Leone
Preso neste mundo
sozinho em seu fardo,
Um garoto morto caminha
na escuridão
Em vão buscando as
luzes do Outro Lado.
Todos os músculos doíam, a febre
chegara a um ponto em que a frágil medicina do século XIX não podia reverter. A
náusea e a dor eram insuportáveis, os olhos azuis, agora de cor mais acentuada
devido ao amarelar da pele, estavam prestes a se fechar.
Eram tantas perguntas, mas não
havia mais tanta força para fazê-las, a voz fraquejava à medida que a morte se
agarrava a Leone Brache. Ela o desejava e o levaria para si.
– Mãe? – O delírio já tomava
conta da sua mente e não havia certeza em sua voz quando falou com a figura
enevoada a sua frente. – O que há depois que a gente morre?
– O céu, Deus e os anjos meu
filho. A paz eterna.
Leone sorriu e fechou seus olhos
para o mundo, a espera de Deus e dos anjos, mas eles não vieram.
A paz eterna nunca chegou.
***
Lara tinha treze anos quando seus
olhos se abriram para o mundo. Primeiro havia apenas o cinza e algumas figuras
distorcidas, depois ao passar dos dias, seus olhos outrora cegos, começaram a
distinguir as cores e pessoas.
Por esse motivo, sua família
decidira passar um tempo em
Santa Sara dos Milagres, em uma fazenda localizada depois da
cidade histórica.
A casa grande estava velha e
empoeirada. Não era muito grande, mas era tudo que a família Oliveira precisava
e podia pagar.
– A casa é do século XIX, o cara
da imobiliária disse que aqui foi uma lavoura de café nessa época, mas a
família entrou em falência e perdeu a propriedade. Fizeram nos últimos anos uma
série de reformas, então vamos ter água encanada e TV a cabo a vontade.
– Eu preferia estar em São Paulo. Lá é tão melhor e eu
quero muito ir a uma festa, ver as cores, o balanço...
– E você vai, mas só quando
melhorar. Ainda é muito cedo, Lara.
– Mas pai...
– Mas nada, vá ajudar sua mãe com
as malas.
O vento entrava pela janela
fazendo ranger as madeiras e vigas. Aos ouvidos da garota mais pareciam ecos do
além, fantasmas que gritavam em busca de ajuda ou algo mais, mas era apenas
besteira de criança, coisas assim não deveriam existir.
Apesar de reticente, a garota não
podia conter o esplendor de ver imagens. Depois de tanto tempo no escuro, tudo
parecia novo e fabuloso, mas estranho. Até aquela velha casa e a brisa fria que
entrava pela janela.
– Quem... – A voz de um garoto se
perdia na brisa de uma forma a tornar a frase ininteligível.
– MÃE!!!!! – Lara não teve outra
idéia senão correr para o mais longe possível daquela voz.
Não havia ninguém em casa. Todos haviam se
aproveitado do sono da menina para conhecer a noite na cidade histórica.
Barzinho e musica até tarde.
– Quem és tu? – A voz, já mais
clara, não causou tanto medo. Era um garoto, muito parecido com os anjos das
histórias que sua mãe contava.
Olhos azuis, cabelos loiros e
lisos penteados para trás, roupas meio antigas e diminutos pés descalços. A
imagem de um anjo brilhante.
– Eu sou Lara, você é um anjo?
– Não, pensei que tu fosses.
– Você fala tão estranho... – A
garota não pode conter o ímpeto de tocar o rosto do garoto, afinal ela passara
treze anos de sua vida usando suas mãos para ver. – e é tão frio...
– Eu não sinto você... – A voz do
garoto se perdia junto com sua imagem, a tristeza o fazia desaparecer.
Um pranto feminino, a mãe da
garota estava de volta sozinha, e isso significava voltar para cama antes de
seu pai chegar bêbado e violento.
Mas ele não voltou mesmo depois
de amanhecer.
***
A noite caia e Margareth lia no
quarto transformado em
biblioteca. A lareira tornava a fria noite mais cômoda, porém
o crepitar do fogo escondia dela as sombras que espreitavam pela sua casa.
A Morte retornava para visitar o
garoto cuja vida ela ceifara há dois séculos. Ajudar os mortos era sempre um
prazer para Ela. Principalmente quando isso significava fazer seu trabalho.
– Você não acha que está na hora
de dar o remédio do sua filha? – Docemente o anjo inseriu a idéia na mente da insone
mãe.
***
– Eu tenho que tomar meu remédio!
– Lara interrompeu o garoto que novamente apareceu em seu quarto. Pegou o
comprimido para dor e o tomou rapidamente, sua mãe andava meio estranha desde
que voltara na noite anterior.
– Um botão! Que remédio estranho
é esse, acaso é magia?
– Não seu bobo, é um comprimido.
Mamãe diz que eu tenho que tomar todo dia, mas ela não veio deixar esses dias.
Ela parece tão deprimida desde ontem...
– Não te preocupas. Minha mãe
também está meio deprimida desde que fiquei doente.
– Você está doente?
– Sim, mamãe chora toda noite,
mas já faz tempo que não a escuto. Acho que ela deve estar dormindo agora...
Não consigo saber qual foi à última vez que a ouvi chorar.
– Estranho. Meu pai disse que
todos haviam abandonado a casa há muito tempo.
– Besteira. Minha mãe jamais
abandonaria essa casa. Aqui é a vida dela.
– É. Estranho, mas mudando de
assunto. – Lara agora parecia mais animada. – Você já beijou?
– Claro que não! Isso é pecado.
Não ofenderia a uma dama.
– De que tempo você é? Do século
passado?
– Não! Estou no ano do Senhor de
1865, assim como a senhorita.
– Que?! Estamos em 2008!
– Então... Então eu acho que
morri. – A tristeza tomou novamente a alma do garoto e o fez ficar cada vez
mais transparente.
Lara entrou em choque com o que
ouviu, mas já era tarde. Ela já estava começando a gostar do garoto.
– Morto ou não. Você é meu anjo.
– O garoto pouco a pouco foi voltando a ficar visível, ser chamado de anjo o
deixava feliz.
– Você já beijou?
– Também não. Eu gostaria de
beijar um anjo. – Antes que Leone pudesse dizer qualquer coisa, Lara impetuosa
o beijou. A pele dele era tão fria, mas ainda assim tão gostosa de ser sentida
contra a sua.
– O que você...?
– Minha mãe!
Os passos de Margareth subindo as
escadas eram ouvidos pelo clac nervoso de seus tamancos no chão de madeira. Sua
mente estava ainda mais nervosa e barulhenta. Separação... Separação... Era
isso que ela repetia pra si mesma. Seu casamento acabara.
Nervosa e querendo esconder da
filha seus sentimentos ela não a olhou nos olhos. Apenas tirou o remédio da
gaveta e dirigiu a pílula à menina.
– Mas mãe eu...
– Toma logo isso Lara! Deixa de
dengo. – A garota não teve outra escolha senão tomar uma segunda dose do
remédio. Uma dose fatal.
Não demorou muito até a respiração
falhar, mas sua mãe já não estava por perto para socorrê-la. Ela se sentia
fraca e cansada, estava morrendo. Via isso nos olhos de Leone.
– Eu estou morrendo...
– Eu sei... – Disse um choroso
fantasma.
– O que há depois da morte.
– Eu, teu anjo, Leone! –
Disse-lhe por fim ao ouvido.
Por um minuto a vista enervou-se
e ela caiu na escuridão profunda do morrer, mas no outro momento seus olhos se
abriram e ela percebeu estar viva ou quase.
– Bem vinda!
Antes que Lara pudesse responder
alguma coisa ao agora sorridente garoto, uma mulher trajada de negro adentrou
fantasmagoricamente pelo quarto, seu nome era Morte.
– Hora de ir. Sei que estou
atrasada para levá-lo Leone, mas peço que me perdoe. Você ainda não estava
pronto. Agora com os dois juntos, ambos podem fazer a travessia e conhecer o
mundo novo que os espera.
– Mas e minha mãe?
– Era virá em breve Lara, não tarda e
ela já estará te buscando. – O quão breve seria, Morte resolveu não dizer. –
Passando pela porta, vocês irão encontrar o Outro Lado.
Era uma atração irresistível. A
voz daquela mulher os empurrava para a porta, mas ainda havia uma pergunta na
mente de Leone, uma velha indagação de sua mente.
– Espere! O que tem do Outro
Lado?
A Mulher sorriu como se esperasse
essa pergunta.
– O que você quiser, Leone.
– A paz eterna?
– A Paz Eterna, então.