quarta-feira, 7 de março de 2012

Tânia

Tânia


Vagueio por essa imensidão negra a minha frente. A escuridão é minha única morada já que em lugar nenhum serei aceita. Vejo a estalagem a minha frente e decido entrar. Sinto o cheiro de morte, o meu cheiro.
Perdoe os meus modos. Sou Tânia. A Morte. Ao menos sou assim desde que aceitei das mãos de meu antecessor Kaius A Dádiva, o poder de findar as vidas humanas e as encaminhar aos portões dourados do outro caminho.
Nesses meus milênios de existência vi e ouvi muitas coisas. Conheço as origens de todas as lendas, o gênesis de todos os deuses e com o tempo aprendi a não dar mais ouvidos a essas coisas. Conheço inúmeras lendas, mas jamais acreditei em alguma. Sou velha demais para histórias.
Percebo essas lembranças em minha mente ancestral quando meus olhos pousam sob uma placa de bronze. O Pai Nosso gravado gentilmente no metal fazia os religiosos pararem e os ateus cuspirem. Ambos acabavam por repousar na estalagem, Deus... Sempre um ótimo tipo de marketing!
Involuntariamente acabou por ler a oração que tantas vezes escutei. Por quantos séculos ela foi recitada, mudada e incompreendida? Pai nosso que estais no céu!
Que céu? Aquele que está além dos portões doirados dos quais eu jamais cruzarei o umbral? Não! Depois daquelas portas está certamente Etérnia, o lugar de onde vêm os sonhos, mas como posso eu ter certeza? Bem, em quase três mil anos de existência eu jamais vi céu ou inferno verdadeiros. Apenas o portal e o rio de gelo.
Livrai-nos do mal. Acreditam mesmo os mortais de que uma placa metálica irá espantar os demônios que correm como a noite? Fé, a capacidade humana de crer no incrível, ri-me dessa ingenuidade. Como são tolos todos aqueles que caminham sob a luz do sol... O mal que eles mais temem estava agora caminhando sobre o delicado chão de madeira da estalagem. A morte se aproximava.
Ao abrir a porta o vento frio antecipava minha presença. O arrepio prosaico diante da mais arcaica das criaturas. Lembro-me de uma história hebraica, contam por lá que eu vim antes mesmo de Yaveh, o Deus. Então percebo a maior piada de todos os tempos: eu também sou uma lenda!
E agora o mito sobe as escadas pé ante pé apenas para realizar mais uma tarefa rotineira. O Velho soluçava e sua vida se esvaia como a areia de uma ampulheta avariada.
Eu como uma louca desvairada dançava na escada me divertindo. Devo confessar, eu amo meu trabalho.
Enfim, escuto as orações funestas. Está na hora, os parentes velam o moribundo. Logo, chorarão pelo morto como sempre foi.
O dono da estalagem era realmente muito idoso. Consigo sentir a dor em seus ossos e a luta dos seus pulmões para manter-lhe a vida.
Abri a porta sorrateira, invisível e fúnebre. O frio na espinha intensificou as orações. Percebi o homem de preto fazendo a extrema unção. Não tento mais entender isso, humanos e seus rituais... Há alguns anos suas orações vinham do sangue.
Sorri ao perceber que ele já conseguia ver-me. Estava perto, as areias da vida estavam quase por acabar-se.
Os olhos já vítreos olhavam em minha direção fixamente. Ele não possuía medo de mim, ao contrario. Eu era aceita pelos braços dele enquanto entrava em sua mente. Eu era possuída pelo membro dele enquanto corrompia seu corpo em busca de sua alma. Logo, ele tinha 20 anos de novo e estava próximo do rio que cruzou para chegar onde está.
Apossei-me das lembranças dele como sempre o faço. Em sua travessia o novo jovem não precisaria delas. Ele estava correndo rumo a uma outra existência. Não seria dessa vez que ele veria os portões dourados da iluminação, mas sim os portões prateados da reencarnação. Quem sabe um outro dia, eu cheguei a pensar.
Beijei-me a testa e seus lábios. O mais antigo dos rituais. Eu sou Tânia, eu sou a morte e o meu beijo o levou para a floresta das árvores que jamais serão tocadas.
Uma mulher chora copiosamente. Papai, papai, ela diz. Sinto vontade de afagar seus cabelos e dizer que agora ele é um jovem correndo pelas veredas rumo a uma nova juventude.
Queria dizer-lhe que ele está no lugar de onde partem os sonhos, mas não posso. Ela entenderá um dia e, se não entender enquanto ainda estiver viva. Ainda assim entenderá. Quando eu a for buscar um dia.
Senti a noite envolver-me e desci enquanto partia da estalagem. Lá eu não era mais aceita, eu nunca sou aceita de bom grado. A não ser por meus amantes. Os mortos são os únicos que me amam.
Os vivos podem jamais me acolher, mas mais cedo ou mais tarde eu os acolherei em meus braços.
Quando à hora chegar.

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