“Ao sentir a luz eu vi a imensidão
Das trevas dentro de mim,
Quando vi eu já não era um homem,
Eu era alguma outra coisa.”
Observo o amplo painel no altar da igreja. Pessoas passam e rezam olhando para a imagem de nossa senhora ao fundo do altar.
Estou
já tão longe de casa. Sinto falta da cidade que jamais para. Sinto
saudades de São Paulo, mas por lá eu jamais seria aceito! Seria caçado
como um animal, mas não é isso que eu sou, não é?
Saio
da Catedral Nossa Senhora da Glória. Hoje é mais uma batalha de uma
guerra que nunca termina. Estamos sempre em guerra! Não, eu não odeio os
humanos... Uma parte de mim não os odeia, mas eles estão sempre
invadindo a mata fechada. Invadindo a natureza. O único lugar onde eu
sou aceito como eu sou.
A
floresta é o território sagrado capaz de abrigar um ser amaldiçoado
como eu. Um lobisomem! E estão todos lá, homens rindo e se gabando.
Todos matando inúmeras árvores e deixando animais indefesos para morrer
ou fugir, agora serão eles os mortos, mas para os homens não há uma
segunda opção. É apenas morrer.
A
lua cheia está tão próxima que sinto o lobo dentro de mim uivar. Vejo
uma mulher faceira e sinto seu aroma. A desejo, o animal quer soltar-se
de sua jaula. Tão próximo à lua, que os índios chamam Jaci, eu me sinto
com poderes ainda maiores do que aqueles que possuo no meu normal.
Minha
agilidade e força estão ao máximo, às bênçãos por detrás da minha
maldição, mas e se talvez se transformar em fera for apenas à maldição
escondida na benção? Uma vez eu escutei que a diferença entre maldição e
benção é o ângulo em que se olha. Eu sou a prova viva disso.
Ela me deseja. Está presa pelos meus olhos brilhantes. Quero a ter em meus braços, mas a odeio por ser humana!
Não
é decerto o ódio e luxuria os sentimentos mais humanos que existem?
Sim. E são ainda mais fortes nesse meio-humano. O animal dentro de mim
colabora com a parte humana que a deseja. Dou um passo em sua direção.
–
Pedro, não. Temos que ir agora! – Logo atrás de mim um irmão fala. Ele
tem razão. Viro-me e vejo seus olhos e me vejo neles. Sou bonito com
minha pele branca já muito bronzeada por causa de tanto sol e meus olhos
verdes escondidos detrás de uma vasta cabeleira acobreada. Sou lindo,
sou gostoso, sou um monstro!
Cumprimentei-o
e parti com ele. Em algum lugar lá perto do rio estaria a embarcação a
nossa espera. Lá eu poderia dormir um pouco e descansar. Esquecer de
tudo... adormecer o animal e fingir que sou humano ao sonhar, porque
somente os homens sonham...
***
A
lua cheia está lá no céu. Ela me espera. Jaci fala comigo como se fosse
minha mãe e ela diz: venha! Deixe sua alma humana e liberte o animal,
eu a ouço, mas ainda não está na hora.
Meu
relógio apita. São 11 horas. Dentro de uma hora chegaremos ao
acampamento clandestino de uns madeireiros. Estou cansado. Viajo desde
ontem, mas ignoro meus músculos doendo, em breve eles irão parar. Em
breve eu deixarei de ser o bom e jovem Pedro e serei um enorme lobo
matando pessoas nada inocentes.
Descemos
todos do barco. Somos em 10 aproximadamente. O suficiente para causar
um estrago e tanto! Estamos a uns dois quilômetros do tal acampamento...
Sinto cheiro de tabaco, de bebida, sinto também cheiro de mulheres. Uma
festa! Ótimo! Lobisomens sempre amam uma algazarra. Principalmente
quando existe matança no meio.
Olho
um dos meus companheiros. Ele parece um pouco apreensivo e carrega uma
arma junto ao corpo. Tão jovem... Deve ter no máximo uns 15 anos, talvez
menos! Tem um visual indígena. Pobre criança... Vitima da pobreza e
ignorância dos pais. Jogado na mata tão criança ainda. Por ser
lobisomem? Talvez não. Sua irmã humana também foi jogada. Soubemos lá na
cidade noticias dela. Dizem que ela se tornou prostituta. Pobre garota,
pobre garoto! Espero que ele mate com voracidade para esquecer as
magoas!
Assim como eu faço!
Esquecer
a idiota da família que me renegou. Humanos ridículos cheios de crenças
e superstições... Me chamaram de monstro, mas será que eu sou mesmo
algo assim? Só mato porque o sangue me faz esquecer... de meu pai... de
minha família... de minha namorada... Deles! De todos eles que me
renegaram.
Jaci
não! Jaci fala comigo e me chama a ela. Ela me aceita. Ela me ordena.
Ela está alta no céu. È meia noite: a hora das bruxas. O uivo parte de
dentro de mim e eu sou o uivo. Sou um monstro, um animal voraz e sem
noções de culpa. Estamos em guerra com os humanos e com nós mesmos. O
ódio alimenta a fornalha que os faz atirar em nós. O ódio é o que nos
torna fortes e vigorosos. O ódio e o amor... o amor de Jaci, a lua.
Como
uma mulher carnal ela nos deixa viris e prontos para a batalha. Nos faz
correr como fazemos agora para encontrar nossos inimigos. Nossa fúria é
fugaz, porém marcante. Nossa fúria os irá matar, porque nós não somos
simples animais! Somos homens que se tornaram animais! Lobisomens!
O
cheiro de tabaco, o cheiro de mulheres... Quero-as! Quero o sangue dos
homens e a carne das mulheres! Sinto o cheiro espalhado no vento. O ar
que parece querer me barrar, mas eu sou mais forte! Eu sou mais rápido!
Eu as quero. As mulheres...
Enormes
vultos negros cortavam a floresta. Somos nós! Falta tão pouco para se
chegar à clareira. Malditos! Cortaram as árvores... Destruíram parte do
nosso lar...
Vocês
humanos nos atiraram para fora de sua sociedade. Nos matariam se
soubessem que existimos. E ainda tem coragem de destruir o único lar que
nos aceitou?
Chegamos.
Existiam poucas cabanas. Invadi uma em que o cheiro da mulher me
chamava mais a atenção. Um irmão ao meu lado está com uma arma na boca, é
o jovem. Garoto estranho!
E lá estava. A prostituta de longos cabelos pretos e lisos e os homens babando ante sua presença.
Pulei
primordialmente sobre eles. Queriam desfrutar da deliciosa fruta
daquela mulher, mas agora morrem aos gritos! Deles e delas.
O
jovem talvez a mate primeiro que eu. Não importa! Me contento com o
sangue humano em minha boca. Isso me alimenta... mais do que o ódio,
mais do que a luxuria. Isso é a fonte de minha vida. O elixir do
esquecimento...
Ouço
um tiro. Esses humanos nunca aprendem? Não foi em mim, talvez a garota
tenha tomado à arma do jovem. Ele é tão inexperiente! Bem, já terminei
com os homens. Então me viro.
O
jovem idiota está caído ao chão e a garota... Ah! A deliciosa garota
está lá com a arma apontada para mim. Queria poder dizer “Balas não me
atingem garota, é inútil”, mas apenas um uivo escapou de minha enorme
boca.
Via a minha imagem nos olhos dela. Sou
enorme, perigoso com meu caminhar trôpego, porém mortífero. Ela sente
medo e eu me alimento do medo dela. Ela se parece tanto com o jovem...
Aproximei-me
dela. Agora já mais curioso, mas o medo humano não entende sinais
corpóreos. Senti o projétil atravessar meu crânio... Seria uma dor
irrisória, contudo, a bala era de prata.
Maldito
seja traidor da raça! A prostituta ali era sua irmã e agora ela tinha
balas suficientes para matar alguns de nós. Malditos sentimentos
humanos! Mas eu não conseguia pensar nisso... Estava com sono...
Estava
saciado de sangue então não doía mais lembrar de meus parentes e eu não
sentia vontade de pensar em mais nada, mas morrer em paz?
Não!
Estamos em guerra. Estamos sempre em guerra.
Numa eterna batalha contra nós mesmos!
Nenhum comentário:
Postar um comentário