quinta-feira, 8 de março de 2012

Dentro de Jaci



Dentro de Jaci

“Ao sentir a luz eu vi a imensidão
Das trevas dentro de mim,
Quando vi eu já não era um homem,
Eu era alguma outra coisa.”

Observo o amplo painel no altar da igreja. Pessoas passam e rezam olhando para a imagem de nossa senhora ao fundo do altar.
Estou já tão longe de casa. Sinto falta da cidade que jamais para. Sinto saudades de São Paulo, mas por lá eu jamais seria aceito! Seria caçado como um animal, mas não é isso que eu sou, não é?
Saio da Catedral Nossa Senhora da Glória. Hoje é mais uma batalha de uma guerra que nunca termina. Estamos sempre em guerra! Não, eu não odeio os humanos... Uma parte de mim não os odeia, mas eles estão sempre invadindo a mata fechada. Invadindo a natureza. O único lugar onde eu sou aceito como eu sou.
A floresta é o território sagrado capaz de abrigar um ser amaldiçoado como eu. Um lobisomem! E estão todos lá, homens rindo e se gabando. Todos matando inúmeras árvores e deixando animais indefesos para morrer ou fugir, agora serão eles os mortos, mas para os homens não há uma segunda opção. É apenas morrer.
A lua cheia está tão próxima que sinto o lobo dentro de mim uivar. Vejo uma mulher faceira e sinto seu aroma. A desejo, o animal quer soltar-se de sua jaula. Tão próximo à lua, que os índios chamam Jaci, eu me sinto com poderes ainda maiores do que aqueles que possuo no meu normal.
Minha agilidade e força estão ao máximo, às bênçãos por detrás da minha maldição, mas e se talvez se transformar em fera for apenas à maldição escondida na benção? Uma vez eu escutei que a diferença entre maldição e benção é o ângulo em que se olha. Eu sou a prova viva disso.
Ela me deseja. Está presa pelos meus olhos brilhantes. Quero a ter em meus braços, mas a odeio por ser humana!
Não é decerto o ódio e luxuria os sentimentos mais humanos que existem? Sim. E são ainda mais fortes nesse meio-humano. O animal dentro de mim colabora com a parte humana que a deseja. Dou um passo em sua direção.
– Pedro, não. Temos que ir agora! – Logo atrás de mim um irmão fala. Ele tem razão. Viro-me e vejo seus olhos e me vejo neles. Sou bonito com minha pele branca já muito bronzeada por causa de tanto sol e meus olhos verdes escondidos detrás de uma vasta cabeleira acobreada. Sou lindo, sou gostoso, sou um monstro!
Cumprimentei-o e parti com ele. Em algum lugar lá perto do rio estaria a embarcação a nossa espera. Lá eu poderia dormir um pouco e descansar. Esquecer de tudo... adormecer o animal e fingir que sou humano ao sonhar, porque somente os homens sonham...

***
A lua cheia está lá no céu. Ela me espera. Jaci fala comigo como se fosse minha mãe e ela diz: venha! Deixe sua alma humana e liberte o animal, eu a ouço, mas ainda não está na hora.
Meu relógio apita. São 11 horas. Dentro de uma hora chegaremos ao acampamento clandestino de uns madeireiros. Estou cansado. Viajo desde ontem, mas ignoro meus músculos doendo, em breve eles irão parar. Em breve eu deixarei de ser o bom e jovem Pedro e serei um enorme lobo matando pessoas nada inocentes.
Descemos todos do barco. Somos em 10 aproximadamente. O suficiente para causar um estrago e tanto! Estamos a uns dois quilômetros do tal acampamento... Sinto cheiro de tabaco, de bebida, sinto também cheiro de mulheres. Uma festa! Ótimo! Lobisomens sempre amam uma algazarra. Principalmente quando existe matança no meio.
Olho um dos meus companheiros. Ele parece um pouco apreensivo e carrega uma arma junto ao corpo. Tão jovem... Deve ter no máximo uns 15 anos, talvez menos! Tem um visual indígena. Pobre criança... Vitima da pobreza e ignorância dos pais. Jogado na mata tão criança ainda. Por ser lobisomem? Talvez não. Sua irmã humana também foi jogada. Soubemos lá na cidade noticias dela. Dizem que ela se tornou prostituta. Pobre garota, pobre garoto! Espero que ele mate com voracidade para esquecer as magoas!
Assim como eu faço!
Esquecer a idiota da família que me renegou. Humanos ridículos cheios de crenças e superstições... Me chamaram de monstro, mas será que eu sou mesmo algo assim? Só mato porque o sangue me faz esquecer... de meu pai... de minha família... de minha namorada... Deles! De todos eles que me renegaram.
Jaci não! Jaci fala comigo e me chama a ela. Ela me aceita. Ela me ordena. Ela está alta no céu. È meia noite: a hora das bruxas. O uivo parte de dentro de mim e eu sou o uivo. Sou um monstro, um animal voraz e sem noções de culpa. Estamos em guerra com os humanos e com nós mesmos. O ódio alimenta a fornalha que os faz atirar em nós. O ódio é o que nos torna fortes e vigorosos. O ódio e o amor... o amor de Jaci, a lua.
Como uma mulher carnal ela nos deixa viris e prontos para a batalha. Nos faz correr como fazemos agora para encontrar nossos inimigos. Nossa fúria é fugaz, porém marcante. Nossa fúria os irá matar, porque nós não somos simples animais! Somos homens que se tornaram animais! Lobisomens!
O cheiro de tabaco, o cheiro de mulheres... Quero-as! Quero o sangue dos homens e a carne das mulheres! Sinto o cheiro espalhado no vento. O ar que parece querer me barrar, mas eu sou mais forte! Eu sou mais rápido! Eu as quero. As mulheres...
Enormes vultos negros cortavam a floresta. Somos nós! Falta tão pouco para se chegar à clareira. Malditos! Cortaram as árvores... Destruíram parte do nosso lar...
Vocês humanos nos atiraram para fora de sua sociedade. Nos matariam se soubessem que existimos. E ainda tem coragem de destruir o único lar que nos aceitou?
Chegamos. Existiam poucas cabanas. Invadi uma em que o cheiro da mulher me chamava mais a atenção. Um irmão ao meu lado está com uma arma na boca, é o jovem. Garoto estranho!
E lá estava. A prostituta de longos cabelos pretos e lisos e os homens babando ante sua presença.
Pulei primordialmente sobre eles. Queriam desfrutar da deliciosa fruta daquela mulher, mas agora morrem aos gritos! Deles e delas.
O jovem talvez a mate primeiro que eu. Não importa! Me contento com o sangue humano em minha boca. Isso me alimenta... mais do que o ódio, mais do que a luxuria. Isso é a fonte de minha vida. O elixir do esquecimento...
Ouço um tiro. Esses humanos nunca aprendem? Não foi em mim, talvez a garota tenha tomado à arma do jovem. Ele é tão inexperiente! Bem, já terminei com os homens. Então me viro.
O jovem idiota está caído ao chão e a garota... Ah! A deliciosa garota está lá com a arma apontada para mim. Queria poder dizer “Balas não me atingem garota, é inútil”, mas apenas um uivo escapou de minha enorme boca.
Via a minha imagem nos olhos dela.  Sou enorme, perigoso com meu caminhar trôpego, porém mortífero. Ela sente medo e eu me alimento do medo dela. Ela se parece tanto com o jovem...
Aproximei-me dela. Agora já mais curioso, mas o medo humano não entende sinais corpóreos. Senti o projétil atravessar meu crânio... Seria uma dor irrisória, contudo, a bala era de prata.
Maldito seja traidor da raça! A prostituta ali era sua irmã e agora ela tinha balas suficientes para matar alguns de nós. Malditos sentimentos humanos! Mas eu não conseguia pensar nisso... Estava com sono...
Estava saciado de sangue então não doía mais lembrar de meus parentes e eu não sentia vontade de pensar em mais nada, mas morrer em paz?
Não!
Estamos em guerra. Estamos sempre em guerra.
Numa eterna batalha contra nós mesmos!

quarta-feira, 7 de março de 2012

Benjamin


Benjamin

"O único jeito de morrer é perder a fé
em si mesmo"

Dali a algumas horas o sol nasceria. Banhando de luz a cidade sagrada. Uma ou duas bombas explodiam em algum lugar do ao leste. Algo habitual aos ouvidos daquele homem.
Retesou os músculos novamente. Benjamin queria mais era ver o astro rei tingir o céu com suas cores vivas. Estava cansado da monocromática essência da noite, o preto do céu e o prata das estrelas o incomodava. Estava cansado das horas de escuridão que já duravam séculos.
O dia nunca vinha e talvez nunca viesse.
A fome o irritava, alias tudo ali o irritava. Porque não ia ao Brasil? Porque não viajava a uma terra onde podia esquecer as diferenças entre mulçumanos e judeus? Eram tantos porquês que nunca se acabavam.
A cidade sagrada estava linda como sempre estivera. Templos e mais templos erguidos para trazer gloria ao nome de Deus, mas onde esse Ser Supremo estava? Não via a guerra em sua terra ou aquele ser profano caminhando pelas ruas santas?
Há muito aquele homem não pensava novamente no criador. Como poderia? Depois de caminhar sorvendo o liquido da vida por tanto tempo se perde a fé a tal ponto que a fé pode machucá-lo.
O símbolo em sua mão confirmava isso. As seis pontas entrelaçadas da estrela de Davi. A marca que lhe fora infligida por uma judia ao tentar escapar da morte certa.
Junto à estrela de Davi nas costas de sua mão estavam tatuadas as palavras de um Ancião quando soube da história. “Não é Deus que nos fere é a fé dos humanos em seus símbolos”.
Benjamin compartilhava desde então dessa idéia. Talvez Deus não o visse como um ser abominável. Talvez o que o ferira não foi realmente Yaveh e sim a fé daquela mulher emanada através daquele símbolo. A esperança humana que lembrou sua carne da esperança que ele mesmo perdera.
Continuou andando pelas ruas, ainda incomodado pela fome. Quanto mais iria agüentar? Quanto tempo ainda faltava para o sol despontar no horizonte?
Uma moça ocidental caminhava pelas ruas de Jerusalém. Estava despreocupada apesar da crescente violência na região. Estava despreocupada demais para perceber o homem alto que a devorava com os olhos.
O homem que a esperava para desfrutá-la com seus dentes pontiagudos.
Com a elegância e graça de um vampiro Benjamin aproximou-se. Não queria assustar a moça e queria ver se ela adquirira algum artefato judeu em sua viagem de férias. Por algum motivo os símbolos sagrados só afetavam o vampiro quando o mesmo havia acreditado neles em vida. Precisava verificar, afinal não queria outra marca.
Com seus braços fortes e resolutos ele tomou-a para si. Deliciava-se do sangue farto que corria das veias dela para as suas. Por um momento toda a dor e divagação por Deus sumiram. Só havia o sangue e para um vampiro o sangue é o único Deus.
Mas até mesmo Deus tem um inimigo e o inimigo do sangue vampirico era o sol.
O pouco de humanidade em Benjamin queria ver a luz do dia e sentia a eminência de descobrir o que vinha após o amanhecer, mas o seu corpo não obedeceu.
Não importa o quanto você lute contra isso. No final, o vampiro em você sempre vence.

O vôo de um querubim



O vôo de um querubim


“Se na vida estive em terra,
A verdade é que minha morte foi no mar”


Natasha escuta o som vindo do radio. Como poderia pressupor que ouviria alguém fazer músicas sobre ela? Porque não faziam isso quando ela era... Bem... quando ela estava viva?
Sim, ela tinha total conhecimento disso. Estava morta e fadada a reviver o momento eterno de sua queda. Uma alma presa no inferno. Natasha era uma alma presa no inferno da sua própria existência.
Agora, em seu antigo aparelho de som, uma jovem adolescente de 16 anos escuta a música. No vocal, Antônio Shaman conta a história de uma garota que ele conheceu em sua infância. A primeira garota que ele beijou.
Ela partiu irresoluta ao abrir a janela do seu quarto. Ela olhou para o tempo em busca de uma chuva de lágrimas... mas tudo que ela encontrou foram os seus pensamentos e as marcas em seus pulsos, pulsando como Almas...
A criança cantava sem tomar conhecimento de que a garota da música estava parada ao seu lado. Não sabia, mas a garota que morava neste apartamento estava morta. Na verdade, nunca vivera realmente.
A garota agora estava presa no umbral entre os dois mundos. Não pertencia mais a carne, mas tão pouco era espírito. O seu nome nessa existência imaterial era Fantasma.
Ela se despediu sem uma carta de adeus, sem lágrimas... sem nada que pudesse a fazer voltar... sem nada que pudesse a fazer amar ou desistir... de novo.
Não havia marcas da antiga moradora. Ninguém se lembrava de uma mulher que morrera a quase 8 anos e não deixou vestígios de sua presença. Não amou ninguém, não foi amada por ninguém, simplesmente não existiu em toda sua vida terrena.
Agora, a ressequida e pálida Natasha lutava para libertar-se de sua existência. Partir de sua própria vida fora por demais fácil. Não tinha assuntos pendentes, ao certo jamais possuiu assunto algum a resolver em sua vida.
A solidão a invadiu como dor. Sempre esteve só, mas nunca imaginou que pudesse se tornar mais sozinha ainda. Sempre fora invisível ao mundo e agora ninguém a via ou a escutava.
Nem mesmo o diabo a veio buscar. Não havia para ela céu ou inferno, apenas o Limbo. A prisão eterna das almas. A morte não a viera buscar, ela estava sozinha em sua travessia.
Seria essa vida a única vida?
Ao cortar seus pulsos e perceber a beira caos e ao pensar que era seu fim. Se lançou do sétimo andar em seu vôo vertical...
Agora vinha o erro da música.
Ao ser apanhada pelas asas de um querubim. Cheio de magoas... Cheio de cartas... que ela nunca entregou.
Não! Não houve carta de despedida em sua viagem. Não houve sequer um querubim a segurar sua mão antes da queda mortal.
Ao abri suas asas, como Ismalia, seu corpo desceu a terra, mas sua alma permaneceu na janela. Como era belo ver seu corpo em queda livre...
A adolescente por fim desligava o som. Para ela aquela música não passava de uma história qualquer de uma garota que se suicidara. Como alguém podia escolher a morte? Se pudesse escolher... Escolheria viver melhor.
Mas não cabia a ela escolher.
Natasha olhava ainda o cômodo em busca de lembranças de sua vida, mas recordava-se apenas da morte. De resto havia somente o branco, o vazio etéreo de suas lembranças esquecidas.
A fantasma fechou os olhos e rezou. A cada dia mais percebia ser este o inferno e descobria em seus próprios pensamentos que não havia tortura maior do que se arrepender eternamente de um momento que durou 15 segundos.
Voar tinha seu preço e quem cobraria esse preço não seria a morte, ao contrario. Seria uma vida eterna de arrependimento e dor. A vida de um suicida do outro lado. A não-vida daquele que renegou a maior dádiva de Deus.
O sol já despontava no horizonte e o corpo etéreo de Natasha começava a difundir-se com o ambiente. Logo, ela desapareceria, pois não lhe era permitido ver a luz do dia.
Escolhera as trevas eternas e agora tinha de arcar com as conseqüências. Cada vez mais ela percebia a punição prometida por tantas religiões e dava-se conta da única verdade que não lhe haviam dito.
O único castigo real é a culpa.
Antes de morrer ela se achava um nada. Agora, fazia realmente parte do nada. Natasha era uma mera lembrança... um pensamento funesto em sua cabeça morta.
E por isso a culpa a corroia. Antes de sumir mais uma vez.

Tânia

Tânia


Vagueio por essa imensidão negra a minha frente. A escuridão é minha única morada já que em lugar nenhum serei aceita. Vejo a estalagem a minha frente e decido entrar. Sinto o cheiro de morte, o meu cheiro.
Perdoe os meus modos. Sou Tânia. A Morte. Ao menos sou assim desde que aceitei das mãos de meu antecessor Kaius A Dádiva, o poder de findar as vidas humanas e as encaminhar aos portões dourados do outro caminho.
Nesses meus milênios de existência vi e ouvi muitas coisas. Conheço as origens de todas as lendas, o gênesis de todos os deuses e com o tempo aprendi a não dar mais ouvidos a essas coisas. Conheço inúmeras lendas, mas jamais acreditei em alguma. Sou velha demais para histórias.
Percebo essas lembranças em minha mente ancestral quando meus olhos pousam sob uma placa de bronze. O Pai Nosso gravado gentilmente no metal fazia os religiosos pararem e os ateus cuspirem. Ambos acabavam por repousar na estalagem, Deus... Sempre um ótimo tipo de marketing!
Involuntariamente acabou por ler a oração que tantas vezes escutei. Por quantos séculos ela foi recitada, mudada e incompreendida? Pai nosso que estais no céu!
Que céu? Aquele que está além dos portões doirados dos quais eu jamais cruzarei o umbral? Não! Depois daquelas portas está certamente Etérnia, o lugar de onde vêm os sonhos, mas como posso eu ter certeza? Bem, em quase três mil anos de existência eu jamais vi céu ou inferno verdadeiros. Apenas o portal e o rio de gelo.
Livrai-nos do mal. Acreditam mesmo os mortais de que uma placa metálica irá espantar os demônios que correm como a noite? Fé, a capacidade humana de crer no incrível, ri-me dessa ingenuidade. Como são tolos todos aqueles que caminham sob a luz do sol... O mal que eles mais temem estava agora caminhando sobre o delicado chão de madeira da estalagem. A morte se aproximava.
Ao abrir a porta o vento frio antecipava minha presença. O arrepio prosaico diante da mais arcaica das criaturas. Lembro-me de uma história hebraica, contam por lá que eu vim antes mesmo de Yaveh, o Deus. Então percebo a maior piada de todos os tempos: eu também sou uma lenda!
E agora o mito sobe as escadas pé ante pé apenas para realizar mais uma tarefa rotineira. O Velho soluçava e sua vida se esvaia como a areia de uma ampulheta avariada.
Eu como uma louca desvairada dançava na escada me divertindo. Devo confessar, eu amo meu trabalho.
Enfim, escuto as orações funestas. Está na hora, os parentes velam o moribundo. Logo, chorarão pelo morto como sempre foi.
O dono da estalagem era realmente muito idoso. Consigo sentir a dor em seus ossos e a luta dos seus pulmões para manter-lhe a vida.
Abri a porta sorrateira, invisível e fúnebre. O frio na espinha intensificou as orações. Percebi o homem de preto fazendo a extrema unção. Não tento mais entender isso, humanos e seus rituais... Há alguns anos suas orações vinham do sangue.
Sorri ao perceber que ele já conseguia ver-me. Estava perto, as areias da vida estavam quase por acabar-se.
Os olhos já vítreos olhavam em minha direção fixamente. Ele não possuía medo de mim, ao contrario. Eu era aceita pelos braços dele enquanto entrava em sua mente. Eu era possuída pelo membro dele enquanto corrompia seu corpo em busca de sua alma. Logo, ele tinha 20 anos de novo e estava próximo do rio que cruzou para chegar onde está.
Apossei-me das lembranças dele como sempre o faço. Em sua travessia o novo jovem não precisaria delas. Ele estava correndo rumo a uma outra existência. Não seria dessa vez que ele veria os portões dourados da iluminação, mas sim os portões prateados da reencarnação. Quem sabe um outro dia, eu cheguei a pensar.
Beijei-me a testa e seus lábios. O mais antigo dos rituais. Eu sou Tânia, eu sou a morte e o meu beijo o levou para a floresta das árvores que jamais serão tocadas.
Uma mulher chora copiosamente. Papai, papai, ela diz. Sinto vontade de afagar seus cabelos e dizer que agora ele é um jovem correndo pelas veredas rumo a uma nova juventude.
Queria dizer-lhe que ele está no lugar de onde partem os sonhos, mas não posso. Ela entenderá um dia e, se não entender enquanto ainda estiver viva. Ainda assim entenderá. Quando eu a for buscar um dia.
Senti a noite envolver-me e desci enquanto partia da estalagem. Lá eu não era mais aceita, eu nunca sou aceita de bom grado. A não ser por meus amantes. Os mortos são os únicos que me amam.
Os vivos podem jamais me acolher, mas mais cedo ou mais tarde eu os acolherei em meus braços.
Quando à hora chegar.

A Pitoniza




¥ Crônicas dos Deuses ¥
Parte II 
A pitonisa


Não, não é o fim do mundo. Não é mais uma daquelas predições escatológicas. É apenas o fim daqueles que merecem deixar de existir pelo que fizeram. E a sensação ruim é apenas o medo eminente de deixar de existir. Um medo tolo.
Ao caminhar rumo ao shopping era isso o que o rapaz pensava. Não tinha pressa, possuía todo o tempo do mundo. O cheiro da chuva que ainda estava por vir impregnava suas narinas. Henrique estava perto.
Não demorou muito a chegar ao shopping. Ganhara os corredores em busca da cartomante da feira mística. Queria resposta e sabia que apenas aquela mulher daria as respostas certas.
Ao chegar muitas pessoas da fila notaram o rapaz estranhamente vestido. Seu sobretudo negro era ricamente decorado com traços vermelhos que se assimilavam a letras de um idioma a muito esquecido. Seus olhos estavam encobertos por um óculos violáceo, o que causava mais a estranheza das pessoas, afinal, era de noite.
Era baixo, aproximadamente 1,65, mas ainda assim possuía um tom altivo. Seu cabelo liso trepidava junto ao seu traje e isso dava um ar ainda mais mágico ao ser ali parado. Por fim, como se fosse para dizer “eu sou a mágica em pessoa”, um colar de ouro prendia um pingente de uma pedra violeta que brilhava insistente.
A paz serena de sua expressão não mudou em meia hora de espera. Queria respostas e esperaria ali mil anos se fosse preciso, mas não possuía tanto tempo assim. Além disso, não iria precisar esperar muito. Sua vez chegara.
O cheiro de incenso e vela o deixou nostálgico. Isso o fazia lembrar dos tempos antigos e dos templos ancestrais os quais estivera na sua longa vida. Vivera por tanto tempo, mas apesar disso... estava preparado para morrer?
– Sente-se. – A mulher ruiva o indicava o assento ao passo que com suas mãos ligeiras ela embaralhava as cartas de tarô.
Não houve perguntas. O rapaz já conhecia o esquema. Esperaria pelas respostas e, de acordo com elas, escolheria seu caminho.
– Escolha uma metade. – A cartomante quebrou o silêncio ao dividir o baralho ao meio.
Prontamente o rapaz escolheu o direito.
Mãos ligeiras guiavam as cartas ao seu caminho. Uma, duas, três. A imagem do destino estava feita ali em sua frente: O Carro, A Lua, O Mago.
– Você partirá hoje em uma batalha. A partir daí muitos segredos irão se desenrolar até você encontrar seu objetivo. Acima de tudo, você está correndo em uma batalha contra si mesmo.
– E em que lado eu devo entrar?
– Você sabe quem você é. Então deve saber contra quem lutar.
O rapaz levantou-se sorridente. Sempre soubera a resposta, mas agora tinha a certeza advinda de uma consulta ao oráculo. Aquela mulher podia não saber, mas realmente possuía o dom de ver o futuro.
– Eu sei o que você é. – A mulher deteve o rapaz antes que este saísse da tenda.
– Eu sei que sabe. Se não soubesse eu não estaria aqui.
– Um grande deus morrerá, mas eu não posso ver quem é. Se é o caos ou o equilíbrio, apenas vocês dois podem decidir Thalles, apenas vocês dois.
Thalles sorriu. Era o deus do equilíbrio, o primogênito e sabia que àquela hora chegaria algum dia. Não podem existir dois senhores de uma mesma força. Não podem existir dois deuses primogênitos. Havia atrasado o confronto final, mas não podia mais. Dez mil anos se passaram e nem um minuto a mais passaria.
A escolha já estava feita e só havia um caminho a ser seguido.
Rumo à chuva, repetia mentalmente Thalles.
Rumo à chuva.

Os Deuses que hoje somos


¥ Crônicas dos Deuses ¥
Parte I
Os Deuses que hoje somos

O cheiro de chuva impregnava a atmosfera. Constantemente esse é um sinal de coisas amenas chegando, mas não naquele dia. Naquele dia os imortais silenciaram, pois conheciam o que esta chuva em especial significava: Ele acordou, Eles estão chegando.
No Toyota preto, duas criaturas dividiam o banco de trás.  Ambos trajados de negro, não se olhavam. A fêmea loura observava a paisagem com desdém. Por detrás de seus óculos escuros se escondiam um belo par de olhos dourados. Lara, a segunda, era tradicional demais para dirigir a palavra a alguém como Chris.
Se um humano algum dia reconhecer um deus, certamente não teria muito tempo de vida, excetuando se esse imortal for Chris, o terceiro. Com seus longos cabelos castanhos encaracolados, seus traços humanos e seus olhos acinzentados, ele sempre fora um dos imortais que mais fácil se confundiria com os mortais e, talvez por conta disso, sempre foi aquele que mais fácil contaria segredos e lendas de sua raça.
O motorista era um homem de meia idade. Não fazia idéia de para quem realmente dirigia. Magnatas do mundo dos videogames? Não! A origem de toda a vida existente. Desconhecia as lendas e não percebia o perigo que estava por correr. Um dos mais temidos dos deuses despertara de um sono profundo e Ele queria vingança. A vingança de ter sido traído pelos seus próprios irmãos de raça e pelo seu irmão de alma.
Os deuses, com suas hierarquias e poderes, se tratavam pela ordem em que nasceram da Grande Consciência Universal e, por algum motivo os primogênitos nasceram ambos degenerados.
Chris conhecera um dos gêmeos. Exatamente o que permanecera acordado: Thalles. Os primogênitos foram os únicos que nasceram em par. As duas almas mais poderosas do universo. Eternamente fadadas a serem idênticas e inimigas. Mas os dois não apareciam há muito tempo. Antes mesmo de o homem pisar sob o pó que era. Henrique, o adormecido, fora amaldiçoado a dormir eternamente como castigo de seus atos profanos e Thalles, o primogênito, partira em direção a uma vida anônima.
Agora, o adormecido despertara e com Ele as antigas lendas. Era o fim da raça divina. Os oito deuses primordiais iriam ser esmagados pela ganância do maior deles. A vingança de Henrique só poderia ser aplacada por um ser igualmente poderoso: seu próprio irmão, mas o primogênito estava desaparecido a tantos milênios que acha-lo seria tão difícil quanto matar um deus.
Era um tempo de guerra e a chuva predizia isso. Chris sabia no que estava se metendo, fora um general na primeira guerra contra Henrique, mas jamais o vira de fato. Tinha medo, muito medo, pois quando se é um deus, deixar de existir está completamente fora de cogitação. A dor eterna parecia-lhe o castigo mais simples.
O carro parou e os criadores desceram.
Os cabelos de Lara balançavam presos em um rabo de cavalo. Lembravam um relógio há marcar o tempo que restava e restava tão pouco tempo.
– A tempestade está chegando. – O macho quebrou o silêncio brutal entre a dupla.
– É.
A mulher não se deteve a conversar. Queria terminar com aquilo o mais depressa possível. Quanto mais rápido Eles descobrissem uma forma de vencer o adormecido, que agora estava desperto, melhor. Não estava nem um pouco feliz em rever seus irmãos.
A família divina certamente não era nem um pouco unida.
Sentados em suas cadeiras os demais esperavam a dupla que tanto se atrasara. Será que eles não percebiam a iminente ameaça no despertar de Henrique?
O que haveria de acontecer com o mundo depois que um dos primogênitos ousasse destruir os seus seis irmãos presentes na humanidade? Apareceria Thalles finalmente para derrotar o irmão que ele adormecera durante tantos milênios?
– Temos que enfiar uma faca de prata no coração dele! – Exclamou Felices, o sexto.
– Ele não é um vampiro seu idiota! Todos aqui já presenciamos o que Ele é capaz de fazer. Nem mesmo Lara e Chris que são os maiores nessa sala têm poder para destruir um ser como aquele! Apenas Thalles tem! – O quarto já dava sua opinião.
– È, mas não se esqueça que é exatamente por causa de Lara e Chris que o primogênito jamais irá nos ajudar. Ou em sua mente ancestral você já deu ouvido às lendas mortais?
– Silencio! – vociferou Lara.
E o silencio absoluto se fez entre os imortais. A segunda estudou as expressões deles. Existia ali apenas medo e apreensão, mas quem era ela para julgá-los? Ali na sua frente estava à origem de tudo que existia. Os seus irmãos e irmãs de raça. Sentados naquelas cadeiras estavam o mar, os ventos, a terra e tantas outras forças motrizes. Quem era ela, a luz, para decidir o que é certo? Se ela ou Chris morressem, nada haveria de muito grave acontecer, mas eles... o que seria do mundo sem os elementos que o tornam existente?
A tempestade chegava cada vez mais perto trazendo o poder junto com ela. Henrique despertara de seu sono profundo e eterno.
E se a eternidade do sono de Henrique se expirara. Então talvez a vida eterna dos deuses fosse também efêmera. Os deuses estavam prontos para morrer apenas, pois a esperança não pode existir em corações que não batem.
Deuses não devem morrer, deuses não morrem! Gritava Lara em seus pensamentos mais intensos.
Mas a tempestade se aproximava ... E com ela o fim de tudo!