sábado, 30 de junho de 2012

Parlamento de Gralhas


A Crônica dos filhos
Epílogo
Parlamento de Gralhas

Tabula Rasa é um dos lugares mais desolados de todo o Vale dos Mortos, aqui vivem as sombras daqueles que jamais tiveram descanso e já não podiam mais viver como fantasmas no nosso lado. Todos aqueles que os conheciam estavam mortos. Seus assuntos inacabados perderam o sentido e eles foram condenados à eternidade vagando sem rumo pelo cemitério do Vale. Eles esqueceram quem são, mas jamais esqueceram porque estão aqui.
Eles se assustaram com a rara visão da Morte e seus dois filhos sendo trazidos a nascente do Estige pelo barqueiro. Os senhores do reino raramente eram vistos naquele lugar esquecido. E para muitos, era a primeira vez que o rosto da Morte lhes era mostrado em sua própria pessoa.
No fim da quase interminável necrópole há um grande portão de ébano e ferro, não é possível ver nada por detrás de suas barras e ninguém, a não ser a soberana do Vale, jamais pisara sob aquele chão. Nem mesmo seus filhos.
— Aqui é o fim da linha para vocês, Azrael e Tertuniel. Daqui, eu sigo sozinha, pois sua irmã não merece cortejo além de mim. Eu sou sua mãe e a mim cabe o fardo de enterrá-la.
—O que tem do outro lado?
— Nada. O puro e simples Nada.
Ela levantou sua mão e respirou pausadamente enquanto as trancas abriam-se por sua ordem. Salve a deusa dos mortos, eles gemiam. Salve a senhora do abismo, eles gritavam. Salve a senhora dos mortos, eles choravam.
Mas mantenham eternamente luto, pois um imortal acaba de morrer. Assim, eles se abriram.
Inexistência era o vazio depois dos mundos, o escuro sob os pés, o abismo sobre a cabeça, nada havia depois do portão, a não ser um grande monólito de mármore negro, que estranhamente conseguia destoar de toda escuridão.
Em dourado, nomes brilhavam em seu corpo, nomes esquecidos pelo tempo e pelo destino, aquilo era Inexistência o último resquício dos deuses que já morreram. A última lembrança dos esquecidos.
Dê-nos um nome. Dê-nos o nome do deus esquecido. Dê-nos o nome do morto e deixe que ele descanse em paz em seu esquecimento, agora que já não existe. O que é imortal, não morre, mas deixa de existir, por toda eternidade e em todos os mundos. Nós, a escuridão, exigimos um nome. — Disseram vozes distantes, dentro da escuridão.
— Ela era o corvo que sobrevoava a batalha, ela era a morte que presidia a guerra. Era a filha mais nova da morte, conseqüência de seu envolvimento com o mais profundo dos abismos. Ela era minha penitencia por matar a Harpia que guardava o poço, ela foi o meu castigo por criar o meu reino. Ela era o meu reino, e agora que está morta, caminhemos em tristeza. A terceira filha da morte está morta e seu nome era Morrigan.
 O anjo tocou o monólito de pedra e sentiu tudo que Morrigan significava se esvair em dourado, no fim, tudo que restou de sua filha e de seu desejo de poder, foi seu nome escrito naquela pedra.
Sem olhar para trás, foi embora e os portões choraram uma última vez.
— Acabou. — Disse a Morte.
— Que ela descanse em paz. — Responderam seus filhos.
Pela primeira vez, choveu no Vale.

Chovia.
Não era aquela chuva costumeira de tristeza e desilusão, não era mais disso a chuva banhando a cidade que era a alma de Pablo. Neste dia chovia excitação e felicidade, enquanto os diminutos habitantes de seu sonho percorriam felizes as ruas de nuvens e olhavam para cima, esperando pacientemente o fim. Eles estavam felizes mesmo assim.
Pablo caminhava vagarosamente em direção a sua casa, mas no fundo ainda possuía aquela vã esperança de eternidade que tem todos os jovens. Mesmo sabendo de sua morte iminente, ele achava que nunca ia morrer.
Enquanto ele caminhava, um homem brigava com a esposa e juntava algumas latas de cerveja enquanto tentava ligar o carro. Já estava na décima, quando finalmente o Fiat 2001 pegou.
Atrás de si, diminutos olhos o observavam. Aves negras de todas as épocas do mundo, aquelas que tanto fizeram historia e nunca são lembradas. Os corvos da torre de Londres, os corvinais olhos de Odin, a mulher-corvo que casou com Adão, o corvo do mundo dos sonhos, Nunca Mais e os tantos outros corvos que vieram de tão longe para assistir Pablo em sua última caminhada.
Eles observavam enquanto ele cantava. E no fundo, riam-se com suas vozes de pedras da ironia daquela canção.
“A partir deste ponto, é instintivo, até os labirintos de uma estrada, a cada lugar contém um mapa de tudo, de tudo! Evidências, na marcha de uma formiga, no pulso do oceano.” A Crow left of the murder, o corvo que restou do assassinato, da banda Incubus, tocava em sua voz inadvertidamente. Ele cantava a musica certa para o seu momento, mas não conseguia ver isso.
O homem chorava. Correndo em direção a lugar nenhum ele dirigia perigosamente. No fundo, ele queria morrer. No fundo, ele queria matar alguém... um alguém que era sua esposa.
Pablo sentiu os pelos de seu pescoço eriçarem, pela primeira vez em sua caminhada ele percebeu que estava sendo observado e tremia. Caminhou um pouco mais apressadamente, imaginando ouvir os sussurros de uma historia. Mas não entendia os fragmentos.
Naquele momento ele temeu por sua vida.
No meio da estrada, um corvo morto retorcia-se a beira da morte e isso fez o garoto parar. O corvo falava em sons pétreos, mas ele repetia apenas uma frase.  Eu contei minha historia — ele dizia. Aquilo deixou Pablo em choque.
Ele parou de cantar, olhando ao redor sem entender se aquilo era um sinal ou um mero acaso. Ele teve o ímpeto de perguntar qual era o nome daquele corvo, mas ele parou percebendo como aquilo seria demasiado tolo.
Aquilo o fez refletir sobre matar Morrigan. Aquele corvo de olhos vazados e agonizante o fez parar para perceber que talvez ele só tenha nascido para aquele momento e que tudo em sua vida o voltou para aquele milésimo de segundo. Para o momento em que ele parou no meio da rua e percebeu coisas sobre os corvos que nunca antes havia pensando
Coisas sobre ele mesmo que antes esquecera.
Um carro vinha na estrada e dobrou rapidamente a esquina. Pablo teria sido atropelado se não tivesse jogado seu corpo para trás e escapado com vida daquilo que seria um trágico acidente. Por um segundo, ele respirou aliviado e assistiu a revoada de corvos tomarem o céu.
Eles gritavam em pavorosa cadencia: Aquele é o corvo que restou do assassinato, ele nos contou sua historia e agora morrerá. E alguns gritavam ainda mais tormentosamente: Pablo, Pablo, Pablo.
O garoto caminhou perseguindo os corvos rua abaixo. Eles gritavam seu nome e repetiam sempre à mesma frase, mas na cabeça dele era como se eles falassem coisas que nunca saberia se não os seguisse.
Alguns corvos se perdiam do bando, quebravam suas asas e caiam alquebrados ao chão, gritando ainda as mesmas frases. Pablo parou e todos eles empoleiraram-se na porta de sua casa. Alguns passos o distanciavam de Miguel, uma dezena de passos e mil corvos olhando em sua direção.
Então, dessa vez numa voz melodiosa, sem aquele costumeiro clac de pedras batendo umas contras outras, eles disseram um nome e então tudo que Pablo conhecia sobre a vida mudou.
Ouvir aquele nome era como ouvir todos os sons do universo e ver a face de todos os deuses brilhando frente aos olhos. Era como sentir os sonhos de cada criatura viva no coração.  Ele sentiu-se flutuar no tempo.
O homem dirigiu o mais rápido que pode e fechou os olhos. Rezou intimamente pela paz e para que nunca mais brigasse com sua esposa de novo. Era tarde demais, entretanto. E ele não viu o rapaz a sua frente que caiu desmaiado a porta de casa. E nem viu a arvore em que bateu. Era tarde demais para qualquer arrependimento. Ele estava morto e o garoto respirando lentamente.
Pablo abriu os olhos com sofreguidão e pouco ouviu dos gritos do irmão que o via cair. Tudo que ele via era o olhar dos corvos e som cadente do Nome, naquele momento ele entendeu seu lugar no universo e tudo que o trouxera até aquele lugar através de todas as coincidências.
Ele entendeu a rota das estrelas, a ascensão e o declínio de todos os deuses deste mundo. E então, seus olhos se fecharam e ele estava morto.
Do que havia do outro lado, só os corvos sabem.


O corvo que restou do assassinato



A Crônica dos Filhos

 III
O corvo que restou do assassinato

Suas linhas eram uma estratégia de batalha, finos traços como espadas, duras, frias e mortíferas. Suas curvas, como arcos, disparavam desejos e caricias, mas eram somente uma armadilha para sua boca de dentes afiados. Ela era toda uma arma poderosa e seu hálito despertava os loucos dominadores. Sua voz era o exaltado som da tirania.
O rapaz de veias saltadas e olheiras profundas tremia a cada toque dela. Cada parte de sua alma era corrompida pelo desejo primitivo de domínio. Ele era um pouco de Stalin, Churchill ou Hitler, um dominador nato que aprendeu nos campos do RPG como tomar cidades e mundos. Seu jogo atual era a própria realidade, quando a deusa da guerra veio ter com ele em sua cama.
Seus olhos exprimiam loucura, rubros de cansaço, viravam-se nas órbitas num misto de prazer e dor que homem algum jamais sentira. Temia a morte nos braços da Guerra, mas não podia conter o ímpeto de desejar ter o mundo inteiro a seus pés, o mesmo mundo que o rejeitou a vida toda.
— Em breve, meu pequeno, você terá tudo que deseja. Eu abrirei as portas do inferno e criarei meu próprio mundo dos mortos, aqui em cima. Eu serei a rainha imortal de tudo que existe... e você se tornará o meu primeiro rei.
—Minha rainha... — Debilitado ele a encarava com fome, mas não a fome que um homem sente ao ver uma mulher. A olhava como se ela fosse um reino a conquistar, um continente desconhecido e cheio de riquezas, um universo outrora intangível. Seus olhos queimavam como se ela fosse o próprio mundo que oferecia e em sua febre ele delirava, mesmo quase morto pelo toque dela. — Porque não já começamos?
—Ainda não estamos na hora correta, apenas na sexta hora desta noite, poderemos abrir os portais que ligam os dois mundos. Mas não se preocupe, temos muito que fazer juntos até lá.
David tremia de excitação... e de tipo de terror tão profundo, que apenas um homem ao chegar no reino mais abismal de Hades poderia conhecer.

Reza a lenda, que ao fechar a Caixa de Pandora, Epimeteu impedira que o maior de todos os males se libertasse: o de conhecer o dia da própria morte. Para Pablo, a caixa abrira-se completamente e o terrível dom da antecipação chegara-lhe aos ouvidos.
— Como é morrer?
—Eu não sei bem, só minha mãe conhece todos os segredos dela. Geralmente, uns segundos antes de morrer vocês entendem toda a conexão do universo com suas vidas, por um ínfimo segundo vocês possuem todo o conhecimento que até os anjos desejam, mas então vocês morrem e tudo deixa de fazer sentido.
— Eu não quero morrer, não quero deixar meu irmão sozinho. Porque eu? Justo agora? Minha vida toda sempre foi cheia de tragédias e justamente quando as coisas começam a melhorar, eu morro. Isso não é justo. Não é justo que meu irmão fique sozinho.
— Porque era sua hora, mas você ao menos a está aproveitando. Não se preocupe com seu irmão, eu cuido dele. Miguel ficará em boas mãos.
— Você não vai ficar comigo depois que eu...?
Azrael sorriu, mas por detrás de seu sorriso havia uma tristeza que se refletia na chuva, no vento e em cada coisa viva ao seu redor. O mundo inteiro era apenas um mero espelho de sua dor.
— Eu virei te buscar. Eu prometo.
— E depois?
—Depois você segue seu caminho e eu não sei se te verei de novo. Você tem uma hora pra se despedir do seu irmão e pegar o que precisar, em duas horas a noite estará pronta para abrir sua porta.
— Espere. — Disse ele já saindo em direção a casa. — Porque você me levou para o funeral da sua cunhada? Você poderia ter falado com seu irmão sem mim.
— Porque eu queria que você visse o mundo em que estava entrando. Você sabe que se desistir, ainda vai viver. Eu queria que você tivesse a chance de desistir, se você me entende.
Pablo apenas sorriu e entrou. Azrael não sabia se de fato ele voltaria, ou se simplesmente não conseguira dizer adeus. Esperar sozinho no carro era a única coisa que ele podia fazer, afinal, ele estava pedindo para um garoto que ele mal conhecia deixar a família e correr em direção a uma missão suicida. Ele estava apenas pedindo pra alguém destruir um anjo.
— Pronto. Eu trouxe a faca que sua mãe me deu e uns casacos. Deve estar fazendo frio no sul, mas acho que isso é tudo que eu vou precisar.
A faca de vidro cintilava, pronta para matar qualquer um que ousasse chegar perto de seu afiado gume. Era uma magnífica arma, mas que fazia Azrael tremer em repulsa.
—Cuidado. Eu não sei por que minha mãe te deu essa faca, mas ela é realmente perigosa. Facas como essas mataram outros deuses antes, destruíram civilizações, vidas e romperam o equilíbrio. Então, não a segure como se ela fosse a coisa mais segura do mundo.

Nu, o jovem David tremia de frio no centro do circulo de sangue. Sua pele branca reluzia sob a luz do crepúsculo e contrastava com o vermelho sangüíneo que lhe escapava por entre as veias do pulso. Ele estava morrendo e sua morte romperia as portas entre os dois mundos.
Girando em sentido horário, ele reverenciava os cinco símbolos da morte e a cada um repetia os dizeres que aprendera de Morrigan. Para ele, eram apenas sons vocálicos inexpressivos, mas ela entendia bem a antiga língua da Suméria.
Faca que corta os fios da vida, saúdo-te minha fiel amiga. Corte-me com seu afiado gume e lança-me ao negrume. Diante da escuridão, eu volto dos mortos. ele disse ao primeiro símbolo. Ampulheta que marca as horas dessa existência sofrida, pare de contar os segundos da minha vida, pois empresto os meus anos aos finados, que se fundam novamente os ossos quebrados. Diante da escuridão, eu chamo os mortos.ao segundo. — Cinzas de um coração partido, voem no vento e se tornem o arauto da morte, pois ao recitar o nome da trindade do destino, eu dito agora a minha sorte, sou Clotho, e teço, sou Laquesis, e sorteio, sou Átropo e corto o fio que me liga a esse mundo. Diante da escuridão, eu morro junto aos mortos. disse perante as cinzas do coração de sua mãe. Romã, fruta que cresce nos bosques do murmúrio, eu banqueteio juntos aos arautos do mau augúrio, me faça um deles, me abra os portões, pois agora eu clamo sob os nomes anciões. Yaveh, Izrail e Lúcifer. Diante da escuridão, eu como com os mortos e me torno um deles. ao terceiro. — Ankh, símbolo da vida eterna e da ressurreição, seja nossa luz e nosso guia, como os deuses faraônicos rezaram diante de vós um dia: traga-nos de volta da escuridão. Diante da escuridão, eu guio os mortos.
Então, após virar-se aos quatro pontos cardeais, já a beira a morte, ele tomou a faca que havia sido o primeiro símbolo e disse as palavras finais na língua mais antiga dos homens.
Alma humana, sopro divino da mais elevada existência, chave dos reinos, eu a entrego nas mãos da filha do abismo e da morte, daquela quem os anjos chamam Morrigan, o corvo. E que de novo, aqueles que se foram caminhem pela terra. Diante da escuridão, eu abro a porta e me liberto.E cortou sua própria garganta em agonia.
Morrigan ria descontroladamente vendo que seu pupilo conseguira sacrificar sua própria vida, para ter o que desejava. Ela havia esperado uma era inteira, antes que pudesse evocar o seu alto poder. Era chegado o seu momento e ela finalmente seria a herdeira de sua mãe. Ela abriu os braços e libertou sua verdadeira imagem: um assassinato de corvos, voando uns sobre os outros para comer a carne de David, o bando brigava pelos olhos, uma iguaria para esses animais, quando Azrael e Pablo chegaram. Em suas vozes pétreas eles cantavam uma desconhecida canção...
Um de nós busca a carcaça e dois outros conduzem o deus caolho, uma trinca de corvos é uma deusa e em sua justeza, o homem nos chama assassinato, são muitos de nós aqui nesse dia e para aqueles que perderam na guerra o nato juízo, nós os conduzimos à morte, mas nunca ao paraíso.
Os corvos desvaneceram em nevoa, entrando pelas frestas do assoalho e abrindo as portas que trancam a escuridão por debaixo da terra. O ranger dos portões telúricos assemelhavam-se aos gemidos dos enfermos e ao último suspiro daqueles que sofrem dores de metástase. A marcha dos mortos era de uma cadencia fúnebre, rítmica como um coração moribundo, eles subiam por uma escada de mármore negro que se fez ao redor do circulo.
— Rápido, chame-a pelo nome. — Gritou Azrael para Pablo. — Você precisa invocar o verdadeiro nome dela. Seu nome está na canção, é o coletivo de corvos, o nome que os homens lhe dão.
— Aqui neste momento, pelo vidro tártaro em minha mão. Eu te invoco, Assassinato.
Do que restava na nevoa, ela reapareceu. Seus olhos negros brilharam faiscantes e sorridentes, ela sabia que nada poderia detê-la agora. Apenas sua morte traria os mortos de volta ao tumulo e um mortal jamais conseguiria mata-la.
— O que você acha que está fazendo? Me invocar na minha casa e apontar uma faca para mim... — Morrigan sorriu como quem brinca com uma criança — Você é tolo se pensa que vai me deter, mortal. Muitos tentaram me matar, mas ninguém é capaz de destruir a guerra. Você é só um garoto tolo. Como acha que vai me parar sozinho?
De sua clavícula ela arrancou um machado de guerra e lançou-se contra o garoto como um cavalo em disparada. Pablo desviou debilmente como pode, mas ele percebia que por hora, Morrigan estava apenas brincando com ele. Em vão, ele tentou estocar sua faca no peito dela, mas ela desviava sua mão com golpes da parte lisa do machado.
A marcha dos mortos continuava cadenciadamente, enquanto os gritos de lamento davam lugar a gritos de euforia, ainda mais assustadores que os primeiros, ossos rangiam misturando-se ao som de pele se desprendendo, um cheiro nauseabundo vertia do buraco no piso, dando idéia das coisas putrefatas que escapariam por ali.
Azrael mantinha-se parado na frente do buraco, pronto a enfrentar quaisquer criaturas que porventura chegassem ao topo, mas sua atenção estava dividida entre seu posto e a luta que Pablo travava contra sua irmã, o mortal estava perdendo e se mostrava cada vez mais cansado.
Morrigan, no entanto, parecia fatigada e sua dança com o garoto já dava sinais de perder a graça, sem mais delongas, ela deu um golpe que o fez soltar a faca e lançou-se sobre ele, prendendo o cabo do machado em sua garganta, e o erguendo contra a parede alguns centímetros do chão.
— Como você está se sentindo?Cansado, não? Azrael não pode me tocar, porque não se pode derramar sangue de família sem pagar as conseqüências, sem subverter o nosso mundo em sangue e ferro. Você está preparado para morrer em dor e sofrimento? Preparado para se afogar em seu próprio sangue? — Ela perguntou em tom de escárnio. Seus olhos corvinais eram ainda mais amedrontadores de perto, mas estranhamente Pablo sentia-se calmo, até mesmo atrevido o suficiente para respondê-la.
— Eu sei quando eu vou morrer e não vai ser assim. E não hoje. — Disse cuspindo sangue na face de sua inimiga, sufocando em agonia, mas confiando em seu amado.
— E quem irá te salvar? Azrael não pode se intrometer, porque senão eu quebro o seu pescoçinho e se ele me matar, ele destrói tudo aquilo que ele mais preza, porque a Lei subverterá tudo em Abismo. Nem mesmo aquele que te deu a faca pode te salvar, agora. Eu serei a herdeira do trono da morte!
Azrael observava descrente sua irmã, o que ela estava dizendo parecia ainda mais insano do que todo seu plano. Ela não poderia ser herdeira de nada, Izrail estava viva e reinava soberana no Vale das Sombras.
— Você não pode se tornar a herdeira do trono de nossa mãe, Morrigan. Ela ainda está viva. Lembra? — ele disse, antevendo a resposta de sua irmã.
— Aquele mortal insolente que ela colocou no lugar dela não é minha mãe! Ele pode ter todos os poderes dela, mas pelo Estige! Pelo Abismo! Ele não tem o direito de se sentar no trono dela e coabitar conosco. Felipe Casemiro não é um de nós!

Do buraco um cântico elevou-se acima da marcha dos mortos. Uma canção de cores púrpuras e negras, uma canção de fogo, ferro, lágrimas e sussurros que flutuava em nuvens densas, como a chuva que se desprende da tristeza de um oráculo. E, ao lado de Azrael, Felipe Casemiro surgiu, sorrindo com o maior dos escárnios perante aquela que evocava seu nome pelo Estige e pelo Abismo.
—Então eu não sou a própria morte? Eu não sou da família e, portanto eu posso derramar seu sangue, Morrigan. Foi você mesma que acaba de dizer isso perante os deuses mais escuros. Agora, você descobrir que não é tão fácil assim roubar o meu trono. — Com um aceno ele lançou o machado dela ao outro lado da sala e deu dois passos em sua direção, antes que a mesma se lançasse contra ele e parasse a sua frente.
— Se você pudesse me matar, já teria feito. Apesar de suas palavras, minhas palavras não mudam o fato de que você teme a Lei, como todos nós. E se me matar, arriscará todo o seu mundo. Você não tem coragem de mover um músculo contra mim. Afinal, se o fizer, você também estará morto.
— Eu não preciso mover nenhum músculo contra você, filha. Tudo que eu preciso fazer é dizer uma palavra e então você estará em Inexistência e seu nome será esquecido para sempre.
—Você arriscaria mesmo todo o Vale das Sombras, por minha causa? Então diga essa palavra tão assustadora.
— Vire-se. — E ela se virou.
A faca enfiou-se inteiramente no peito de Morrigan, e nem ao menos a mais vaga esperança de que o mundo fosse destruído com sua morte lhe restou. Não fora Felipe que a matara, mas Pablo que segurava firmemente a faca que perfurou o seu coração sombrio.
— Adeus, desgraçada. — Disse a Morte. Morrigan fechou seus olhos e se dispersou em corvos que explodiram em areia negra, unindo-se ao sangue no chão.
Os ventos anunciavam que a filha mais nova da morte estava morta, enquanto um último de seus corvos empoleirou-se no ombro de Felipe e se desfez.
A marcha cadenciada dos mortos cessou, escandalizada. Aqueles que ainda tinham olhos voltaram-se a própria Morte e tremeram. Os olhos de Felipe cintilavam azuis celestes, mais fantasmagóricos do que costumavam ser. Ele soprou como quem sopra uma vela sem importância.
E como os corvos, os mortos se foram.

Cinzas Funéreas


 A Crônica dos Filhos

II
Cinzas Funéreas

A alma de Pablo era como uma cidade na ausência de um regente: caótica e a beira da insanidade. Sentado na varanda, ele esperou pelo anjo que dera vida ao seu irmão. Esperou até suas lembranças se tornarem parte de um sonho e até mesmo ele questionar se de fato aquilo havia acontecido.
Havia.
Apesar do verão inteiro ter passado e as últimas folhas do outono estarem prestes a cair, para Morrigan era como se apenas um ou dois minutos houvessem transcorrido. Para Azrael, o tempo era um mero detalhe que ele poderia ignorar, mas a distancia que deveria manter do rapaz por quem se apaixonara não era ignorável. Por isso, somente quando as duas últimas folhas do outono caíram, Azrael subiu novamente os degraus que levavam a porta de Pablo.
As últimas folhas de outono caíram e, no inicio do inverno, dois dos filhos da morte começaram sua guerra. Nela, os primeiros bombardeios vieram na forma de duras batidas na porta. Miguel atendeu.
— Você... — Disse ele ao derrapar-se com o anjo a sua porta. — Eu sonhei com você.
— Espero que tenha sido um bom sonho.
Não havia sido. Miguel caia na escuridão enquanto todas as suas lembranças passavam lentamente por ele. Fora um dos piores pesadelos de sua vida, pelo menos até uma voz o chamar para longe do abismo e ele abrir os olhos. Agora, ele percebia de quem era a voz. No fundo dos seus ossos, ele sabia quem era o rapaz a sua porta.
— Eu cheguei a pensar que Miguel estava certo e de que tudo fora apenas um sonho. Az... — Pablo se encontrava atrás do irmão, quase tão estupefato quanto ele, mas por detrás de sua expressão surpresa escondiam-se todos os fogos de ano novo.
— Arrume-se, nós vamos a um funeral. — disse Azrael, frio como as pedras tumulares.
— Funeral, de quem?
— Da única pessoa que meu irmão amou em milhares de anos.

Havia duas pessoas no salão de ébano e mármore. Uma possuía longos cabelos brancos e uma face que demonstrava ter sido bela enquanto jovem, suas pálpebras fechadas escondiam belos olhos castanhos arredondados e sua boca sorria como se conhecesse um segredo sobre a vida. Ela conhecia vários, fora casada com um dos filhos da morte por cinqüenta anos... e agora estava morta.
O rapaz ao seu lado tinha olhos prateados como a luz da lua minguando e dotados de uma profundidade tão singular que olha-los era como fitar o céu a noite, com apenas a lua brilhando regia em sua abobada.
Seus lábios formavam um desenho de tristeza, como se sempre estivessem dando beijos de adeus e sua face era como se ele sempre estivesse de coração partido, mas era bela como se tocada pela luz de algo acima de sois e cometas, mesclada com a escuridão dos bosques mais antigos e fechados. Vê-lo era como olhar para o quadro de um talentoso artista que morrera jovem e deixara apenas uma obra no mundo, aquela. Vê-lo era como deseja-lo e saber que seu próximo beijo seria o último.
O rapaz que aparentava ter não mais de dezesseis anos e que facilmente seria confundido com o filho mais novo daquela mulher, fora seu marido e teria dado toda a eternidade a qual ele estava destinado para morrer naquele momento. Mas sua mãe jamais o levaria e Tertuniel estava fadado a continuar vivendo sem uma parte de si.
— Você deveria me levar, mãe. — A Morte fora a primeira a chegar ao funeral, caminhando reticente temendo enfrentar o próprio filho. Era duplamente difícil para ela.
— Não. Você jamais terá direito a morrer e sabe disso. Você é inteira existência e quando fechar os olhos será para deixar de existir, completamente. Eu não posso levá-lo porque simplesmente você não pode ir aonde ela vai. Você sabe disso tão bem e até melhor do que eu. — Ela olhava o filho como se conseguisse sentir toda a tristeza de seu luto em sua própria respiração. Trajava um longo vestido negro que se confundia com seu cabelo até os olhos e naquela hora, vê-la em todo aquele pesar era como cair num poço profundo e jamais sair de lá.
— Se não como minha mãe, como a própria morte. Que seja por vingança então, como Felipe você é as duas coisas, não? Ainda existe uma gota de humanidade por trás desse coração de ferro? — Agora, Morte se mostrava como um rapaz de traços delicados e ofídicos olhos verdes profundamente amargurados pelo tempo. — Você por acaso esqueceu quem é, Felipe? Você por acaso esqueceu o que eu fiz?
— Nós vamos nos ver de novo, Tertuniel. Só você e eu, sem que eu seja também sua mãe e ai, somente ai, eu terei minha vingança e você o seu desejo. Isso é uma promessa de oráculo. — Disse Felipe antes de desvanecer e voltar a ter a aparência original com que chegara ali. Novamente ele se mostrava como a impassível morte.
Seguido a ela vieram seus vassalos e seus muitos mensageiros, tristes como se fosse um parente seu no caixão. Ankou, que viera buscá-la era o que se mostrava mais perturbado, emanando melancolia de seus olhos negros como o fim do universo.
Os penúltimos a chegar foram Pablo e Azrael, adiantados apenas o suficiente para se deixarem olhar para trás e se surpreender com a última convidada a comparecer ao salão.
— É estranho que alguém morra antes de uma guerra começar e que os rivais se encontrem em paz, antes de tentarem se matar. Não é irmão? — Morrigan falava cheia de si, como um senhor que ganha o trono após uma longa batalha por um reino. — Eu entendo bem disso, afinal, guerras são a minha especialidade.
— Cuidado irmã, você permanece tão cheia de si que parece ter esquecido de como se portar em um funeral. Ah, espere, havia me esquecido de que corvos comem os mortos. Você pode entender de guerras e morte, mas não entende nada de luto ou rituais. Se continuar com esse ar de superioridade e desdém, vai acabar fazendo nosso irmão tê-la como sua inimiga. E você não vai querer Tertuniel como inimigo, ele é o desejo e você deseja muito mais do que pode ter.
Morrigan tinha olhos de corvo, profundos e negros. Afiado como ferro meteórico, seu olhar era penetrante como uma dúzia de espadas a dilacerar a carne. Encara-la era como morrer na guerra.
Seus cabelos igualmente negros estavam presos num rabo de cavalo, mas seu brilho lembrava milhares de agulhas e seu toque sobre o ombro dela deixava um fino rastro de sangue que logo se esvaia em sua tenra carne imortal, sua pele branca era gelada como aço, mas seus seios eram quentes como um par de forjas e seu coração batia sob o som da bigorna e martelo.
Seu rosto era serio como uma estratégia, mas possuía uma beleza imperativa que lhe dava ares de rainha, general e papisa, mas sem súditos, soldados ou cânticos seu rosto lhe dava uma aparência faminta e desejosa. Seu semblante era insaciável como os soldados em terra estrangeira e sua expressão gananciosa como os conquistadores da América.
Sua voz era como o som de bombas atômicas distantes, capazes de ofuscar os discursos de Stalin, Churchil ou Hittler; seus lábios, finos como navalhas a cortar gargantas, intensamente vermelhos como o sangue dos inocentes e culpados mortos na penumbra em busca da glória.  Estavam sempre contraídos em expressão séria e raramente sorriam, mas eram capazes de convencer até mesmo a alma mais pacifica a matar seus irmãos. Ela raramente sorri, mas quando o faz impérios caem,  pessoas morrem e famílias desmoronam. Seu sorriso era morte e ruína.

Um piano tocava embora não pudesse ser visto e enlutados choravam diante da morte. A chuva caia sonoramente em meio a gritos de desespero, enquanto os violinos anunciavam a triste partida de uma pessoa amada. Ao longe alguém canta uma canção de dor e desespero, bela como o por do sol, mas triste como as piores lembranças de uma vida.
Ouviam-se todas essas coisas, mas nenhuma delas de fato ocorria ali. Eram apenas lembranças de todos os funerais que existiram e que ainda iriam existir. Todos começaram a cantar algo numa língua que há muito foi esquecida pelos homens e pelos deuses, uma das três coisas que apenas a morte se lembra.
Era somente uma canção fúnebre em uma língua morta, mas Pablo não pode evitar fechar os olhos para contemplá-la e derramar uma lágrima solitária em luto, enquanto mergulhava na tristeza de todos os funerais da história.
A lágrima descia junto a musica, suave e refletindo todo o pesar de todas as pessoas que perderam alguém. E enquanto a gota precipitava-se no espaço vazio ao encontro do chão, a musica deu lugar a um suave sopro morno que cheirava a brisa e especiarias.
Todos os outros convidados haviam ido embora quando o jovem se permitiu abrir os olhos ao final da musica. Apenas ele, a Morte e seus três filhos observavam o caixão se consumir em chamas verdes e violáceas enquanto o grande salão era tomado pelo aroma de incensos e especiarias, apenas o quinteto observou a fumaça se mesclar ao fogo e formar uma mulher.
Seus traços eram joviais e sutis, desenhado pelas mãos de fadas do açúcar, talvez por isso seus castanhos olhos arredondados se mostravam doces e afáveis, ela lançou um sorriso ao seu marido e lhe tocou a mão.
— Tertuniel, o que dizem as estrelas? — ela perguntou, relembrando o passado.
— Elas dizem que eu te amo e irei ao seu encontro em breve.
— Elas mentem, você me ama, mas não pode vir ao meu encontro. Você é um anjo, não tem alma e essa é a última vez que nos veremos. — ela sorriu tristemente. — Valeu a pena viver comigo?
— Cada dia com você valeu uma era da minha vida. Adeus.
— Adeus. — Ela disse beijando-lhe o rosto. E então se virou para Pablo e o encarou com um profundo pesar. — Você é tão jovem, é uma pena que vá morrer tão cedo. Espero que pra você valha a pena.
Num minuto ela estava lá e no outro era como se nunca tivesse estado em lugar algum.

Morrigan se permitiu um sorriso sombrio e triunfante. Sempre tivera repulsa da mulher mortal que seu irmão tomara como esposa, mas em morte ela lhe dera uma noticia que muito lhe alegrara: o rapaz morreria. Ela logo se viu o matando e conquistando o mundo depois que a guerra tivesse tido vencida.
— Está vendo irmão? — Ela disse. — Seu “guerreiro” vai morrer e ninguém precisa dizer quem o matará. Você perderá a guerra e eu tomarei o mundo que me pertence com sangue, ferro, fogo e lágrimas. Suas lágrimas desejosas de esperança. Lágrimas fúteis e sutis, a espera de algo que nunca acontecerá.
— Se você espera continuar com essa loucura, eu não terei outra escolha a não ser matá-la! Como você pode achar que pode controlar o mundo, Morrigan? Corvos não constroem reinos, tudo que eles fazem é comer olhos e cadáveres e no fim, morrem e são devorados uns pelos outros. O que você pretende fazer é criar um reino de ossos e sangue!
— O que eu pretendo, é matar você irmão e fazer da terra o meu próprio reino dos mortos, já que nossa mãe, ao adormecer, deu um jeitinho de continuar entre nós no corpo desse daí. Eu quero tudo, irmão. Tudo.

O semblante de Tertuniel era sombrio e perigoso como às florestas do vale da morte, mas era a raiva demoníaca que mais lhe saltava à face. Seu olhar prateado ganhava tons púrpuros e todo seu corpo vertia o calor de mil campos infernais, ele era inteiro uma forja na construção de uma espada. Ele era inteiro Hefesto construindo o apocalipse no monte Etna.
— Minha esposa acaba de morrer e vocês dois se esquadrinham em cima de um reino que não nos pertence! Eu quero ambos fora daqui agora, ou... — sua fala foi interrompida pelo frio da espada de Morrigan em sua garganta, mas nem mesmo o aço era capaz de conter toda fúria do desejo. — eu mato os dois. — disse pausadamente numa ameaça velada.
O silencio imperou na sala por alguns segundos, o suficiente para que todos se lembrassem da paz que deveria haver durante um funeral. Com seu olhar perdido em lembranças vazias, a mãe dos três presentes mandou sua filha mais nova embora.
— Se algum dos três quebrar a Paz Funérea, eu mesma os levarei pessoalmente a Inexistência. E então, nunca mais eu ouvirei Desejo, Ilusão ou Guerra brigando num funeral. Ninguém deve levantar a espada durante um enterro, esta é a nossa principal lei. Morrigan, então eu lhe peço que se retire, antes que eu mesma tenha que lhe retirar.
Nem mesmo Guerra objetou uma ordem de sua mãe, apesar uma grande ofensa ter ficado em sua garganta, havia coisas que nem mesmo ela poderia enfrentar, não ainda.
— Quanto a você, Pablo, eu já lhe disse o que perguntar.

Árvores, céu, pássaros, vento, pessoas. Nada tinha forma ou significado no caminho para casa. A pergunta ficara entalada em sua garganta sem que Pablo tivesse a mínima coragem para fazê-la, mas no fundo algo em sua alma gritava para que ele a fizesse.
Mas somente sua casa, sua cama e algumas horas junto do anjo que o colocara nesta historia o fizeram ter a coragem necessária para que ele conseguisse juntar as quatro palavras que mudariam sua forma de ver as coisas e toda sua vida.
— Como eu vou morrer?

Corações partidos e deuses mortos entre outras ilusões quebradas




A Crônica dos Filhos

I
Corações partidos e deuses mortos
entre outras ilusões quebradas

“Ele tem no máximo dois ou três dias de vida, eu sinto muito” Essa frase repetia-se melancolicamente nos ouvidos de Pablo cada vez que ele observava o semblante do irmão.
Miguel parecia estar dormindo, respirando levemente fazendo seu peito magro subir e descer em uma angustiante rotina. Era um garoto bonito com seus cabelos loiros encaracolados e sua macia pele branca, o queixo forte lembrava o do irmão, mas seu rosto possuía traços mais refinados, mais femininos de maneira a parecer o mais frágil dos garotos de 17 anos – era, estava morrendo.
Desespero era um eufemismo a quem pudesse ler o espírito de Pablo e nem mesmo desolação descreveria o completo estado que se escondia por trás daqueles olhos calmos e compreensivos. Seu estado era como o estado de Sodoma e Gomorra depois da total aniquilação: apenas um fantasma cinéreo num deserto gélido no auge do inverno nuclear.
Talvez por isso sua alma não fosse capaz de acender as verdes luzes da esperança ou o rubro brilho da ira desmedida contra o destino. Toda a sua mente era um completo silencio sideral e pela falta de apelos e lágrimas nenhum apelo chegou aos seres iluminados e nenhuma ajuda veio.
Por isso, ele pode ouvir o som dos carros chegando e os passos dos irmãos Shinigami. O ruído áspero de quando eles subiram o batente da porta e a atravessam ao mesmo tempo não o fez desviar o olhar da respiração efêmera de Miguel.
Sua apatia era tamanha que nem mesmo quando as mãos dos gêmeos arautos da morte tocaram seus ombros em condolência ele os olhou, mas agora seus ouvidos eram capazes de distinguir o som da areia escapando pelas beiradas da ampulheta que marcava o tempo de vida de seu irmão.
Ansatu, olhou a irmã com seus olhos negros como os rios do inferno e ela lhe sorriu triste, como os sorrisos de condescendência dos funerais. Estava na hora e eles deram o primeiro passo. Foi a primeira vez que Pablo desviou o olhar.
O estranho do lado de fora conseguia sentir cada gota de chuva individualmente caindo em seu corpo e embora seus passos fossem lentos e controlados, ele alcançaria quarto de Miguel antes que o segundo passo dos gêmeos chegasse ao chão, o tempo não era o mesmo para ele.
Ele abriu a porta, embora esta estivesse trancada, atravessou a sala e subiu as escadas percebendo as moléculas de poeira se desprendendo do chão. Embora não pudesse ver o olhar de dor, sofrimento e suplica que Pablo lançou aos gêmeos, ele podia senti-lo em nuances imperceptíveis até mesmo para os dois arautos, afinal ele era o filho mais velho da morte, seu herdeiro.
 Quando o segundo passo dos irmãos finalmente chegou ao chão, eles se viraram ao mesmo tempo perturbados, assustados, mas secretamente satisfeitos com o desenrolar dos fatos. Pablo, apesar de morto por dentro, não era capaz de perceber isso.
Vão — disse-lhes em sua própria língua. — Não é hora de vocês aqui, ainda.
Pablo virou-se ao perceber a ausência dos gêmeos e notar o jovem parado em frente a porta. Sua boca moveu-se em curta indagação, mas ele não conseguiu formular palavra alguma diante do ser a sua frente.
O que ele viu não pode ser traduzido em palavras. O filho da morte era a coisa mais bela que ele já vira, inumano, porém incrivelmente atraente. Seus olhos acinzentados como nuvens de chuvas em um funeral, sua pele branca como o mármore das lapides antigas e sua boca vermelha como o sangue de um assassinado eram uma descrição exata da palavra perfeição. Ele era toda a beleza na dor e no sofrimento encarnados num corpo humano.
— Eu sou Azrael. — falou o estranho com uma voz que traduzia o silencio do luto. — Posso ajudar seu irmão, se você quiser.
Pablo queria.
— Porque você faria isso? — Disse enquanto via Azrael sentasse a sua frente na cama.
— Porque como você eu tenho irmãos e não possuo outra família. Minha mãe dorme há muito e apesar de eu perceber muito dela em seu substituto, ele ainda não é ela inteira. E principalmente, eu tenho dois irmãos, como você, eu faria tudo por eles e estou ajudando você pela vida da minha irmã mais nova.
— Ela também está doente? — Perguntou Pablo quando percebeu a estupidez de sua pergunta. — Quero dizer... Ela está morrendo e você quer salvar a vida dela?
— Eu quero matá-la. — a expressão de choque no rosto de Pablo o fez rir por um momento, ela esquecia de como a morte era mal vista pelos mortais. — Minha irmã são três mulheres e ela é completamente instável, não é como se ela se ela tivesse algum transtorno de personalidade, ela é totalmente instável, seu corpo, sua personalidade, sua essência, tudo nela é inconstante como a vida humana. Talvez por isso ela tenha uma forte inclinação para a guerra.
— Mas porque você quer matá-la e porque meu irmão tem a ver com isso?
—Ela é a própria guerra. De vez em quando ela escolhe alguém cujo principal desejo é o poder. Ela gosta de caras assim e dá a eles a chance, a idéia e a força de concretizar seus desejos de guerra.  Dessa vez, ela vai passar do limite e usar o seu dom. Ela finalmente achou alguém sádico o suficiente para usá-lo, de novo.
— Dom?
— Minha mãe tem três filhos e cada um de nós tem , entre outros poderes, o dom de poder realizar algo para um humano, por um certo preço. A cada mil anos, eu posso conceder vida a alguém que esteja morrendo, contanto que alguém que ame essa pessoa esteja disposto a me dar o desejo que torna a vida possível. A qualquer hora que deseje, meu irmão Tertuniel pode, por um beijo, conceder um desejo de amor, apesar de ele sempre subverter isso em tragédia e minha irmã caçula, Morrigan, pode a cada era levantar o exercito daqueles que morreram em batalha ou desejosos de vingança e entrega-lo na mão de um general, de alguém louco o suficiente para morrer em agonia e ser seu amante enquanto o exercito durar. Ele sentirá toda a dor, todo o sofrimento, toda a agonia das guerras a cada vez que a beijar, mas ainda assim ele terá em mãos um poder inimaginável para um mortal. Eu vi isso acontecer no Egito, na era passada, e não havia tantos mortos quanto hoje naquela época. Foi horrível.
— E porque eu? Porque você me escolheu?
— Porque você aceitaria e porque eu sei que você conseguirá. Além disso, eu não gostaria de perder a oportunidade de provar do seu beijo antes que seu coração pare de bater.  Eu quero sua alma e você me dará em troca da vida de seu irmão, estou certo?
Azrael estava, mas algo dentro do coração de Pablo relutava em aceitar. Um pouco, porque sua alma relutava em ter esperança, em parte porque ele não sabia se conseguiria tocar a criatura sem ser sugada pelo campo atrativo dela, mas principalmente, ele não conseguia admitir para si mesmo que era justamente isso que ele queria. Tomar o anjo em sua cama e fazer o irmão levantar-se de sua cova iminente.
— Você está certo. — e antes que pudesse dizer outra palavra estava em sua cama, sob os fortes braços do filho da Morte.
Sua alma era como uma cidade em ruínas. Devastado pela perda de tudo o que mais amava. Sem luzes, numa eterna escuridão profana, sua alma era o inverno nuclear após a guerra. Silêncio, radioatividade e morte num cenário cinza. Mas aos poucos o tempo mudou sob o corpo de Azrael.
As mãos do amante separaram as nuvens enquanto rasgavam roupas em busca do pálido corpo de Pablo que correspondia freneticamente aos toques. De alguma forma, seus beijos limparam a poeira dos prédios que outrora existiam. Uma mordida e houve luz de um sol esverdeado de esperança. Um arrepio e de alguma forma as coisas voltaram a construírem-se. Ele sentiu a mão puxar o seu cabelo gentilmente enquanto algo úmido e quente trazia dor e prazer ao meio de suas pernas. Em movimentos rítmicos seu mundo passou de um deserto gélido a um projeto de cidade. Uma estocada e os prédios um a um foram construídos, outra e as praças mostravam-se verdes de novo e assim sucessivamente até a cidade conhecer uma chuva tão grande que não pode conter-se em sua alma e derramou-se pelo membro rijo de Pablo sob os lençóis. Ele revirou os olhos em êxtase e por um segundo pode vislumbrar a opulência de sua alma que agora era um império. E no meio de uma praça esverdeada, estava seu irmão correndo. Vivo, feliz e radiante. Contemplando a total satisfação e completude de sua alma, ele adormeceu em felicidade.

Seus passos são como o andar de um espírito efusivo, desenhando no chão e no ar a linha que fazem seus pés, porém seu caminhar é carregado de pesar, tristeza e luto. Seus olhos brilham verdes como a esperança e a inveja e seu olhar é como um último relâmpago em uma tempestade devastadora, trás medo e alivio. Sua boca possui lábios carnudos como o pecado. Ele caminha como um deus, ou a representação de um. Sua face é lívida e de uma beleza sem par até mesmo entre os anjos, ele é, porém, mais velho que estes apesar de sua aparente juventude. Ao vê-lo é impossível conter-se ao impulso de perguntar o seu nome: como todos o de sua espécie, ele tem vários. Mas seu nome, seu verdadeiro nome, é um mistério e ele só o diz apenas uma vez a cada pessoa.
Ouvir o nome dele é como ouvir todos os sons do universo em seus ouvidos e ver a face de todos os deuses brilhando frente aos seus olhos. É como sentir os sonhos de cada criatura viva em seu coração. Você ouve o nome o nome dele e entende a origem e o fins de todos os mundos, você entende o sentido de toda sua vida e então... irremediavelmente, você morre.
Ele abre uma porta que nunca existiu e caminha por um caminho inventado por ele. Sua presença é onírica e de fato é num sonho onde está agora. Neste sonho ele está sentado em frente à cama de Pablo. Neste sonho o sonhador acorda.
— Quem é você? — perguntou o sonhador.
— Eu sou a mãe de seu amante, de certa forma.
— Você é... Você é a Morte!? — mas para Pablo a resposta estava clara nos olhos do rapaz a sua frente, não havia mais nada que ele pudesse ser além da morte. — O que você está fazendo aqui?
O rapaz assentiu levemente em resposta a primeira pergunta, mas seu sorriso sumiu ao receber a segunda. Seu olhar tornou-se gélido como o ponto mais norte do ártico. Sua voz sussurrada parecia querer penetrar como uma faca no corpo esguio e nu de Pablo.
— Eu vim aqui saber por que seu irmão não está em meus domínios e depois que descobri eu vim ver pessoalmente o garoto que tomou o coração do meu filho e o fez usar o seu dom. Você deve se achar um deus da sedução, não Pablo? Afinal você conquistou o coração de um dos mais antigos anjos de antes de criação! E ainda conseguiu fazer com que seu irmão vivesse mais um punhado de anos. É... Ele vai viver, apesar de eu odiar que se metam em meus domínios. Eu sei que ele o ama, mas porque Azrael usou o dom dele com você?
— Ele quer que eu mate sua filha. — Pablo se sentiu incapaz de mentir diante da Morte.
—Como ele ousa?! Você é um mortal... mas sim... eu vejo que é esse o seu destino. Lutar contra Morrigan... Porque Az quer matá-la?
—Ela quer libertar um exercito zumbi ou algo assim... Ele quer impedi-la e acha que esse é o único jeito.
O sonhador viu os olhos da Morte literalmente lampejarem num fogo infernal. O ódio dentro daquele rapaz era devastador como a explosão de uma galáxia de estrelas gigantes, era intenso como a morte de um parente e, principalmente, assustador como um cemitério assombrado.
— Ela não ousaria fazer isso de novo... Não... Ela vai ousar. Sendo assim, meu bom rapaz, antes que você incomode o eterno sono de Izrail, aquela com quem divido a alma, eu vou lhe dar duas coisas. Uma faca capaz de matar um imortal e um aviso. — de suas vestes Morte puxou uma adaga.
A adaga era uma replica da lendária espada de Izrail, com uma lâmina feita de vidro escuro forjada no submundo capaz de destruir o espírito de um homem e subjugar a alma de um deus. Pablo segurou seu cabo de obsidiana e fitou maravilhado a arma que recebera. Morte virou-se para a porta que abrira no meio da parede.
— Espere! Você ainda não me deu o aviso. — Disse Pablo.
— Por um segundo, eu achei melhor não da-lo. — respondeu a morte sem olhar para seu interlocutor. — Se decidir continuar com isso e tentar matar minha filha, você morrerá mais cedo do que imagina. Se desistir, bem, seu irmão não irá morrer e nem você... por um bom tempo.
— Como eu vou morrer?
— Isso você terá que perguntar ao seu amante... se encontra-lo de novo.
Pablo acordou em seu quarto e não pode evitar não olhar ao seu redor a procura da Morte, mas não A encontrou e respirou aliviado ao perceber o sol entrando por sua janela. Por algum motivo, ele se sentia mais seguro a luz do dia, mas não deixou de se sobressaltar quando ouviu fortes passos passando vindos do corredor em direção ao seu quarto. Seus olhos não conteram a felicidade ao ver Miguel a sua frente.
— Você não vai acreditar, Pablo. Eu tive um sonho tão estranho...
Foi então que Pablo percebeu a ausência de mais um alguém no quarto. Ao seu lado na cama, onde devia estar Azrael, havia apenas uma estranha faca de vidro e obsidiana. Ele então fitou o irmão com uma dor tão intensa quanto a própria morte.
— Eu também... — ele disse — eu também estava sonhando.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Tiamat - Os fragmentos do fim


Tiamat
Os fragmentos do fim

Novamente me encontro no centro de toda criação. Toco a árvore e sinto a pungência dos quatro rios irromperem do meu mundo, sinto o clamor de tudo que eu criei e choro por perceber o fim iminente de tudo que amei e lutei pela existência.
Eu dei cada um dos passos que moveram à evolução das coisas, eu respirei o tempo e expirei destinos. Minhas lágrimas foram o pranto das chuvas e meus sorrisos foram os raios de sol que iluminaram minha criação.
Aqui na epigenese de toda criação houve um tempo em que eu segurei meu mundo com ambas as mãos, mas agora eu o deixo cair antes da ruína. Eis que espero que ninguém perceba... eu os abandonei.
O Deus

Lá no alto do morro, em frente ao mar que recitava fortemente suas canções ondulantes, nós sentimos o vento chegar e contemplamos o horizonte. A primeira estrela logo sumiu diante do brilho retumbante do primeiro relâmpago. A tempestade estava chegando e lá no infinito mar as pesadas nuvens se formavam.
Nos demos as mãos, crianças com medo, enquanto o fogo elétrico cruzava os céus. Sentimos o vento, fechamos os olhos e esperamos a chuva. De mãos dadas esperamos a tempestade e o fim de todos os mundos.
O homem

Eu estava só no inicio, mas a multidão formou-se o meu redor incrédula. Juntos assistimos o céu se tornar vermelho e o amanhecer de um sol a meia noite despontar. A lua brilhava como uma safira.... ou como os olhos raivosos de uma mulher.
O cara me deixara plantada na rua, hoje ele está plantado em algum lugar no cemitério São João Batista. Não importa, tudo isso já faz parte do passado e meu coração ainda é cheio de outras tristezas.
Eu cobrei o preço das minhas magoas com sangue, era hora do mundo cobrar o preço dele.
A prostituta

“Não resta muito tempo e por isso eu estou aqui”, falei enquanto acendia mais um cigarro. Estou apenas a espera que tudo acabe para me lançar de braços abertos pela primeira janela em direção a liberdade.
Eu tenho asas, mas é minha escolha cair.
O Anjo da morte

Isso foi há muito tempo e eu estou cansada. Deuses dizem que o mundo foi criado por eles e homens choram romances perdidos. Prostitutas se arrependem e anjos abrem mão daquilo que se chama esperança.
Eu sou a devastação, o fim de todas as coisas e aquela que engole todas as verdades. Eu sou o fim caótico de tudo que resta e a voz de todas as palavras que se calaram quando Deus chamou pela luz.
Eu sou o principio e o fim de todo o universo. A magoa, a tristeza, a suplica e a aceitação. Eu sou Tiamat, a mãe de todos os dragões.
No coração de todos eu acordo.
Tiamat

Havia uma cartomante que todas as noites previa a mesma coisa. “O seu tempo está acabando”, dizia ela. “Porque você não vai atrás do amor da sua vida?” Provavelmente eu era o único que sabia disso, assim como além dela, eu era o único a saber que por detrás de suas palavras havia culpa. Havia a culpa de não ter feito o que podia.
Num carro, no outro quarteirão. Um garoto que estaria destinado a se tornar um grande poeta escreve uma carta para o namorado. Eles seriam felizes juntos se o tempo não estivesse acabando.
Nenhum deles sabe disso. Eles fazem parte dos absortos que não observam a incandescente lua rachar e revelar seu primordial segredo. Eu estou no alto do mundo, acima da torre da igreja e posso ouvir a mente deles divagando sobre como irão continuar suas vidas.
Se o adolescente que planejava com seus amigos a festa que teriam a meia noite soubesse que aqueles seriam seus últimos segundos ele os perderia em planos efêmeros? Talvez.
Assim como talvez a cartomante não se surpreendesse ao perceber que todas as cartas de seu baralho estavam negras. “eu não sei o que está havendo.”  Ela gritava. Mas ela sabia, no fundo ela sabia que pela primeira vez sua previsão diária estava certa. O tempo estava acabando.
Mas nenhum deles sabia. Nenhum deles sabia até o exato momento do soar da primeira trombeta, a primeira rachadura na lua. Então até mesmo eles juntaram-se à multidão para assistir o magnifico espetáculo que era o fim de suas existências. A lua vermelha como sangue e brilhante como aço fervente.
Uma prostituta fumava calmamente seu cigarro, ela fora uma das primeiras a perceber o fim, mas não se mostrava aflita. Ao contrario, aquele momento era para ela a libertação. Ela matara o ex-namorado e agora estava livre do mal que sua loucura causou. Logo estaria perto dele e o beijaria como sempre o beijou depois das noites de amor. A morte é também uma forma de prazer.
E eu? Eu estava cansado de ouvir vozes alheias em minha cabeça e já havia decidido morrer antes da lua queimar em seu âmago. Eu estava ali no alto da torre e me sentia livre das minhas magoas e culpas.
Como um anjo eu estava leve e como um anjo eu tinha asas e não as usaria. E como um anjo eu contemplava o céu que rubro denotava o fechar de todas as cortinas, neste fim, lancei-me do alto da minha torre ao abrir as asas que deus me deu e o mundo queimava sobre elas... e este mesmo mundo ruía sob meus pés.
No fim, eu estava livre.
O Oraculo

Se eu pudesse parar o tempo, aquele exato momento seria um quadro, feito de fogo, asas e rocha. Mas o tempo corre e os sons se assemelham a uma musica apocalíptica. Um estrondo, o ruflar de asas metálicas e o bater uníssono do coração de toda a humanidade.
 Em outro dia, eu veria tais cenas na tela da minha tv ou num palco do teatro, mas aquele espetáculo acontecia na minha janela e dele eu fazia parte. Era noite, mas o céu brilhava como luzes de néon alaranjadas.
A lua chocara-se como um ovo e dela nasceu um anjo jeito de fogo. Naquele momento eu pude deslumbrar um poema, mas faltaram-me palavras diante da imagem do tal arcanjo flamejante.
Era um dragão e era o maior de todos com os quais eu lutara em meus sonhos épicos. E apesar de ter derrotado todas as minhas quimeras, aquele me mataria. Ali eu não estava em meus sonhos..
“Meu nome é Tiamat.”  Disse o dragão que obviamente era uma mulher. “Não tenham medo, eu vim apenas mata-los”.
Por um momento toda a criatura viva na terra se calou e este segundo, este exato segundo pareceu fluido e interminável. O vento interrompeu sua trajetória, as árvores pararam de sussurrar umas para outras e não se ouvia nem mesmo o som de um pensamento ocasional dos corvos que habitam as esquinas.
“Nunca mais!” Quebraram esses últimos o silêncio. E fluido como gás, o tempo inflamou e pelas intermináveis horas que se seguiram os gritos pareceram se unir num só. Como se toda terra gritasse seu clamor no fim.
O Artista

 Eu estava só e ao meu redor a incandescência provava minha solidão. O asfalto derretia sob os meus pés e a própria atmosfera era composta de fogo. Sozinha, dancei ao redor das luzes. Eu era um ponto de escuridão na terra em chamas.
Confortável com o calor que lambia minha branca pele, despi-me e pela última vez ouvi os sonoros lamentos que me vestiam. Caminhei descalça enquanto ocasionalmente me lembrava das pessoas que outrora caminhavam naquela rua.
Um pedaço de rocha lunar me fez lembrar então de quando ruas não existiam e de quando a terra era ainda um pedaço de rocha fervente no frio universo. Foi ali que  Tiamat fora fecundada e seu ovo elevou-se aos céus esperando seu momento. E em minha mão eu segurava um pedaço deste ovo. A lua nunca mais seria vista rondando o céu.
Não importava. Ninguém além de nos duas restava para contemplar as estrelas. Eu permanecia só aguardando Tiamat vir ao meu encontro. Contudo, até mesmo ela apreciava agarrar-se a rotina mesmo quando esta era despropositada.
Eu não tinha pressa. Todos os relógios derreteram e não havia ninguém para contar o tempo. Vi a noite passar e contemplei o nascer do sol pela última vez. Calmamente assisti o rei dos astros traçar sua trajetória acima de minha cabeça.
“Eu sou a senhora desta terra e nada me detém em meu mundo, eu sou Tiamat.” Ela me disse com sua voz autoritária e eu apenas sorri pela graça de sua juventude. No fundo, ela ainda era uma criança cheia de certezas.
“Não há mais o seu mundo. Você o destruiu com sua caótica existência e cumpriu os desígnios de seu propósito. Não há mais função em sua vida, agora que não há mais nada para queimar.”
Ela me olhou profundamente magoada e vociferou como faz uma criança que perde um brinquedo importante. “Vá embora, me deixe sozinha. Eu ainda sou a rainha desse mundo em ruínas.”
Não objetei. Era meio dia e acima da minha cabeça brilhava a luz que iluminava o palco desse espetáculo da vida. Mas a apresentação acabara e Aqueles Que Nos Assistiam foram embora. Levantei minha mão e apaguei as luzes daquele universo.
No escuro eu me virei para ir embora, contudo, Tiamat ainda se agarrava à ruína daquilo que conhecera. Por um momento, me virei para observá-la uma última vez antes de também partir. Desolada, ela apenas perguntou quem eu era e eu a respondi:
“Eu sou o seu propósito.”.
A Morte

Supernova



Supernova

Eva deita sobre o jardim observando as jovens estrelas de um universo antigo. Abaixo da árvore ela aconchega seu corpo imaginando mundos além do seu. Ela observa as estrelas que riem e bailam ao redor de si mesmas.
Chove. A taça na mão do demônio enche-se das lágrimas do céu, ele calmamente bebe o prantear das estrelas enquanto a jovem rodopia ao redor da árvore. Assim como é embaixo é também acima.
Lá do alto a mais velha estrela assiste o bailar terreno. Ela está cansada e as estrelas que antes riam, choram sua iminente morte. Seu corpo brilha como nunca e ela vê a jovem na primavera de sua vida dançar ao redor de uma brilhante árvore. O bailar da Terra a detém por um instante, o nascer das flores na primavera, o gotejar da chuva no corpo nu de Eva.
– Bailem! – Ela diz as companheiras. – Dancem como sempre dançaram, pois este é o fim e o começo. Eu brilho hoje mais do que nunca, pois nós somos calor e deslumbramento. Nós somos destruição e nova matéria. Os fios do destino.
O demônio ria-se com sua taça, colhendo de vez em quando uma flor da árvore. Era belo assistir as estrelas, era belo ver a humana e era bela a flor do bem e do mal que ele detinha em sua mão. Mas era Setembro e a primavera sempre teima em mudar as coisas belas.
E apesar de teimosa, Eva cansa e novamente se deita, agora notando a presença de seu espectador. Ela não se assusta, pois o demônio é atraente como todas as coisas más; e ela está só em meio ao campo florido e a noite.
– Lindas! Elas estão assim desde que as vi pela primeira vez... Imutáveis em seu bailado etéreo, no mais alto palácio do céu. Serei eu também assim um dia? Imutável como as estrelas? – Perguntou a mãe de toda humanidade.
– Imutáveis? – o demônio sorri, derramando lágrimas de sua taça. – Como pode ser imutável aquilo que brilha? Como pode ser imutável aquilo que queima sua própria essência? Como pode ser imutável aquilo que é força e combustão? Elas dançam no mais alto céu a espera de um colapso. A beleza nunca é permanente, minha cara. – Ele estende a mão que segura à flor em direção a jovem. – Toma, esta é a mais bela flor que você verá em sua curta vida. Ela é como você, jovem e virgem, só será entendida quando ela definhar e da sua morte surgir o suculento fruto.
– Sou também virgem e aceito a flor, mas não desejarei ver o fruto, pois ele é a descendência da flor, vinda de sua degeneração. – respondeu Eva, aceitando o presente demoníaco.
– O bem é belo, mas apenas o mal é atraente. Da atração daquilo que é belo vem à ciência daquilo que é, foi e será. O saber é a morte da inocência que teima em parecer infindável, mas nada Eva, nada é imutável e a primaveril ingenuidade um dia dará lugar a outonal decadência. – O demônio volta a fitar sua cheia taça e sorri com os segredos que apenas ele sabe. – O paraíso é a utopia humana e as estrelas são sua ilusão de permanência. Mas se é tudo tão feito de beleza, porque as estrelas choram e chove no paraíso?
Eva se cala.  Em parte deslumbrada com a beleza da flor, mas principalmente por não saber a resposta. E em sua duvida, ela sente o peso do desconhecido em seu peito e as lágrimas subirem a seus olhos e lá encontrar margem.
– Não, não chore ainda minha criança. – disse o demônio. – Não é a hora de se entristecer com a chuva ou com as estrelas que definham. Não é hora de chorar pelo seu trágico futuro. Haverá tempo, mas esta noite é primavera e o primeiro dia é sempre o mais belo. Aproveite, enquanto ainda não é inverno de novo.
– Mas... Mas elas são lindas e brilhantes. Elas parecem tão eternas aqui debaixo. Como diamantes incandescentes no alto do palácio celeste. Elas têm de serem eternas, elas precisam durar para sempre. Porque daqui elas parecem tão calmas, como esse paraíso.
O demônio sorriu antevendo o futuro. – Diamantes duram mais que os homens, mas não são eternos. Estrelas duram mais que diamantes, mas morrem. Porque apesar de parecerem brilhantes, belas e calmas. Dentro delas há o inicio de sua própria destruição. Cedo ou tarde, diamantes se tornam grafite e estrelas engolem tudo ao seu redor. E paraísos... bem... eu sei melhor que você mesma, sua natureza. Eu ajudei a cria-la.
A estrela mais velha assiste o desabrochar das flores e chora ouvindo as palavras do anjo. Ele a entende, pois também é fruto da decadência que a luz gera. Pois ele também flamejou acima de todas as coisas e apagou-se pelo seu próprio brilho. Ele a entende, pois também ri e chora ao conversar com a jovem. Ele a entende, pois é o principio da paixão e ela é a sua intensidade.
– A paixão é a mais brilhante chama existente. No éter ela brilha mais que Esperança ou Virtude e queima mais que a Fé. Porque paixão é desejo e nada é mais poderoso do que um coração que pulsa por algo. Nada se destrói com mais vivacidade, mas é a essa destruição que as coisas devem sua beleza. Nada que é paixão pode viver pra sempre. Mas de nada adianta viver eternamente, sem ao menos uma vez sentir a beleza, o calor que é ser intenso como chama e essa é inveja dos deuses. – disse Aster, para suas companheiras.
Seu brilho aumenta o ritmo frenético da dança fúnebre que de triste tem apenas as lágrimas que intermitentes alteram-se com risos. O fim é um começo e todos os começos um dia tem seu fim. Essa é a parte da Sonata Prima que cabe as estrelas. De sua explosão o fim, de seu fim, o começo, pois tudo foi estrela um dia. Tudo um dia, foi paixão.
– Eu tenho medo. – disse baixinho a moribunda.
– Você é o próprio desejo, como poderia não hesitar perante o fim? – Gritaram as outras.
– Eu sou paixão e todo meu bailar vem à espera de um colapso. Brilho mais que todas as estrelas do céu e morro.
– E eu também morrerei um dia. – respondeu o demônio a sua mais antiga mãe e amiga.
A taça encheu-se de lágrimas e pesou mais que a mão de seu dono. Cai a taça e o vidro estilhaça espalhando lágrimas ao vento que se forma. Lá do céu começa a tempestade.
Muitas são as flores que nascem e muitas são as flores que morrem. Eva sente-se triste e sozinha na solidão da chuva de Setembro. Seu coração morre e se estilhaça como cacos de cristal e diamante. Ela se segura na árvore do bem e do mal, pois não pode conter a tempestade.
O vento se torna mais forte à medida que a confusão aumenta. Em suas mãos a ciência do bem e do mal e a consciência do fim esmaga seu peito contra as inúmeras flores. Eva afoga-se em beleza, no meio do jardim, ela debate-se em flores. E em sua inocência, ela crê que está indo a um mundo de cores.
A noite torna-se dia no meio da noite. O céu brilha como nunca brilhou anteriormente, Eva deita-se arfando em meio a beleza e seus olhos cintilam com a imensidão do céu. Nem mesmo as flores podem ser tão bonitas, nem mesmo o bem e o mal podem ser tão atraentes.
O violeta se funde ao vermelho, ao verde, azul, amarelo e outras cores que não foram inventadas. E a intensidade a queima por dentro ao passo que nem mesmo o vento pode tira-la dali.
As palavras do demônio reverberam em sua cabeça e ela já não sabe se sua consciência é mesmo sua ou se pertence ao mundo.
Como pode ser belo aquilo que permanece? A beleza é a virtude daquilo que brilha e todo brilhar é o preludio de um caótico fim e no começo era o caos.
Lá no alto morre a anciã e lá em baixo queima-se de deslumbramento a donzela. O demônio, que é mãe de todos os prazeres e pai de todos os desenlaces, apenas assiste os olhos virginais de Eva brilhar com a luz da paixão. Ele já não pode sentir isso.
– Você já foi uma estrela, assim como eu e todas as coisas que compõe o universo e ele próprio já foi um astro que se incendiou em seu próprio esgotamento. A historia sempre se repete, mas ainda é belo assisti-la pelos olhos inocentes. Você é matéria de estrela, você é matéria de sonho. – O demônio assiste o último brilhar de Aster sumir, é tão lindo céu em supernova.
– E é tão triste o azul da noite quando ela passa... – respondeu Eva exausta após o incendiar de seu próprio coração.
Seus olhos fecharam-se no pranto e ela sentiu o frio do fim afoga-la no escurejar da noite, mas logo a estrela rainha ascendeu aos céus e o novo início veio ao seu encontro e ela estava num mundo além do dela.
Ela abre os olhos e percebe que o sonho acabou.
No meio do jardim, Eva conheceu Adão.