quarta-feira, 7 de março de 2012

O vôo de um querubim



O vôo de um querubim


“Se na vida estive em terra,
A verdade é que minha morte foi no mar”


Natasha escuta o som vindo do radio. Como poderia pressupor que ouviria alguém fazer músicas sobre ela? Porque não faziam isso quando ela era... Bem... quando ela estava viva?
Sim, ela tinha total conhecimento disso. Estava morta e fadada a reviver o momento eterno de sua queda. Uma alma presa no inferno. Natasha era uma alma presa no inferno da sua própria existência.
Agora, em seu antigo aparelho de som, uma jovem adolescente de 16 anos escuta a música. No vocal, Antônio Shaman conta a história de uma garota que ele conheceu em sua infância. A primeira garota que ele beijou.
Ela partiu irresoluta ao abrir a janela do seu quarto. Ela olhou para o tempo em busca de uma chuva de lágrimas... mas tudo que ela encontrou foram os seus pensamentos e as marcas em seus pulsos, pulsando como Almas...
A criança cantava sem tomar conhecimento de que a garota da música estava parada ao seu lado. Não sabia, mas a garota que morava neste apartamento estava morta. Na verdade, nunca vivera realmente.
A garota agora estava presa no umbral entre os dois mundos. Não pertencia mais a carne, mas tão pouco era espírito. O seu nome nessa existência imaterial era Fantasma.
Ela se despediu sem uma carta de adeus, sem lágrimas... sem nada que pudesse a fazer voltar... sem nada que pudesse a fazer amar ou desistir... de novo.
Não havia marcas da antiga moradora. Ninguém se lembrava de uma mulher que morrera a quase 8 anos e não deixou vestígios de sua presença. Não amou ninguém, não foi amada por ninguém, simplesmente não existiu em toda sua vida terrena.
Agora, a ressequida e pálida Natasha lutava para libertar-se de sua existência. Partir de sua própria vida fora por demais fácil. Não tinha assuntos pendentes, ao certo jamais possuiu assunto algum a resolver em sua vida.
A solidão a invadiu como dor. Sempre esteve só, mas nunca imaginou que pudesse se tornar mais sozinha ainda. Sempre fora invisível ao mundo e agora ninguém a via ou a escutava.
Nem mesmo o diabo a veio buscar. Não havia para ela céu ou inferno, apenas o Limbo. A prisão eterna das almas. A morte não a viera buscar, ela estava sozinha em sua travessia.
Seria essa vida a única vida?
Ao cortar seus pulsos e perceber a beira caos e ao pensar que era seu fim. Se lançou do sétimo andar em seu vôo vertical...
Agora vinha o erro da música.
Ao ser apanhada pelas asas de um querubim. Cheio de magoas... Cheio de cartas... que ela nunca entregou.
Não! Não houve carta de despedida em sua viagem. Não houve sequer um querubim a segurar sua mão antes da queda mortal.
Ao abri suas asas, como Ismalia, seu corpo desceu a terra, mas sua alma permaneceu na janela. Como era belo ver seu corpo em queda livre...
A adolescente por fim desligava o som. Para ela aquela música não passava de uma história qualquer de uma garota que se suicidara. Como alguém podia escolher a morte? Se pudesse escolher... Escolheria viver melhor.
Mas não cabia a ela escolher.
Natasha olhava ainda o cômodo em busca de lembranças de sua vida, mas recordava-se apenas da morte. De resto havia somente o branco, o vazio etéreo de suas lembranças esquecidas.
A fantasma fechou os olhos e rezou. A cada dia mais percebia ser este o inferno e descobria em seus próprios pensamentos que não havia tortura maior do que se arrepender eternamente de um momento que durou 15 segundos.
Voar tinha seu preço e quem cobraria esse preço não seria a morte, ao contrario. Seria uma vida eterna de arrependimento e dor. A vida de um suicida do outro lado. A não-vida daquele que renegou a maior dádiva de Deus.
O sol já despontava no horizonte e o corpo etéreo de Natasha começava a difundir-se com o ambiente. Logo, ela desapareceria, pois não lhe era permitido ver a luz do dia.
Escolhera as trevas eternas e agora tinha de arcar com as conseqüências. Cada vez mais ela percebia a punição prometida por tantas religiões e dava-se conta da única verdade que não lhe haviam dito.
O único castigo real é a culpa.
Antes de morrer ela se achava um nada. Agora, fazia realmente parte do nada. Natasha era uma mera lembrança... um pensamento funesto em sua cabeça morta.
E por isso a culpa a corroia. Antes de sumir mais uma vez.

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