quinta-feira, 8 de março de 2012

Dentro de Jaci



Dentro de Jaci

“Ao sentir a luz eu vi a imensidão
Das trevas dentro de mim,
Quando vi eu já não era um homem,
Eu era alguma outra coisa.”

Observo o amplo painel no altar da igreja. Pessoas passam e rezam olhando para a imagem de nossa senhora ao fundo do altar.
Estou já tão longe de casa. Sinto falta da cidade que jamais para. Sinto saudades de São Paulo, mas por lá eu jamais seria aceito! Seria caçado como um animal, mas não é isso que eu sou, não é?
Saio da Catedral Nossa Senhora da Glória. Hoje é mais uma batalha de uma guerra que nunca termina. Estamos sempre em guerra! Não, eu não odeio os humanos... Uma parte de mim não os odeia, mas eles estão sempre invadindo a mata fechada. Invadindo a natureza. O único lugar onde eu sou aceito como eu sou.
A floresta é o território sagrado capaz de abrigar um ser amaldiçoado como eu. Um lobisomem! E estão todos lá, homens rindo e se gabando. Todos matando inúmeras árvores e deixando animais indefesos para morrer ou fugir, agora serão eles os mortos, mas para os homens não há uma segunda opção. É apenas morrer.
A lua cheia está tão próxima que sinto o lobo dentro de mim uivar. Vejo uma mulher faceira e sinto seu aroma. A desejo, o animal quer soltar-se de sua jaula. Tão próximo à lua, que os índios chamam Jaci, eu me sinto com poderes ainda maiores do que aqueles que possuo no meu normal.
Minha agilidade e força estão ao máximo, às bênçãos por detrás da minha maldição, mas e se talvez se transformar em fera for apenas à maldição escondida na benção? Uma vez eu escutei que a diferença entre maldição e benção é o ângulo em que se olha. Eu sou a prova viva disso.
Ela me deseja. Está presa pelos meus olhos brilhantes. Quero a ter em meus braços, mas a odeio por ser humana!
Não é decerto o ódio e luxuria os sentimentos mais humanos que existem? Sim. E são ainda mais fortes nesse meio-humano. O animal dentro de mim colabora com a parte humana que a deseja. Dou um passo em sua direção.
– Pedro, não. Temos que ir agora! – Logo atrás de mim um irmão fala. Ele tem razão. Viro-me e vejo seus olhos e me vejo neles. Sou bonito com minha pele branca já muito bronzeada por causa de tanto sol e meus olhos verdes escondidos detrás de uma vasta cabeleira acobreada. Sou lindo, sou gostoso, sou um monstro!
Cumprimentei-o e parti com ele. Em algum lugar lá perto do rio estaria a embarcação a nossa espera. Lá eu poderia dormir um pouco e descansar. Esquecer de tudo... adormecer o animal e fingir que sou humano ao sonhar, porque somente os homens sonham...

***
A lua cheia está lá no céu. Ela me espera. Jaci fala comigo como se fosse minha mãe e ela diz: venha! Deixe sua alma humana e liberte o animal, eu a ouço, mas ainda não está na hora.
Meu relógio apita. São 11 horas. Dentro de uma hora chegaremos ao acampamento clandestino de uns madeireiros. Estou cansado. Viajo desde ontem, mas ignoro meus músculos doendo, em breve eles irão parar. Em breve eu deixarei de ser o bom e jovem Pedro e serei um enorme lobo matando pessoas nada inocentes.
Descemos todos do barco. Somos em 10 aproximadamente. O suficiente para causar um estrago e tanto! Estamos a uns dois quilômetros do tal acampamento... Sinto cheiro de tabaco, de bebida, sinto também cheiro de mulheres. Uma festa! Ótimo! Lobisomens sempre amam uma algazarra. Principalmente quando existe matança no meio.
Olho um dos meus companheiros. Ele parece um pouco apreensivo e carrega uma arma junto ao corpo. Tão jovem... Deve ter no máximo uns 15 anos, talvez menos! Tem um visual indígena. Pobre criança... Vitima da pobreza e ignorância dos pais. Jogado na mata tão criança ainda. Por ser lobisomem? Talvez não. Sua irmã humana também foi jogada. Soubemos lá na cidade noticias dela. Dizem que ela se tornou prostituta. Pobre garota, pobre garoto! Espero que ele mate com voracidade para esquecer as magoas!
Assim como eu faço!
Esquecer a idiota da família que me renegou. Humanos ridículos cheios de crenças e superstições... Me chamaram de monstro, mas será que eu sou mesmo algo assim? Só mato porque o sangue me faz esquecer... de meu pai... de minha família... de minha namorada... Deles! De todos eles que me renegaram.
Jaci não! Jaci fala comigo e me chama a ela. Ela me aceita. Ela me ordena. Ela está alta no céu. È meia noite: a hora das bruxas. O uivo parte de dentro de mim e eu sou o uivo. Sou um monstro, um animal voraz e sem noções de culpa. Estamos em guerra com os humanos e com nós mesmos. O ódio alimenta a fornalha que os faz atirar em nós. O ódio é o que nos torna fortes e vigorosos. O ódio e o amor... o amor de Jaci, a lua.
Como uma mulher carnal ela nos deixa viris e prontos para a batalha. Nos faz correr como fazemos agora para encontrar nossos inimigos. Nossa fúria é fugaz, porém marcante. Nossa fúria os irá matar, porque nós não somos simples animais! Somos homens que se tornaram animais! Lobisomens!
O cheiro de tabaco, o cheiro de mulheres... Quero-as! Quero o sangue dos homens e a carne das mulheres! Sinto o cheiro espalhado no vento. O ar que parece querer me barrar, mas eu sou mais forte! Eu sou mais rápido! Eu as quero. As mulheres...
Enormes vultos negros cortavam a floresta. Somos nós! Falta tão pouco para se chegar à clareira. Malditos! Cortaram as árvores... Destruíram parte do nosso lar...
Vocês humanos nos atiraram para fora de sua sociedade. Nos matariam se soubessem que existimos. E ainda tem coragem de destruir o único lar que nos aceitou?
Chegamos. Existiam poucas cabanas. Invadi uma em que o cheiro da mulher me chamava mais a atenção. Um irmão ao meu lado está com uma arma na boca, é o jovem. Garoto estranho!
E lá estava. A prostituta de longos cabelos pretos e lisos e os homens babando ante sua presença.
Pulei primordialmente sobre eles. Queriam desfrutar da deliciosa fruta daquela mulher, mas agora morrem aos gritos! Deles e delas.
O jovem talvez a mate primeiro que eu. Não importa! Me contento com o sangue humano em minha boca. Isso me alimenta... mais do que o ódio, mais do que a luxuria. Isso é a fonte de minha vida. O elixir do esquecimento...
Ouço um tiro. Esses humanos nunca aprendem? Não foi em mim, talvez a garota tenha tomado à arma do jovem. Ele é tão inexperiente! Bem, já terminei com os homens. Então me viro.
O jovem idiota está caído ao chão e a garota... Ah! A deliciosa garota está lá com a arma apontada para mim. Queria poder dizer “Balas não me atingem garota, é inútil”, mas apenas um uivo escapou de minha enorme boca.
Via a minha imagem nos olhos dela.  Sou enorme, perigoso com meu caminhar trôpego, porém mortífero. Ela sente medo e eu me alimento do medo dela. Ela se parece tanto com o jovem...
Aproximei-me dela. Agora já mais curioso, mas o medo humano não entende sinais corpóreos. Senti o projétil atravessar meu crânio... Seria uma dor irrisória, contudo, a bala era de prata.
Maldito seja traidor da raça! A prostituta ali era sua irmã e agora ela tinha balas suficientes para matar alguns de nós. Malditos sentimentos humanos! Mas eu não conseguia pensar nisso... Estava com sono...
Estava saciado de sangue então não doía mais lembrar de meus parentes e eu não sentia vontade de pensar em mais nada, mas morrer em paz?
Não!
Estamos em guerra. Estamos sempre em guerra.
Numa eterna batalha contra nós mesmos!

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