sexta-feira, 18 de maio de 2012

Pelúcia?

Pelúcia?


– Papai! Papai. Tem um monstro debaixo da minha cama!
Crianças! Sempre assustadas com monstros imaginários. Ria-se o pai.
– Viu Penélope! Não tem nada aqui em baixo, só um cachorrinho de pelúcia.
– Papai!
– Que foi filha? eu to com sono. Deixa eu pegar teu cachorro – Breno, o pai, estava cansado, tinha que acordar cedo, por isso não prestava muita atenção ao que a filha falava.
– Papai!
– Agora, não Penélope. Puxa, esse cachorro caiu longe hein?! – Breno abaixou-se mais para pegar o fatídico brinquedo. – Como você veio parar ai? – Falava com o boneco, quando o conseguiu agarrar, já com o corpo quase inteiro debaixo da cama.
– Papai!!!
– O que foi Penélope?
– Eu não tenho nenhum cachorrinho de pelúcia.
Mas já era tarde de mais para avisar...


quinta-feira, 17 de maio de 2012

Leone

Leone

Preso neste mundo sozinho em seu fardo,
Um garoto morto caminha na escuridão
Em vão buscando as luzes do Outro Lado.

Todos os músculos doíam, a febre chegara a um ponto em que a frágil medicina do século XIX não podia reverter. A náusea e a dor eram insuportáveis, os olhos azuis, agora de cor mais acentuada devido ao amarelar da pele, estavam prestes a se fechar.
Eram tantas perguntas, mas não havia mais tanta força para fazê-las, a voz fraquejava à medida que a morte se agarrava a Leone Brache. Ela o desejava e o levaria para si.
– Mãe? – O delírio já tomava conta da sua mente e não havia certeza em sua voz quando falou com a figura enevoada a sua frente. – O que há depois que a gente morre?
– O céu, Deus e os anjos meu filho. A paz eterna.
Leone sorriu e fechou seus olhos para o mundo, a espera de Deus e dos anjos, mas eles não vieram.
A paz eterna nunca chegou.
***
Lara tinha treze anos quando seus olhos se abriram para o mundo. Primeiro havia apenas o cinza e algumas figuras distorcidas, depois ao passar dos dias, seus olhos outrora cegos, começaram a distinguir as cores e pessoas.
Por esse motivo, sua família decidira passar um tempo em Santa Sara dos Milagres, em uma fazenda localizada depois da cidade histórica.
A casa grande estava velha e empoeirada. Não era muito grande, mas era tudo que a família Oliveira precisava e podia pagar.
– A casa é do século XIX, o cara da imobiliária disse que aqui foi uma lavoura de café nessa época, mas a família entrou em falência e perdeu a propriedade. Fizeram nos últimos anos uma série de reformas, então vamos ter água encanada e TV a cabo a vontade.
– Eu preferia estar em São Paulo. Lá é tão melhor e eu quero muito ir a uma festa, ver as cores, o balanço...
– E você vai, mas só quando melhorar. Ainda é muito cedo, Lara.
– Mas pai...
– Mas nada, vá ajudar sua mãe com as malas.
O vento entrava pela janela fazendo ranger as madeiras e vigas. Aos ouvidos da garota mais pareciam ecos do além, fantasmas que gritavam em busca de ajuda ou algo mais, mas era apenas besteira de criança, coisas assim não deveriam existir.
Apesar de reticente, a garota não podia conter o esplendor de ver imagens. Depois de tanto tempo no escuro, tudo parecia novo e fabuloso, mas estranho. Até aquela velha casa e a brisa fria que entrava pela janela.
– Quem... – A voz de um garoto se perdia na brisa de uma forma a tornar a frase ininteligível.
– MÃE!!!!! – Lara não teve outra idéia senão correr para o mais longe possível daquela voz.
Não havia ninguém em casa. Todos haviam se aproveitado do sono da menina para conhecer a noite na cidade histórica. Barzinho e musica até tarde.
– Quem és tu? – A voz, já mais clara, não causou tanto medo. Era um garoto, muito parecido com os anjos das histórias que sua mãe contava.
Olhos azuis, cabelos loiros e lisos penteados para trás, roupas meio antigas e diminutos pés descalços. A imagem de um anjo brilhante.
– Eu sou Lara, você é um anjo?
– Não, pensei que tu fosses.
– Você fala tão estranho... – A garota não pode conter o ímpeto de tocar o rosto do garoto, afinal ela passara treze anos de sua vida usando suas mãos para ver. – e é tão frio...
– Eu não sinto você... – A voz do garoto se perdia junto com sua imagem, a tristeza o fazia desaparecer.
Um pranto feminino, a mãe da garota estava de volta sozinha, e isso significava voltar para cama antes de seu pai chegar bêbado e violento.
Mas ele não voltou mesmo depois de amanhecer.

***
A noite caia e Margareth lia no quarto transformado em biblioteca. A lareira tornava a fria noite mais cômoda, porém o crepitar do fogo escondia dela as sombras que espreitavam pela sua casa.
A Morte retornava para visitar o garoto cuja vida ela ceifara há dois séculos. Ajudar os mortos era sempre um prazer para Ela. Principalmente quando isso significava fazer seu trabalho.
– Você não acha que está na hora de dar o remédio do sua filha? – Docemente o anjo inseriu a idéia na mente da insone mãe.

***
– Eu tenho que tomar meu remédio! – Lara interrompeu o garoto que novamente apareceu em seu quarto. Pegou o comprimido para dor e o tomou rapidamente, sua mãe andava meio estranha desde que voltara na noite anterior.
– Um botão! Que remédio estranho é esse, acaso é magia?
– Não seu bobo, é um comprimido. Mamãe diz que eu tenho que tomar todo dia, mas ela não veio deixar esses dias. Ela parece tão deprimida desde ontem...
– Não te preocupas. Minha mãe também está meio deprimida desde que fiquei doente.
– Você está doente?
– Sim, mamãe chora toda noite, mas já faz tempo que não a escuto. Acho que ela deve estar dormindo agora... Não consigo saber qual foi à última vez que a ouvi chorar.
– Estranho. Meu pai disse que todos haviam abandonado a casa há muito tempo.
– Besteira. Minha mãe jamais abandonaria essa casa. Aqui é a vida dela.
– É. Estranho, mas mudando de assunto. – Lara agora parecia mais animada. – Você já beijou?
– Claro que não! Isso é pecado. Não ofenderia a uma dama.
– De que tempo você é? Do século passado?
– Não! Estou no ano do Senhor de 1865, assim como a senhorita.
– Que?! Estamos em 2008!
– Então... Então eu acho que morri. – A tristeza tomou novamente a alma do garoto e o fez ficar cada vez mais transparente.
Lara entrou em choque com o que ouviu, mas já era tarde. Ela já estava começando a gostar do garoto.
– Morto ou não. Você é meu anjo. – O garoto pouco a pouco foi voltando a ficar visível, ser chamado de anjo o deixava feliz.
– Você já beijou?
– Também não. Eu gostaria de beijar um anjo. – Antes que Leone pudesse dizer qualquer coisa, Lara impetuosa o beijou. A pele dele era tão fria, mas ainda assim tão gostosa de ser sentida contra a sua.
– O que você...?
– Minha mãe!
Os passos de Margareth subindo as escadas eram ouvidos pelo clac nervoso de seus tamancos no chão de madeira. Sua mente estava ainda mais nervosa e barulhenta. Separação... Separação... Era isso que ela repetia pra si mesma. Seu casamento acabara.
Nervosa e querendo esconder da filha seus sentimentos ela não a olhou nos olhos. Apenas tirou o remédio da gaveta e dirigiu a pílula à menina.
– Mas mãe eu...
– Toma logo isso Lara! Deixa de dengo. – A garota não teve outra escolha senão tomar uma segunda dose do remédio. Uma dose fatal.
Não demorou muito até a respiração falhar, mas sua mãe já não estava por perto para socorrê-la. Ela se sentia fraca e cansada, estava morrendo. Via isso nos olhos de Leone.
– Eu estou morrendo...
– Eu sei... – Disse um choroso fantasma.
– O que há depois da morte.
– Eu, teu anjo, Leone! – Disse-lhe por fim ao ouvido.
Por um minuto a vista enervou-se e ela caiu na escuridão profunda do morrer, mas no outro momento seus olhos se abriram e ela percebeu estar viva ou quase.
– Bem vinda!
Antes que Lara pudesse responder alguma coisa ao agora sorridente garoto, uma mulher trajada de negro adentrou fantasmagoricamente pelo quarto, seu nome era Morte.
– Hora de ir. Sei que estou atrasada para levá-lo Leone, mas peço que me perdoe. Você ainda não estava pronto. Agora com os dois juntos, ambos podem fazer a travessia e conhecer o mundo novo que os espera.
– Mas e minha mãe?
– Era virá em breve Lara, não tarda e ela já estará te buscando. – O quão breve seria, Morte resolveu não dizer. – Passando pela porta, vocês irão encontrar o Outro Lado.
Era uma atração irresistível. A voz daquela mulher os empurrava para a porta, mas ainda havia uma pergunta na mente de Leone, uma velha indagação de sua mente.
– Espere! O que tem do Outro Lado?
A Mulher sorriu como se esperasse essa pergunta.
– O que você quiser, Leone.
– A paz eterna?
– A Paz Eterna, então.

Absinto-Pecados de uma fada


Absinto, pecados de uma fada




Eu sou a noite em meus renomados mistérios
augurios  entre doces encantos a se relevar.
Eu sou a fada, bêbada, drogada e prostituída,
 e uma canção esquecida que findou sem tocar.

Natasha não deveria ter saído àquela hora, já era muito tarde para uma mulher andar desacompanhada. Era tarde demais. A Paulicéia desvairada não era um lugar para se brincar, ainda mais assim, tão bêbada numa noite chuvosa de abril.
A fada verde impregnava seu juízo perfeito. A mulher sempre fora uma boa advogada, mas agora, com seu primeiro caso perdido, estava ali, destruída e entregue, como uma ninfa bêbada, prostituída ao sabor do mais doce Absinto.
Sua maquiagem negra borrava-se inteiramente, ante a impassível água celeste, manchando o rubro vestido decotado.
Ela estava destruída, como a maquiagem que há poucas horas lhe enfeitava os olhos. Seu primeiro caso perdido fora um caso de amor, seu próprio amor.
Talvez a advogada não tivesse saído naquela noite para beber. Talvez se ela soubesse... não teria pedido mais uma dose de Absinto, mas agora era tarde, tarde demais para esperar qualquer coisa da fria noite. O pecado já a estava observando e ele a desejava.
Passando pelo beco, dobrando a esquina, finalmente sua morada. Lá ela estaria a salvo dos próprios pensamentos, lá ela estaria a salvo de si mesma e poderia dormir e esquecer suas lembranças. Mas havia uma coisa da qual nem seu lar poderia a proteger: o pecado desconhece barreiras e não pede convite.
Ela entrou e jogou suas roupas molhadas sobre o sofá encarnado. Afagou seus longos, lisos e negros cabelos simulando a mão de seu amado sobre eles. Partiu lentamente para cama a espera que esta noite passasse logo, mas a noite jamais acabaria...
Por fim, a pecadora adormeceu.
Era um completo esgar de desespero. O corredor continuava e continuava... Não parecia ter fim, mas possuía um e, lá estaria seu amado de braços dados com ela.
Correr e correr, era a única forma de chegar depressa, mas seu amado se foi. Ele dissera: “Não quero mais te ver. Acabou Natasha, você é... ocupada demais para mim, entende?” Não, ela não entendia e queria chegar logo ao final daquele corredor para poder dizer isso a ele...
Ela o amava, mas estava cansada de correr. Queria o ouvir gritar seu nome e dizer que a ama...
– Natashaaaaa...
De um susto a advogada acordou de seu sonho.
Havia sido apenas um pesadelo, não havia corredor algum. A cabeça doía e sua mente, por fim, a convencera de que tudo não passava de uma ilusão. Afinal, ela estava segura em seu quarto, não estava?
Olhou ao redor, realmente não havia corredor algum.
Era realmente seu quarto. Ali estavam seus moveis, sua cama, seu quadro, seu espelho, sua porta com um homem parado nela, era seu guarda-roupa... Um homem parado na porta!
Olhou novamente. Era apenas um engano, não havia ninguém lá.
– Natashaaaaa...
Era serio? Ela ouvira mesmo alguém falar seu nome? Não! Provavelmente ainda estava sonhando. Ela havia lido em algum lugar que às vezes quando despertamos subitamente de um pesadelo sua cabeça ainda não teve tempo de despertar totalmente e pode experimentar sensações ainda do sonho. Era isso, era isso que estava acontecendo!
Natasha levantou-se cobrindo o corpo com o edredom. Precisava encontrar o interruptor. Queria acender a luz, mas a chuva lá fora a incomodava. Sua cabeça não conseguia raciocinar direito com tantos trovões.

Tateou a parede, mas quando finalmente conseguiu encontrar o interruptor constatou que não havia luz.
– Merda de casa! – Queixou-se.
– Não fale assim do seu lar, minha garotinha. – Uma potente voz falava atrás de si, será ainda um sonho?!
Não, não era. Ao voltar-se para sua cama o viu. Lá estava o vulto negro novamente. O homem deitado em sua cama.
– Buu!
TRUUUUUMMM. Luz! Um relâmpago forte e o retorno da energia elétrica deram-se em sincronia.
Não havia mais vulto algum lá. Ele havia sumido.
– Ufa! Era só um sonho.
– Não, eu não sou um sonho Natasha, a não ser que você queira que eu o seja...
– Quem...Quem... Quem é você?
– Eu sou o mal. – Disse o ser gélido que cheio de volúpia a envolvia com seu corpo masculino.
– O que você quer.
– Hora minha criança, eu sou sua consciência. Vim para dizer a você para continuar o que você quer fazer. Sei que deseja. Sei que busca a morte. Sei que está ferida. Vá, encontre-se com Deus e faça suas perguntas...
A mão cadavérica do Pecado estava estendida como uma mão de mãe que leva a criança a lugares seguros, mas era um embuste, um pequeno engano do mal: se fingir de inocente.
– Você se diz o mal e ainda acha que eu vou com você?!
– Porque não? O bem que você tanto queria a traiu...
– È você tem razão, mas...
– Mas você ainda tem esperança que ele volte para você. Ele não vai voltar. E ele te fez de tola na frente de tanta gente. Você vai deixar isso acontecer?
Não! Não iria. Segurou a mão do Mal e flutuou com ele pela cidade. A chuva caindo em seu rosto como lágrimas... Seu ego ferido sangrando em seu coração e em sua alma perdida... Voou de mãos dadas com o Pecado para o alto.
Era só mais um dos prédios altos de São Paulo. Era só mais um edifício frio de concreto erigido pelas mãos de homens pobres, projetado pela cabeça de pessoas de classe média e provavelmente articulado do sonho de mais um magnata de meia idade.
A chuva caia... E O Mal a soltara de seus braços e apenas observava o ruflar das asas de um humano.
Natasha abriu suas asas e como um anjo às pendera para voar, sem perceber estava partindo para ares desconhecidos, para um mundo que ainda não conhecia. Ela partiu para sua Jornada eterna.
E rindo-se em extasia, o maior de todos os pecados assistia o vôo [ou a queda], a garota o havia dado ouvidos, mas quem não daria? Todos o escutam. Todos ouvem a voz do Orgulho.

TEXTO PRESENTE NO EBOOK OLHARES DA NOITE:


Delirio de Cotard


Delírio de Cotard*


A luz disforme da lua banhava de prata os corpos nus dos dois amantes. O mármore branco da lápide assumia uma luminescência estranha, que tornava a dança sexual mais extasiante. Um bailar entre a tez de ébano dele e a pele branca dela. Uma fantasia.
Eduardo tinha que pedir e sabia que sua namorada não podia negar. Ter relações sexuais em um cemitério havia sido seu sonho durante tanto tempo e agora ele estava ali, o realizando inteiramente.
Aahhhh. Logo veio o primeiro gemido, mas não dos corpos de ambos e sim de algum lugar da necrópole solitária.
– Ai! Meu Deus Dudu! Está vindo alguém! Vamos acabar sendo presos! Eu avisei não avisei?!!!
– Calma Daniela, relaxa, deve ter sido só um bicho. Vô lá ver. – A contra gosto Eduardo se vestia e levanta-se em busca de algo que certamente era nada. Riu-se da cena – Mulheres!
Se o amante tivesse o dom da premonição, talvez saísse imediatamente dali. O prazer estava para ser acabado. Ao adentrar em meio às lápides do cemitério em busca do que o atrapalhou, ele se depararia não com a fantasia da sua vida, mas com um delírio patológico.
Os minutos se passavam assustadoramente devagar. Porque Dudu não voltava? Por quê? A garota começou a sentir-se assustada, droga! Estava acontecendo algo errado, mas o que?
Ouçam a voz dos que clamam do outro lado, os que dormem sós, aqueles que desejam de novo ver o mundo, aqueles que precisam seguir a nós!
Uma voz, uma música, som de uma flauta embriagante. Agora havia certeza! Algo errado estava acontecendo!
O corpo de Daniela fez menção de mexer-se, mas uma presença a parou. Por trás de si, seu namorado havia voltado. Ah! Por Deus! Ele havia voltado.
A pele dele tocou os seus seios, era tão gelada. E tão áspera... tão molhada... A boca dele chegou aos seus ouvidos e ela finalmente estava para perder-se de novo aos encantos dele...
– Carne! – Não era a voz dele!
– AAAAAAAAAh!
Daniela deparou-se com a coisa mais horrenda que há tinha visto na vida. Um cadáver acabara de levantar-se do tumulo e entre sua carne putrefata parte de seus ossos despontavam.
Ouçam a voz dos que sabem do querem, daqueles que despertam e clamam ao obscuro, daqueles que desejam mais. Precisam de alimento e a alguns aqui dentro... precisando de paz!
A voz doce de uma criança que entoava a canção em ritmo sombrio parecia querer esse efeito. Era ela que estava... Droga! Ela estava mesmo acordando os mortos!
Carne...carne...carne.
Em meio às vielas escuras do cemitério os decrépitos moradores estavam despertando. E pelas suas caras e palavras. Estava na hora do jantar. Pessoas que outrora foram importantes, pessoas que antigamente eram gente. Agora não eram mais do que pó e ossos. Eram zumbis sem emoções ou sentimentos.
– Eduardo! Eduardo! – Sem resposta.
Mãos cadavéricas tentaram agarra-la, mas Daniela não deu ouvidos as lamurias mortas desses seres. Precisava encontrar o corpo quente de seu namorado mais uma vez.
Carne... Carne...Carne, ela os estava chamando a comer e o alimento era ela, ela e seu namorado. Onde estava Eduardo?
–Duduuu!!! – Nenhuma resposta chegou aos seus ouvidos novamente, mas uma figura a chamou a atenção em cima de uma lápide.
Aqui jaz Maria Tereza.
O tumulo negro era enfeitado com um anjo e este ser angelical brandia a espada para o que devia ser o além, mas logo abaixo dele estava um ser que não fazia parte da decoração, uma criatura que não era uma estátua. A tal garota maldita entoava sua música fúnebre e aos seus pés o corpo ensangüentado de Eduardo.
– O que você está fazendo? – Daniela não se dera conta do cadáver do namorado ali no chão. – Ai meu Deus! O que você fez? – Daniela teve que parar. Não podia acreditar, Eduardo morto! – Porque você está fazendo isso?
– Porque eu estou morta, mas não consigo dormir. Mamãe diz que estou louca, quer me convencer a ficar, mas eu sei que estou morta, eu sei! – A criança devia ter uns 12 anos, loira com seus cabelos presos numa trança linda. Tinha a pele de porcelana e junto ao seu vestido branco, realmente parecia um fantasma.
– Você não pode acordar os mortos! Não, não chora. Vai pra luz! Vai! E leva os mortos com você! – Abraçou a garota e talvez assim o fantasma dela fosse embora e a deixasse em paz, mas a garota... Só então Daniela percebeu...
– Claro que posso. Quero libertar os meus irmãos! Assim eles podem dizer à mamãe que meu lugar é junto com eles. Estou morta, não vê?! Não sente minha pele fria?
– Não garota! Você está quente. Você está viva, seu coração ainda bate!
Sim, de fato Michele ainda estava viva. Apesar de achar pertencer ao outro mundo, ainda pertencia ao plano terreno. A pequena garota nunca havia morrido, mas nada a convenceria disso.
– AAAh! Você é igual minha mãe. Igual a esse rapaz. Meus irmãos precisam de você! Eles precisam se reconstituir.
– E como eles vão fazer isso?
– Isso não é obvio?
– Comendo minha carne...
– Quando você morre seu corpo vai aos poucos sendo devolvido para o ambiente que te fez. Seus carbonos migrarão para fazerem parte de plantas, de outras pessoas. O que meus irmãos fazem é tomar de volta alguns carbonos para se reconstituir.
– E quando eles tiverem tudo o que precisam se tornarão poderosos e não precisarão mais de nada...
– Mesmo despertados eles estão mortos, sempre precisarão de carne, somente a carne faz cessar a dor de se tornar pó, além disso, há algo que nem toda carne do mundo pode trazer de volta, a consciência. O cérebro definha rápido e sem ele você se torna apenas esse saco animado desejoso de carne...
– Eu não ima.... !!! Eu não ligo, você matou meu namorado!!!
– Então você o quer de volta?
– É o que eu mais quero na minha vida!!!
Agora novo irmão desperte da aurora que se segue, agora desperte do sono eterno da morte!
Michele conseguia sentir a energia percorrer sua mente e a flauta. A energia escura lhe ensinara muitas coisas, a escuridão a libertara daquele lugar de pessoas vivas e loucas, ela estava morta, sabia disso... Síndrome neuropsiquiátrica rara... tolice dos homens de branco!!! Ela estava morta e seu lugar era o cemitério, seu lugar era ali libertando seus irmãos...

Por alguns minutos ele jurou ter visto uma grande mansão de vidro no meio da floresta, ouvir anjos perguntando como havia sido sua vida... Mas agora não havia nada disso, seus olhos se enchiam de realidade. Fora tudo um sonho? Não, não fora, ele estava morto, podia sentir.
– Eduardo! Você está vivo?! Ai meu Deus, eu não acredito nisso!!!
– Calma Dani, calma. Vai ficar tudo bem. – O cadáver animado ainda possuía resquícios de sua inteligência humana, algo que se acaba depressa quando se está morto...
Michele sentiu mãos frias a agarrarem. Eram seus irmãos, finalmente eles a levariam embora com eles! Mas... Existe dor após a morte...? Não!!! Não havia, ela estava viva, viva!!! Dor...
– Ignore os gritos meu amor. Ignore os gritos. – Eduardo aproximou-se e gentilmente fez com que sua consorte não os escutasse.
Agora sim! A pele, ainda, quente de Eduardo a envolvendo na luz da lua.
– Amor?! Agora que eu voltei, eu quero algo de você.
– O que você quer Dudu. Eu te dou qualquer coisa! Qualquer coisa!
– Sua carne...



*NOTA:
 Delírio de Cotard é uma rara patologia psiquiátrica em que o paciente julga estar morto, sem órgãos ou alma. Ainda mais raramente inclui também delírios de imortalidade.

Discórdia

¥ Crônicas dos Deuses ¥
Parte III
Discórdia



– Vá, ataque. Destrua todos eles Henrique. Você é o grande Deus do caos supremo. Derrote seu irmão. Agora. – Usando de sua sedutora voz espaçada, a mulher trajada de vermelho tentava convencer o irmão Gêmeo de Thalles a atacar.
Henrique não se demoveu. Seu sereno rosto continha toda a calma de alguém que tinha a eternidade para tomar uma decisão. Porque ouvir a voz daquela mulher? Ela não havia sido a responsável por libertá-lo. A Discórdia nem existia quando ele adormeceu.
– Existe pressa em suas palavras Discórdia. Porque eu iria ouvi-la? Sou o Deus do caos em meio ao reino do equilíbrio. Há calma em meus passos para que meu reino perdure. Todas as coisas feitas na pressa de um campo de batalha, todos os desejos perseguidos com gana, fenecem cedo.
– Mas há essa altura seu irmão já deve estar chegando. Ele trará mil exércitos. Ele destruirá seus intentos. Todos os deuses contra ti. Todos os deuses contra ti.
– Conheço Thalles melhor que você. Sou parte dele e como ele, penso. Ele virá, disso não há duvida, mas chegará sozinho e assim irá permanecer. Meu irmão é uma alma solitária. Um único ponto equilibra a gangorra da vida e este único ponto sempre estará sozinho.
– Mas...
– Mas nada! Agora vá. Vá embora demônio.
Discórdia não aceitava o modo como era tratada. Por séculos os deuses menores foram subjugados por senhores como aquele. Agora havia uma chance de acabar com isso, mas como aturar as manias daquela criança arrogante?
Calma, calma. Repetia a si mesma. Não adiantava por tudo a perder por orgulho. Sua missão era clara: provocar a guerra entre os primogênitos. Não podia falhar, lhe prometeram grande poder e fortuna caso ambos morressem.
E se acaso um sobrevivesse... Bem, ela poderia matar o outro. Na chuva ninguém percebe as forças que se movimentam.
Acima de sua cabeça as pesadas nuvens de chuva se acumulavam. A grande batalha estava sendo anunciada pelos céus. Thalles estava perto, muito perto.
“A chuva” era o mais poderoso poder já criado pelos deuses. Discórdia não entendia bem como ela era formada ou quem a trazia, mas conhecia a lenda: as águas trazem promessas de uma nova existência. Prenuncio de guerra.
Avise-o, agora, O Primogênito caminha em direção a vocês. A voz invadia sua mente. O seu mestre lhe dava ordens através daquela voz difusa. Talvez nem Henrique soubesse quem era seu benfeitor. Aquele que o libertou do sono eterno.
A morena apenas entrou novamente no apartamento.
– Seu irmão está...
– Chegando, chegando. Eu sei.
– Como você sabe?
– Ele trás a chuva. Ele é a chuva quando quer.
O Gêmeo de Thalles apenas se levantou sem dizer mais nada. Embainhou sua espada junto a si e caminhou em direção a janela entreaberta
– Aonde você vai?
– Ser a chuva. – E se atirou.

Tertuniel

Tertuniel

– Tertuniel, conte-me um segredo. Como falam as estrelas?
– Há tanto a dizer minha criança. Elas gritam nomes, seus nomes. Os nomes dos humanos que as criaram, seus significados.
Elas cantarolam para nós que podemos ouvi-las. Dançam também, mas ninguém pode vê-las no seu bailar chamado destino. São índias essas feiticeiras, gritam e pedem ao clamor dos céus, batendo nesse imenso disco iluminado de São Jorge.
– A lua?
– Sim, a lua. Frenéticas, elas pedem auxilio aos anjos. Precisam de nós para executar seus desejos, para articular seus amores. As estrelas são o intermédio do homem e o céu.
Quando conseguem o que querem, elas se jogam lá do alto. Precisam renascer de novo. Milhares e milhares de vezes em forma humana. Geralmente passam a vida em busca de realizar o pedido que alguém fez quando as viu cair.
– Me parece uma vida triste.
– Toda vida iluminada é triste. Veja como são todas elas. Solitárias, belas. Velhas e novas matronas que fofocam entre si e conosco. Nunca perdem esse habito, nunca perderão.
– Mas as estrelas morrem.
– Todas as coisas morrem. É o destino universal. Deixar de existir para dar lugar à outra centena de coisas. Ninguém morre realmente, apenas é transformado em outras coisas ao longo da existência. Você é feito de uma estrela que morreu a muitos, muitos anos. Poeira de estrelas... Como todos os humanos.
– Eu não sou especial?
– Cada um é especial ao seu modo, para alguém. Você é especial para mim, espero que isso lhe baste.
– Sim, me basta, mas me fale mais sobre as estrelas. Elas ainda falam com você desde que... não sei como dizer isso.
– Desde que eu cai. Sim, ainda falam. Elas nunca perdem essa mania, eu já disse isso.
– Você é mesmo um anjo?
– Sim, sou. Se preferir me chamar assim.
– E porque você... caiu?
– Porque eu cometi um pecado.
– ...
– Eu me apaixonei.
– ...
– Por você.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Delírios cibernéticos

Delírios cibernéticos
 

Logo após acordar, Ademar dirigiu-se ao computador, sua incorrigível rotina. Queria ver seus emails e conversar no seu msn.
Orkut, blog, skoob, msn. Uma vida virtual completa: amigos, fama, liberdade. Aquilo que não possuía, de fato, em sua vida real.
O mundo aparentava não existir, além daquela tela de cristal liquido, seus amigos o adoravam, seu Orkut estava sempre cheio de recados, nada podia dar errado, nada! Exceto...
Era finalzinho de tarde quando aconteceu. Primeiro, as luzes do quarto piscaram, depois, a rutilancia foi ainda maior e tudo se apagou.
Itaipu havia entrado em colapso, mas ele não sabia. Desconhecia qualquer coisa, estava ali sozinho, no escuro e perdido no mundo real.
Uma... duas horas. O tempo passava devagar demais. Ele, similar a um viciado em cocaína, sentia os sintomas da abstinência.
O esgar de desespero, logo foi substituído pela ansiedade. Quando a ânsia não podia mais ser contida, passou a caminhar ziguezagueando pelo quarto.
Quatro... cinco horas. O terror havia chegado ao seu grau máximo, não havia mais escapatória. Ao abrir a porta, Ademar enfrentou a realidade e desapareceu na mais completa escuridão.
Algumas semanas depois, alguns amigos perguntavam “Onde está o Adê? Nunca mais o vi.”, enquanto outros, desgostosos, respondiam: “ Sei lá, ele nunca mais foi encontrado...”

terça-feira, 15 de maio de 2012

A passagem


 A passagem
 


O cheiro de velas e incenso invadia suas narinas. De onde vinha? Talvez da sua cabeça, ele estava meio fora de si nos últimos dias.
Davi olhou em volta, onde estava? Aquela não era a sua São Paulo! Ao contrario! Parecia mais uma cidade européia, daquelas que sempre sonhou visitar, mas nunca teve coragem ou dinheiro para tanto.
Não havia ninguém na rua. Não havia luzes nas casas. E se alguém fosse parar para ver tudo que estava faltando veria que na verdade não havia nada ali a não ser o caminho de pedra e os pés do garoto.
Jovem, alto e esguio. Davi era do tipo que arrancaria suspiros de todas as mulheres da região, um belo rapaz de dezessete anos de pele bronze e olhos verdes.
O caminho de pedra parecia nunca ter fim, porém por mais que andasse Davi ainda não se sentia cansado. Não demorou muito ele chegou à Ponte.
Duas lamparinas antigas demarcavam o local, mas a despeito do homem sentado que haveria de ser o acendedor, as duas estavam apagadas.
– Oh. Jovem Davi, você veio. Demoraste, pensamos que nunca chegaria a tempo. – O velho trôpego andava curvado e parecia bastante debilitado.
– Você me esperava aqui?
– Ah! Não só eu meu jovem, não só eu. Vamos, venha. Você precisa atravessar a ponte.
– Por quê?!
– O caminho de pedra, vê?! Precisa acompanhar o caminho. Agora vá, vamos homem, não tenha medo.
O velho fez menção que o obrigaria a atravessar a ponte, mas nada vez. O rapaz ainda mostrava-se indeciso e se aquele fosse mais um velho louco e bêbado que deveria acender o poste de luz, mas estava esclerosado demais para fazê-lo?
A madrugada corria em passos rápidos, não se podia ficar ali a noite toda. Davi então decidiu atravessar a ponte e continuar o caminho. O seu caminho.
– Espere, tome. O caminho é escuro, tome essa pequena lamparina.
O velho poderia ser louco, mas tinha carisma! E uma lâmpada que o ajudaria a iluminar o caminho.
As pedras pareciam nunca ter fim, mas era quase impossível ter certeza. Uma floresta se seguia dos dois lados da estrada. Uma floresta de arvores mortas.
Som de rodas, cavalos e gritos. Uma carruagem, sim. Uma carroça. De onde vinha? Ah! Estava atravessando a ponte.
– Quer uma carona?
Não, aquilo era surreal demais. Só poderia ser um sonho. Tudo ali era tão bucólico e tão antigo que não podia coexistir com o caos que era São Paulo.
– Quer uma carona? – Repetiu um velho com um chapéu.
– Quero sim, está indo pra onde?
– Para onde você vai garoto, para onde você vai. Ande suba. Jogue uma pedra fora e suba na carroça.
Davi fez o que o velho o mandara.
– Porque tu guarda tanta pedra, coroa?
– É uma longa história meu jovem e eu tenho certeza que você não está disposto a ouvir as histórias de uma pessoa tão velha quanto eu.
– Que é isso coroa, o senhor não ta tão velho assim não. Ta até enxutão.
– Hehehe. Obrigado, obrigado, mas eu sou velho sim, muitooo velho. Te peço que se segure. O caminho é longo, às vezes longo demais.
O garoto então se sentou e olhou em sua volta. A luz do candeeiro iluminava sua frente, mas ele estava virado para o caminho que percorreu. Então como o velho conseguia enxergar o que ainda estava a ser trilhado?
– Você meu jovem passou a vida inteira olhando o passado. Isso é ruim sabe...
Davi queria dizer que não, mas o velho estava certo.
A carroça parou bruscamente, mas só ao se virar o rapaz percebeu o motivo. Havia um enorme portão de pedra no meio do caminho e depois dele a estrada seguia-se até chegar a uma clareira.
– Aqui é até onde eu posso ir.
– Obrigado.
– Não agradeça moço, tu diminuiu uma pedra no meu fardo.
– Éh, mas o senhor tem tantas.
– Eu sei, eu sei, mas tu foi forte. Pegou logo uma das grandes. Garoto esperto, garoto esperto. Por conta disso eu vou te dar uma dica: quando chegar a clareira haverá dois portões. Escolha o prateado.
– Ta bom.
Davi continuou sua jornada. Queria agora descobrir que tais portões eram esses. Passou pelo de pedra e chegou à clareira. Não, não havia portões. Na verdade o lugar era fechado por uma mata morta, mas densa. O rapaz resolveu voltar, talvez ainda alcançasse o velho.
Ora, mas qual foi sua surpresa ao ver que estava numa clareira hermeticamente fechada? Não havia caminho de volta, na verdade o lugar era um circulo perfeito rodeado por árvores. Não tinha entrada ou saída.
– Não tenha medo, aqui é o fim do caminho. – Uma voz feminina falava às suas costas. Estranho... Podia jurar que não vira ninguém na clareira.
– Quem é você?!
– Eu tenho muitos nomes, mas não é o momento para você saber algum deles. Ainda é cedo. – A mulher era jovial, mas apesar de parecer não ter vivido mais do que 20 anos, seu rosto exibia um ar maduro.
– Onde eu estou?
– Você não consegue se lembrar?
– Não, eu conheço esse lugar.
– Hehehe. Não isso seu bobinho. A estação...
– A estação... O trem! Droga, eu perdi o trem!
– Tsc.tsc.tsc. – a mulher estralava língua em sinal de desaprovação. – Perdeu? Então onde está seu bilhete?
– No bolso. – Davi checou os bolsos. Sim, estava lá. A passagem de trem, mas havia um buraco nela... Isso significava que... Ele pegou o trem! – Aqui não é a Vila Matilde, em que estação eu desci?
– O carro...
Carro, que carro? Se ele tivesse um carro não teria pegado o trem. Espere! Havia um carro, sim havia! Um carro indo na direção do trem...
– Havia um carro.
– Que bom, está se lembrando. O que houve com o carro.
– Ele chegou perto e mais perto... Meu deus! Ele bateu no trem que eu estava!
– Bom, bom. O que mais você se lembra?
– Nada mais. Eu vi uma luz. Eu vi fios... O trem descarrilou! Aquelas pessoas... Vidro, tantas pessoas mortas. Espere eu vi... – Davi agora se lembrava com clareza de um rosto, sim, se lembrava!
– Você me viu.
– Isso!
– Como sobrevivemos ao acidente?
– Você não sobreviveu.
– Eu... O que?!
– Você está morto Davi. Na verdade... Você já chegou ao fim da sua viagem. Eu esperava que você se desse conta disso antes.
– Aqueles senhores...
– Eles são duas pessoas que não podem chegar até aqui. Eles têm missões a cumprir, assim como você tem Davi, está na hora de escolher.
– Escolher o que?
– A porta.
– Que porta?
– Olhe atrás de você.
Havia sim portões. Três ao todo. Um de ferro, um de prata e um de ouro. Não havia como ver o que havia do outro lado deles.
– Escolha.
Davi ponderou alguns segundos. Deveria confiar no velho da carroça? E se isso tudo fosse uma armadilha para sua alma ficar perdida em algum lugar? E se ele não estivesse morto?
– Escolha.
– Eu quero o de prata.
O portão abriu-se como que por mágica.
– As pessoas sempre escolhem o portão que o carroceiro indica. Ainda bem que ele sempre indica o portão certo para cada pessoa. Vá, ande.
Davi então cruzou os portões.
Os portões prateados da reencarnação.