Cuiabá, para Argentopolis, uma cidade
agrícola as margens da BR. 070. Poucos habitantes, lugar pacato, do qual pouca
gente, ou sequer ninguém, tinha realmente de fato conhecimento tangível do que
era Lei e porque a Hegemonia era algo tão absurdo. Para eles, o vento da
mudança pouco fez alarde quando chegou. No entanto, o lobo uiva; o lobo sempre
acha o que quer achar.
Gabriela
nunca se ocupara em saber sobre as lendas locais, para ela, a cidade pequena
acalentava superstição demais; para alguém que estava sendo seguida por um
exercito de criaturas saídas a pouco tempo do folclore mundial, aquele fora seu
principal erro. Ela jamais seria capaz de imaginar que se apaixonaria justo por
um lobisomem, tendo em vista que ela só descobriu a existência deles durante o
Apagar, quando a maioria das estrelas apagou-se do céu, numa chuva de cacos de
estranhos vidros.
Rafael,
por outro lado, também nem sempre soube que era um lobisomem e pouco conhecia
do seu papel na nova ordem; nascera assim, era bem verdade, mas só havia
percebido o real motivo de suas regulares aparições deitado seminu no cemitério
da cidade quando finalmente soube da existência de pessoas iguais a ele.
Argentopolis não era nenhuma potência na região, por isso, o ataque massivo dos
lobos durante o Apagar não atingira aquele lugar; ali, a notícia chegara muito
mais tardiadamente, na forma da defesa do novo governo que se instaurava.
Lobisomens
existiam, este era um fato que não podia ser negado ante a morte de 700 milhões
de pessoas em apenas uma noite, no mundo inteiro. O perigo era real, mas podia
ser contido; afinal, a lua cheia acontece apenas uma vez a cada vinte e oito
dias, no entanto, por mais estranho que possa parecer, a guerra que se
instaurou, junto ao governo que pretendia abranger toda a humanidade, não era
contra os lobos, estes seriam, na verdade, beneficiados pela situação.
Havia
uma força irrefreável no mundo, algo que não era periódico ou facilmente
medível: Os oráculos; eram estes os verdadeiros culpados pelo Apagar, os lobos
apenas enlouqueceram com a situação, contudo, foram aqueles, os causadores de
todo mal, segundo toda imprensa mundial à época.
Diante
do horror da população que acabara de viver um holocausto, o terror ao perceber
a existência de pessoas, aparentemente como eles, mas capazes de mover objetos,
causar ilusões em suas mentes e até mesmo derrubar as estrelas; a ideia de uma
nova caçada as bruxas não parecia ser tão absurda. Os oráculos deviam ser
caçados e mortos, enquanto que os lobisomens, anistiados de sua culpa, deviam
tornar-se os guardiões da população humana, pois podiam sentir, mesmo quando
não transformados, o cheiro de quem era diferente.
O
governo hegemônico foi instaurado na figura de Domenique Stravinsky; ele, e
apenas ele, conseguiu estabelecer um acordo entre os lobos e os homens.
Responsável por desvelar a ameaça oracular de uma maneira tão sensacionalista
que mais parecia ter saído de um filme dos x-men, ele galgara para si o titulo
de arconte máximo, e seu palacete na capital russa, tornou-se o centro do
governo mundial.
Quando
a constituição geral da hegemonia ficou pronta, ela foi apresentada em todos os
canais abertos de televisão; a população de Argentopolis pouco sentiu que sua
vida havia mudado; afinal, quem em uma população de pouco mais de cinco mil
habitantes seria um lobisomem? Havia lendas, é claro, mas ninguém se importava.
Nem mesmo a prefeitura pareceu se importar em colocar um Tribunal de Causas
Especiais para averiguação de possíveis oráculos e apresentação de lobisomens
para serem soldados de vigia.
No
entanto, a cidade possuía um lobisomem escondido em seu cerne; um que verdade
seja dita, não estava a par das mudanças mundiais, nem fizera mal a ninguém
durante o Apagar; tudo que Rafael quisera durante toda sua vida era ser normal,
tentara por diversas vezes renegar sua condição, mas isso lhe era impossível.
Ele jamais teria percebido que o cheiro da garota por quem ele se apaixonara
era diferente, se porventura, não tivessem frisado tanto na TV a importância da
identificação dos oráculos.
Gabriela
havia chegado à cidade assim que os tramites para a criação da hegemonia
começaram; ela havia percebido que, cedo ou tarde, a culpa total recairia para
os oráculos; amplamente citados por Stravinsky em seus discursos. Toda a
atenção estava sendo voltada para eles, em vez, dos lobisomens, tomados como
vitimas históricas da situação.
Era
tudo uma questão de controle, no entanto; era mais fácil conter alguém que se
torna um monstro uma vez a cada vinte e oito dias, do que alguém que era capaz
de decidir quando e onde usar seu poder. Num confronto ideológico entre manter
lobisomens e matar oráculos, o verdadeiro monstro foi revelado: a raça humana,
capaz de tudo para assegurar sua sobrevivência, mesmo que esta não estivesse
diretamente ameaçada.
Pais
entregaram filhos, irmãos revelaram irmãos. Mães chorosas eram deduradas por
sua própria prole e levadas acorrentadas para os tribunos; pessoas arrastadas
em veículos negros durante a noite, poucas execuções publicas, guardadas apenas
para aqueles que se mantiveram firmes em desejar sua liberdade. Todos os outros,
os que se deixaram vencer pelo medo: presos e acorrentados em campos longínquos
ou casas de detenção. O homem comum dormia em paz, surdo para os gritos de
socorro.
A
cena era tétrica, fazendo-a lembrar da guerra contra o terror promovida pelos
EUA, quando ela era mais jovem; naquele instante, arrependia-se de ter sido a
favor de uma infinidade de pequenas guerras a favor da paz. Ali, sendo caçada
feito bicho, ela percebia que nem tudo era o que parecia e que as vezes a
sensação de paz custa mais caro do que se imagina.
Quem
diria que diante daquele cenário desolador, o amor entre dois seres tão
distintos cresceria? Como Romeu e Julieta, diante da adversidade, Gabriela e
Rafael conheceram-se numa festa e se apaixonaram sem saber que este amor estava
fadado ao fracasso. A primeira a perceber a incongruência deste relacionamento
foi ela, incapaz de revelar a verdade sobre si mesma; ao ouvir a verdade sobre
a existência dele, percebera que devia terminar o relacionamento. Mas como?
Como terminar um relacionamento que a fazia sentir viva? Não poderia.
Então,
quando Rafael propôs a ambos que viajassem até Cuiabá para que ele pudesse
alistar-se no Tribunal, a fim de se tornar um dos soldados desta Nova Ordem,
ela viu-se obrigada a contar-lhe a verdade, valendo-se da esperança de que ele
a amasse o suficiente para abdicar de suas ambições. Felizmente, ele a amava.
Contudo,
o preço a se pagar era alto; o desespero tomou o coração de ambos: ele já havia
mandado a inscrição à Tribuna e eles viriam buscá-lo no final da semana;
lobisomens treinados iriam chegar à cidade, certamente reconheceriam de longe o
cheiro de um oráculo; Gabriela seria encontrada se ali permanecesse. Ambos
teriam que fugir.
Na
chuva, ela esperava pacientemente, sem se importar com as malas no chão,
encharcadas e sujas de lama; seu medo era que ele desistisse de repente, que
ele não viesse. Seu medo era de ter de partir sozinha e assim o faria
invariavelmente aos primeiros raios da manhã; com ou sem ele.
Sutilmente,
baixinho, ela recitava a oração das luzes; o texto a estampar a contracapa do
livro de Laars Zaham. Pedia ao sagrado coração da estrela que a protegesse
naquele momento de dor e frio; não sabia para onde ir e se ele não viesse, não
sabia pelo o que continuar vivendo. Ali, sozinha na chuva, ela pediu aos deuses
sobre as luzes que o trouxessem depressa.
Como
resposta às suas preces, um par de luzes divisou-se na estrada. Seu coração
apertado sabia de quem se tratava, mas parecia temer alguma coisa. Receio de
que não conseguissem fugir, talvez? Gabriela não sabia, mas sentia em seus
ossos que algo estava para acontecer.
Uma
extensa nuvem negra parou sobre o céu de Argentopolis aquela noite; acima do
par de luzes do carro; da garota que a havia invocado e da estranha figura de
negro parada no horizonte fitando a cena como quem assiste a uma novela. Este
não se molhava; não se mexia, não respirava. Sua única intenção era esperar.
Gabriela
não notou a terceira presença em seu cenário; seus olhos obcecados com o carro
a sua frente não eram capazes de divisar outra coisa. Rafael demorou a descer
como quem hesita diante do pulo, mas por fim, acabou o fazendo; trazia em seu
semblante um sorriso e brilhantes olhos chorosos.
Sua
aproximação foi lenta e compassada, como é típico dos lobos fazer; seu abraço
foi apertado e quente, assim como seu beijo que fez a jovem esquecer todos os
seus receios; ela queria possuí-lo ali, em cima das malas, no meio da chuva,
mas conteve-se; manteve-se por satisfeita com o beijo na chuva, no escuro
quebrado apenas pelas luzes dos faróis. Assistida pelos deuses acima destas
luzes, assistida pelo anjo silente no horizonte, assistida pelas fiandeiras do
destino que sustinham uma linha carmim em suas mãos carcomidas.
—
Eu quase cheguei a pensar que você não vinha. — disse a garota ofegante.
—
Eu quase pensei em não vir, mas não podia deixar de te ver, Gabriela. Algo em
mim me impediu de deixar de te ver. — seus olhos azuis a fitavam amargurados,
ele tremia; a moça percebia que não era de frio, apesar do frio que fazia.
—
Há algo errado? Eles chegaram? Eles nos descobriram?
—
Não; eu é que descobri uma coisa.
—
O que?
A
garota fitou-o perplexa; o que ele havia descoberto? Seria algo sobre ela que o
fez desistir de amá-la? Seu coração quase parou de tão apreensiva que estava; a
chuva se intensificou, seu rosto era parte da nuvem negra que pairava acima de
todos. Involuntariamente mordeu o lábio esperando a resposta.
—
Você sabe a Verônica V. A cantora?
—
Sei.
—
Bem, eu estava no meu quarto arrumando a bagagem quando uma música dela começou
a tocar no rádio. “When they fell”; você sabe, a música sobre os dois garotos
que se amam, até que um morre e tudo desmorona. Você conhece a tradução, não
conhece?
—
Sei. “Quando eles caíram, a sombra do mar nos levou. Não mais prateadas luzes
pra servir de guia, apenas um último beijo na chuva manchada de sangue.” — ela
recitou o trecho que se lembrava da música, Verônica nunca fora uma de suas
artistas favoritas, mas era impossível não conhecer suas músicas quando elas
tocavam incessantemente em todo lugar.
—
Pois é. E ai tem aquele trecho “Quando você se foi, o mundo calou-se num grito.
Apenas eles, eles a comandar o infinito. Matem os filhos das estrelas, ordenou
a soberana lua no céu mais bonito. Quando você se foi, o mundo encheu-se de
noite e de gritos. Eu estava só diante da escuridão iníqua do mundo”. Você não
percebe? Ela está falando da hegemonia; os filhos das estrelas são os oráculos,
não entende? Os lobisomens são a voz da soberana lua; eu não sei o que ela quer
dizer com essa história dos garotos, mas… mas eu acho que Veronica V. é um
oráculo.
—
Você ta viajando, Rafael; a gente tem que ir embora.
—
Não, acompanha só meu raciocínio. Ela é uma das maiores cantoras da atualidade,
ela é ouvida toda hora, em todo lugar. Talvez existam outros que como eu
perceberam a conexão do que ela diz com o que está acontecendo no mundo; até
mesmo de músicas que ela lançou antes da Lei, de tudo isso acontecer. Você não
percebe? Ela está tentando avisar a todo mundo contra a Hegemonia. Ela está
incitando uma rebelião!
—
E daí, Rafael! A gente tem que ir embora!
—
Você não entende Gabriela! Eu fiz uma descoberta que pode me valer uma
condecoração na Nova Ordem. Eu descobri que a maior cantora do mundo é uma
artista anti-hegemonica; eu posso ficar famoso, eu posso acabar fazendo parte
da história.
—
Então você está me dizendo que não vem comigo?! É isso?! — A jovem chorava,
tomada por desespero e raiva. Como ele podia deixá-la assim?
—
Não, eu não vou. E nem você.
O
jovem afastou-se da garota e puxou uma pistola de seu moletom. Seu braço em
riste, sua face chorosa que teimava em não sucumbir às lágrimas. Ele sabia o
que estava fazendo, pensara muito sobre isso antes de pegar o carro e a vir
encontrar pela última vez; não iria ceder agora.
—
Pra onde você fugiria? Nós estamos no mundo todo, Gabriela. Nós somos o mundo
todo. Nós somos a hegemonia.
—
Você está começando a falar como eles.
—
Eu sou parte deles. Caralho! — Rafael tremia, estava nervoso demais para
conseguir pensar. Devia continuar com o plano, sabia que aquilo era o justo,
que aquilo era o certo. Não podia se deixar chorar agora, não agora. Talvez um
dia, mas não agora. — Eu sou um deles. Você vai fugir pra sempre, Gabriela?
Como? Pra onde você vai? Não há lugar para gente como você no mundo e cedo ou
tarde você vai encontrar um lobo que não te ame feito eu, e ele vai te torturar
antes de te matar.
Gabriela
chorava.
—
Mas você vai me proteger. Você disse que me protegeria.
—
E eu vou te proteger. Pra onde tu vai; ninguém mais vai te machucar. Eu juro
que não vai doer, meu amor; é melhor que você morra pelas minhas mãos do que
pelas mãos de qualquer outro. Eu te amo, estou fazendo isso pelo o seu bem.
—
Pelo meu bem?! Você vai me matar pelo meu bem?! Você vai me matar porque você é
covarde demais para enfrentar o mundo. Você é covarde demais pra fugir comigo.
Você realmente me amou, Rafael? Você realmente me amou sequer um minuto a mais
do que você ama a esse seu desejo por poder?
Gabriela
esperou a resposta, chorando compulsivamente, não por medo, mas pela raiva de
saber que estava sendo trocada por uma possibilidade remota de uma posição de
poder. Não era capaz de aceitar tamanha traição: dois tiros em sua cabeça.
O
jovem à sua frente nada disse; trazia em seu semblante chorosos olhos da cor do
céu em dias de chuva, no entanto, não chorava de fato, não estava arrependido.
O mundo mudou, sabia ele, e era hora de deixar a mulher que amava para trás ou
ambos seriam tragados juntos pela iniqüidade da nova ordem; antes ela, do que
ele. A verdade era que Rafael continuava sendo um egoísta, um profundo egoísta
cruel e insensível o suficiente para matar a mulher que amava.
No
entanto, ele a amava; dois tiros.
***
O
Fiat 2003 vermelho cortava a noite num rastro de sangue e falta de pudor. Fora
difícil, era verdade; mas no caminho até Cuiabá ele acabaria por esquecer o
resquício da dor que lhe insuflava o peito. Para seu primeiro assassinato a
sangue frio, até que ele fora bem; muitos outros viriam se ele fosse aceito
como um integrante da Guarda Lunar.
Rafael
acendeu um cigarro. Ligou o rádio e deixou-se levar pelo caminho do destino que
tomara para si a ferro e fogo. O som da música o invadiu. “Wolf Boy”, anunciado
pelo apresentador do programa como o novo single de Veronica; o jovem não pode
conter o riso.
“Você pensa que acabou? Onde você
vai chegar com isso menino lobo? O amor que escorre por seus dedos não pede
perdão. O amor que escorre por entre os seus dedos não faz promessas. O amor
que escorre por entre os teus dedos, oh! Estes teus alvos dedos, pede
retribuição. Aonde você pensa que vai, menino-lobo? O mundo é grande e vai te
engolir como se fosse nada.”
Parecia
contundente, ele sabia; era um recado para ele. Aumentou o volume do rádio, em
atrevimento. “Aonde você pensa que
vai, menino-lobo? Seus sonhos estão sujos de pó.”
—
Em busca da glória, Verônica. E você se engana, eu é que vou engolir o mundo.
“Você acha que ninguém te viu
desperdiçar o amor dela?”
A
estranha figura de negro adquiriu traços humanos à medida que lentamente
caminhava em direção a garota morta sobre a grama. Era um rapaz jovem cuja
fronte possuía a expressão mais triste que alguém podia manter num rosto tão
belo, sua feição era grave e carregada de pesar, como se ele houvesse estado em
funerais por toda sua vida.
Ele
era mais antigo que sois; mais antigo até mesmo que a maioria das estrelas.
Estava lá quando os anjos caíram da cidade de prata, viu a terra sair de um
amontoado de rocha derretida para se tornar um santuário repleto de vida. Ele
estava lá quando os primeiros homens se formaram, e quando olharam pela a
primeira vez as estrelas, incapazes de conceber sua origem. Ele era mais velho
que o tempo; e sim, como o filho primogênito da Morte; ele esteve sua vida
inteira em funerais.
Azrael
sentou-se ao lado da sombra que um dia fora a moça; um misto de dor e
sofrimento translúcido, que olhava incrédulo para a carcaça inerte ao chão.
Ambos se entreolharam em reconhecimento, não é difícil reconhecer um anjo
quando se está morto.
—
Ele realmente atirou em mim. Eu ainda não acredito nisso. E sequer foi capaz de
me dar um funeral ou de me enterrar. Filho da mãe.
—
Você merecia mais; é certo. Não posso te oferecer uma segunda vida, um segundo
caminho para trilhar. Eu sinto muito, garota; eu não sou minha mãe, eu não sou
a Morte.
—
E onde ela está?
—
Ela se perdeu, sumiu quando as estrelas caíram. Sabe… O amor transforma até
mesmo os deuses. Minha mãe, ela foi banida do céu porque se apaixonou pelo
general do exercito caído, creio ter sido por isso que ela, por fim, exilou-se
e entregou sua coroa, e tudo que ela representava, a um mortal. A primeira
encarnação de minha mãe foi um vampiro que se apaixonou pelo sol. A segunda,
uma bruxa que esperou milênios até que seu amado retornasse aos vivos. O
último? Casemiro, ah, Casemiro, esse sim tinha muita história pra contar.
—
Felipe Casemiro? — perguntou o fantasma da moça. — O garoto do artigo seis?
—
Sim. Felipe cometeu o erro de se apaixonar e não medir as conseqüências do que
fazia. Ele chegou a invocar até mesmo meu irmão mais novo, Tertuniel; para
conseguir reaver o seu amado. Não deu muito certo. Ele tentou se matar e no
processo acabou se tornando a própria Morte. Também foi por amor, por amor a um
garoto que adotara; o amor de um pai, por um filho; que ele chorou quando o
garoto morreu na chuva, no dia do Apagar. A Morte não pode chorar.
—
Espera. Você quer dizer que Rafael estava certo? Verônica é um oráculo? Esse
Felipe… ele é o garoto da música não é? O garoto que lamenta a morte do amado?
Então… droga! O maldito estava certo e vai conseguir o que queria.
Amaldiçoado seja o dia que eu amei aquele lobisomem.
—
Sim; ele está certo, Verônica é um oráculo e Felipe é o garoto da música. Ao
chorar, ele quebrou o equilíbrio e derrubou as estrelas, ele causou o Apagar;
não que ele tenha toda culpa nisso: era tudo parte de um plano. O general dos
caídos, o homem que você conhece como Domenique Stravinsky precisava ascender
ao poder; Felipe era o que estava em seu caminho.
—
Então você quer dizer que o Arconte… O Arconte é literalmente um demônio? Essa
história está começando a ficar cada vez mais esquisita. Eu não estou
conseguindo compreender.
—
Meu irmão, Tertuniel; é também filho do Arconte; é por isso que ele ajudou a
acabar com a vida do Casemiro. Não que eles esperassem que ele se tornasse a
Morte, nada disso; tudo que eles precisavam era eliminar o garoto e o universo
entraria em colapso por causa dele. O problema é que Felipe se tornou a Morte e
quanto à mulher de Tertuniel morreu… bem… Não havia mais a quem culpar. Ele
passou a nutrir um profundo ódio dos oráculos desde então.
—
Eu não entendo.
—
O que eu quero dizer é que tudo isso está ligado, entende? Toda esta história é
sobre corações partidos desde antes de o tempo existir. Minha mãe amava o
Arconte, ainda assim o derrotou e foi responsável por sua queda; todos os
portadores de seu poder foram pessoas que tiveram seus corações partidos. A
própria sacerdotisa que previu o lugar de Casemiro na confluência do fim dos
tempos fora abandonada pelo deus com quem perdera a virgindade, a própria mãe
de Casemiro fora abandonada por este mesmo deus. Oráculos são hoje perseguidos,
porque meu irmão perdeu sua amada; o mundo entrou em colapso porque Felipe se
magoou duas vezes. Verônica não seria o que é hoje, se não houvesse buscado
irrefreavelmente um remédio para curar a dor de ter se apaixonado e ter sido
largada.
—
Nós não estaríamos tendo essa conversa se o meu amado não tivesse atirado em
mim.
—
Exatamente. Se qualquer um destes, apenas um; não tivesse sido ferido pelo amor
que carregava no peito, toda a história da humanidade até aqui teria sido
diferente.
—
Porque você está me contando isso?
—
Porque achei que você precisava saber do poder que o amor e o ódio podem
exercer na configuração dos fatos. Era o que você precisava saber antes de
começar a sua busca.
—
Minha busca? Minha busca pelo que?
—
Por vingança, minha criança. Não é isso que você deseja?
—
Mas eu estou morta!
O
filho da Morte sorriu ante a declaração da moça. Não que estar frente a um
fantasma perdido fosse algo divertido, não, não era; mas a percepção da piada
obvia presente na cena o fez lembrar-se de certa vez em que ele próprio tivera
o coração partido. E nessa onírica imagem ele deixou-se perder por uns momentos
antes de exclamar de forma natural, como quem conta um segredo.
—
Podemos dar um jeito nisso.
Para os interessados no início desta história:
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