terça-feira, 15 de maio de 2012

A passagem


 A passagem
 


O cheiro de velas e incenso invadia suas narinas. De onde vinha? Talvez da sua cabeça, ele estava meio fora de si nos últimos dias.
Davi olhou em volta, onde estava? Aquela não era a sua São Paulo! Ao contrario! Parecia mais uma cidade européia, daquelas que sempre sonhou visitar, mas nunca teve coragem ou dinheiro para tanto.
Não havia ninguém na rua. Não havia luzes nas casas. E se alguém fosse parar para ver tudo que estava faltando veria que na verdade não havia nada ali a não ser o caminho de pedra e os pés do garoto.
Jovem, alto e esguio. Davi era do tipo que arrancaria suspiros de todas as mulheres da região, um belo rapaz de dezessete anos de pele bronze e olhos verdes.
O caminho de pedra parecia nunca ter fim, porém por mais que andasse Davi ainda não se sentia cansado. Não demorou muito ele chegou à Ponte.
Duas lamparinas antigas demarcavam o local, mas a despeito do homem sentado que haveria de ser o acendedor, as duas estavam apagadas.
– Oh. Jovem Davi, você veio. Demoraste, pensamos que nunca chegaria a tempo. – O velho trôpego andava curvado e parecia bastante debilitado.
– Você me esperava aqui?
– Ah! Não só eu meu jovem, não só eu. Vamos, venha. Você precisa atravessar a ponte.
– Por quê?!
– O caminho de pedra, vê?! Precisa acompanhar o caminho. Agora vá, vamos homem, não tenha medo.
O velho fez menção que o obrigaria a atravessar a ponte, mas nada vez. O rapaz ainda mostrava-se indeciso e se aquele fosse mais um velho louco e bêbado que deveria acender o poste de luz, mas estava esclerosado demais para fazê-lo?
A madrugada corria em passos rápidos, não se podia ficar ali a noite toda. Davi então decidiu atravessar a ponte e continuar o caminho. O seu caminho.
– Espere, tome. O caminho é escuro, tome essa pequena lamparina.
O velho poderia ser louco, mas tinha carisma! E uma lâmpada que o ajudaria a iluminar o caminho.
As pedras pareciam nunca ter fim, mas era quase impossível ter certeza. Uma floresta se seguia dos dois lados da estrada. Uma floresta de arvores mortas.
Som de rodas, cavalos e gritos. Uma carruagem, sim. Uma carroça. De onde vinha? Ah! Estava atravessando a ponte.
– Quer uma carona?
Não, aquilo era surreal demais. Só poderia ser um sonho. Tudo ali era tão bucólico e tão antigo que não podia coexistir com o caos que era São Paulo.
– Quer uma carona? – Repetiu um velho com um chapéu.
– Quero sim, está indo pra onde?
– Para onde você vai garoto, para onde você vai. Ande suba. Jogue uma pedra fora e suba na carroça.
Davi fez o que o velho o mandara.
– Porque tu guarda tanta pedra, coroa?
– É uma longa história meu jovem e eu tenho certeza que você não está disposto a ouvir as histórias de uma pessoa tão velha quanto eu.
– Que é isso coroa, o senhor não ta tão velho assim não. Ta até enxutão.
– Hehehe. Obrigado, obrigado, mas eu sou velho sim, muitooo velho. Te peço que se segure. O caminho é longo, às vezes longo demais.
O garoto então se sentou e olhou em sua volta. A luz do candeeiro iluminava sua frente, mas ele estava virado para o caminho que percorreu. Então como o velho conseguia enxergar o que ainda estava a ser trilhado?
– Você meu jovem passou a vida inteira olhando o passado. Isso é ruim sabe...
Davi queria dizer que não, mas o velho estava certo.
A carroça parou bruscamente, mas só ao se virar o rapaz percebeu o motivo. Havia um enorme portão de pedra no meio do caminho e depois dele a estrada seguia-se até chegar a uma clareira.
– Aqui é até onde eu posso ir.
– Obrigado.
– Não agradeça moço, tu diminuiu uma pedra no meu fardo.
– Éh, mas o senhor tem tantas.
– Eu sei, eu sei, mas tu foi forte. Pegou logo uma das grandes. Garoto esperto, garoto esperto. Por conta disso eu vou te dar uma dica: quando chegar a clareira haverá dois portões. Escolha o prateado.
– Ta bom.
Davi continuou sua jornada. Queria agora descobrir que tais portões eram esses. Passou pelo de pedra e chegou à clareira. Não, não havia portões. Na verdade o lugar era fechado por uma mata morta, mas densa. O rapaz resolveu voltar, talvez ainda alcançasse o velho.
Ora, mas qual foi sua surpresa ao ver que estava numa clareira hermeticamente fechada? Não havia caminho de volta, na verdade o lugar era um circulo perfeito rodeado por árvores. Não tinha entrada ou saída.
– Não tenha medo, aqui é o fim do caminho. – Uma voz feminina falava às suas costas. Estranho... Podia jurar que não vira ninguém na clareira.
– Quem é você?!
– Eu tenho muitos nomes, mas não é o momento para você saber algum deles. Ainda é cedo. – A mulher era jovial, mas apesar de parecer não ter vivido mais do que 20 anos, seu rosto exibia um ar maduro.
– Onde eu estou?
– Você não consegue se lembrar?
– Não, eu conheço esse lugar.
– Hehehe. Não isso seu bobinho. A estação...
– A estação... O trem! Droga, eu perdi o trem!
– Tsc.tsc.tsc. – a mulher estralava língua em sinal de desaprovação. – Perdeu? Então onde está seu bilhete?
– No bolso. – Davi checou os bolsos. Sim, estava lá. A passagem de trem, mas havia um buraco nela... Isso significava que... Ele pegou o trem! – Aqui não é a Vila Matilde, em que estação eu desci?
– O carro...
Carro, que carro? Se ele tivesse um carro não teria pegado o trem. Espere! Havia um carro, sim havia! Um carro indo na direção do trem...
– Havia um carro.
– Que bom, está se lembrando. O que houve com o carro.
– Ele chegou perto e mais perto... Meu deus! Ele bateu no trem que eu estava!
– Bom, bom. O que mais você se lembra?
– Nada mais. Eu vi uma luz. Eu vi fios... O trem descarrilou! Aquelas pessoas... Vidro, tantas pessoas mortas. Espere eu vi... – Davi agora se lembrava com clareza de um rosto, sim, se lembrava!
– Você me viu.
– Isso!
– Como sobrevivemos ao acidente?
– Você não sobreviveu.
– Eu... O que?!
– Você está morto Davi. Na verdade... Você já chegou ao fim da sua viagem. Eu esperava que você se desse conta disso antes.
– Aqueles senhores...
– Eles são duas pessoas que não podem chegar até aqui. Eles têm missões a cumprir, assim como você tem Davi, está na hora de escolher.
– Escolher o que?
– A porta.
– Que porta?
– Olhe atrás de você.
Havia sim portões. Três ao todo. Um de ferro, um de prata e um de ouro. Não havia como ver o que havia do outro lado deles.
– Escolha.
Davi ponderou alguns segundos. Deveria confiar no velho da carroça? E se isso tudo fosse uma armadilha para sua alma ficar perdida em algum lugar? E se ele não estivesse morto?
– Escolha.
– Eu quero o de prata.
O portão abriu-se como que por mágica.
– As pessoas sempre escolhem o portão que o carroceiro indica. Ainda bem que ele sempre indica o portão certo para cada pessoa. Vá, ande.
Davi então cruzou os portões.
Os portões prateados da reencarnação.

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