quinta-feira, 17 de maio de 2012

Delirio de Cotard


Delírio de Cotard*


A luz disforme da lua banhava de prata os corpos nus dos dois amantes. O mármore branco da lápide assumia uma luminescência estranha, que tornava a dança sexual mais extasiante. Um bailar entre a tez de ébano dele e a pele branca dela. Uma fantasia.
Eduardo tinha que pedir e sabia que sua namorada não podia negar. Ter relações sexuais em um cemitério havia sido seu sonho durante tanto tempo e agora ele estava ali, o realizando inteiramente.
Aahhhh. Logo veio o primeiro gemido, mas não dos corpos de ambos e sim de algum lugar da necrópole solitária.
– Ai! Meu Deus Dudu! Está vindo alguém! Vamos acabar sendo presos! Eu avisei não avisei?!!!
– Calma Daniela, relaxa, deve ter sido só um bicho. Vô lá ver. – A contra gosto Eduardo se vestia e levanta-se em busca de algo que certamente era nada. Riu-se da cena – Mulheres!
Se o amante tivesse o dom da premonição, talvez saísse imediatamente dali. O prazer estava para ser acabado. Ao adentrar em meio às lápides do cemitério em busca do que o atrapalhou, ele se depararia não com a fantasia da sua vida, mas com um delírio patológico.
Os minutos se passavam assustadoramente devagar. Porque Dudu não voltava? Por quê? A garota começou a sentir-se assustada, droga! Estava acontecendo algo errado, mas o que?
Ouçam a voz dos que clamam do outro lado, os que dormem sós, aqueles que desejam de novo ver o mundo, aqueles que precisam seguir a nós!
Uma voz, uma música, som de uma flauta embriagante. Agora havia certeza! Algo errado estava acontecendo!
O corpo de Daniela fez menção de mexer-se, mas uma presença a parou. Por trás de si, seu namorado havia voltado. Ah! Por Deus! Ele havia voltado.
A pele dele tocou os seus seios, era tão gelada. E tão áspera... tão molhada... A boca dele chegou aos seus ouvidos e ela finalmente estava para perder-se de novo aos encantos dele...
– Carne! – Não era a voz dele!
– AAAAAAAAAh!
Daniela deparou-se com a coisa mais horrenda que há tinha visto na vida. Um cadáver acabara de levantar-se do tumulo e entre sua carne putrefata parte de seus ossos despontavam.
Ouçam a voz dos que sabem do querem, daqueles que despertam e clamam ao obscuro, daqueles que desejam mais. Precisam de alimento e a alguns aqui dentro... precisando de paz!
A voz doce de uma criança que entoava a canção em ritmo sombrio parecia querer esse efeito. Era ela que estava... Droga! Ela estava mesmo acordando os mortos!
Carne...carne...carne.
Em meio às vielas escuras do cemitério os decrépitos moradores estavam despertando. E pelas suas caras e palavras. Estava na hora do jantar. Pessoas que outrora foram importantes, pessoas que antigamente eram gente. Agora não eram mais do que pó e ossos. Eram zumbis sem emoções ou sentimentos.
– Eduardo! Eduardo! – Sem resposta.
Mãos cadavéricas tentaram agarra-la, mas Daniela não deu ouvidos as lamurias mortas desses seres. Precisava encontrar o corpo quente de seu namorado mais uma vez.
Carne... Carne...Carne, ela os estava chamando a comer e o alimento era ela, ela e seu namorado. Onde estava Eduardo?
–Duduuu!!! – Nenhuma resposta chegou aos seus ouvidos novamente, mas uma figura a chamou a atenção em cima de uma lápide.
Aqui jaz Maria Tereza.
O tumulo negro era enfeitado com um anjo e este ser angelical brandia a espada para o que devia ser o além, mas logo abaixo dele estava um ser que não fazia parte da decoração, uma criatura que não era uma estátua. A tal garota maldita entoava sua música fúnebre e aos seus pés o corpo ensangüentado de Eduardo.
– O que você está fazendo? – Daniela não se dera conta do cadáver do namorado ali no chão. – Ai meu Deus! O que você fez? – Daniela teve que parar. Não podia acreditar, Eduardo morto! – Porque você está fazendo isso?
– Porque eu estou morta, mas não consigo dormir. Mamãe diz que estou louca, quer me convencer a ficar, mas eu sei que estou morta, eu sei! – A criança devia ter uns 12 anos, loira com seus cabelos presos numa trança linda. Tinha a pele de porcelana e junto ao seu vestido branco, realmente parecia um fantasma.
– Você não pode acordar os mortos! Não, não chora. Vai pra luz! Vai! E leva os mortos com você! – Abraçou a garota e talvez assim o fantasma dela fosse embora e a deixasse em paz, mas a garota... Só então Daniela percebeu...
– Claro que posso. Quero libertar os meus irmãos! Assim eles podem dizer à mamãe que meu lugar é junto com eles. Estou morta, não vê?! Não sente minha pele fria?
– Não garota! Você está quente. Você está viva, seu coração ainda bate!
Sim, de fato Michele ainda estava viva. Apesar de achar pertencer ao outro mundo, ainda pertencia ao plano terreno. A pequena garota nunca havia morrido, mas nada a convenceria disso.
– AAAh! Você é igual minha mãe. Igual a esse rapaz. Meus irmãos precisam de você! Eles precisam se reconstituir.
– E como eles vão fazer isso?
– Isso não é obvio?
– Comendo minha carne...
– Quando você morre seu corpo vai aos poucos sendo devolvido para o ambiente que te fez. Seus carbonos migrarão para fazerem parte de plantas, de outras pessoas. O que meus irmãos fazem é tomar de volta alguns carbonos para se reconstituir.
– E quando eles tiverem tudo o que precisam se tornarão poderosos e não precisarão mais de nada...
– Mesmo despertados eles estão mortos, sempre precisarão de carne, somente a carne faz cessar a dor de se tornar pó, além disso, há algo que nem toda carne do mundo pode trazer de volta, a consciência. O cérebro definha rápido e sem ele você se torna apenas esse saco animado desejoso de carne...
– Eu não ima.... !!! Eu não ligo, você matou meu namorado!!!
– Então você o quer de volta?
– É o que eu mais quero na minha vida!!!
Agora novo irmão desperte da aurora que se segue, agora desperte do sono eterno da morte!
Michele conseguia sentir a energia percorrer sua mente e a flauta. A energia escura lhe ensinara muitas coisas, a escuridão a libertara daquele lugar de pessoas vivas e loucas, ela estava morta, sabia disso... Síndrome neuropsiquiátrica rara... tolice dos homens de branco!!! Ela estava morta e seu lugar era o cemitério, seu lugar era ali libertando seus irmãos...

Por alguns minutos ele jurou ter visto uma grande mansão de vidro no meio da floresta, ouvir anjos perguntando como havia sido sua vida... Mas agora não havia nada disso, seus olhos se enchiam de realidade. Fora tudo um sonho? Não, não fora, ele estava morto, podia sentir.
– Eduardo! Você está vivo?! Ai meu Deus, eu não acredito nisso!!!
– Calma Dani, calma. Vai ficar tudo bem. – O cadáver animado ainda possuía resquícios de sua inteligência humana, algo que se acaba depressa quando se está morto...
Michele sentiu mãos frias a agarrarem. Eram seus irmãos, finalmente eles a levariam embora com eles! Mas... Existe dor após a morte...? Não!!! Não havia, ela estava viva, viva!!! Dor...
– Ignore os gritos meu amor. Ignore os gritos. – Eduardo aproximou-se e gentilmente fez com que sua consorte não os escutasse.
Agora sim! A pele, ainda, quente de Eduardo a envolvendo na luz da lua.
– Amor?! Agora que eu voltei, eu quero algo de você.
– O que você quer Dudu. Eu te dou qualquer coisa! Qualquer coisa!
– Sua carne...



*NOTA:
 Delírio de Cotard é uma rara patologia psiquiátrica em que o paciente julga estar morto, sem órgãos ou alma. Ainda mais raramente inclui também delírios de imortalidade.

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