A Crônica dos Filhos
III
O corvo que restou do assassinato
Suas linhas eram uma estratégia
de batalha, finos traços como espadas, duras, frias e mortíferas. Suas curvas,
como arcos, disparavam desejos e caricias, mas eram somente uma armadilha para
sua boca de dentes afiados. Ela era toda uma arma poderosa e seu hálito
despertava os loucos dominadores. Sua voz era o exaltado som da tirania.
O rapaz de veias saltadas e olheiras
profundas tremia a cada toque dela. Cada parte de sua alma era corrompida pelo
desejo primitivo de domínio. Ele era um pouco de Stalin, Churchill ou Hitler,
um dominador nato que aprendeu nos campos do RPG como tomar cidades e mundos.
Seu jogo atual era a própria realidade, quando a deusa da guerra veio ter com
ele em sua cama.
Seus olhos exprimiam loucura,
rubros de cansaço, viravam-se nas órbitas num misto de prazer e dor que homem
algum jamais sentira. Temia a morte nos braços da Guerra, mas não podia conter
o ímpeto de desejar ter o mundo inteiro a seus pés, o mesmo mundo que o
rejeitou a vida toda.
— Em breve, meu pequeno, você
terá tudo que deseja. Eu abrirei as portas do inferno e criarei meu próprio
mundo dos mortos, aqui em
cima. Eu serei a rainha imortal de tudo que existe... e você
se tornará o meu primeiro rei.
—Minha rainha... — Debilitado ele
a encarava com fome, mas não a fome que um homem sente ao ver uma mulher. A
olhava como se ela fosse um reino a conquistar, um continente desconhecido e
cheio de riquezas, um universo outrora intangível. Seus olhos queimavam como se
ela fosse o próprio mundo que oferecia e em sua febre ele delirava, mesmo quase
morto pelo toque dela. — Porque não já começamos?
—Ainda não estamos na hora
correta, apenas na sexta hora desta noite, poderemos abrir os portais que ligam
os dois mundos. Mas não se preocupe, temos muito que fazer juntos até lá.
David tremia de excitação... e de
tipo de terror tão profundo, que apenas um homem ao chegar no reino mais
abismal de Hades poderia conhecer.
Reza a lenda, que ao fechar a
Caixa de Pandora, Epimeteu impedira que o maior de todos os males se
libertasse: o de conhecer o dia da própria morte. Para Pablo, a caixa abrira-se
completamente e o terrível dom da antecipação chegara-lhe aos ouvidos.
— Como é morrer?
—Eu não sei bem, só minha mãe
conhece todos os segredos dela. Geralmente, uns segundos antes de morrer vocês
entendem toda a conexão do universo com suas vidas, por um ínfimo segundo vocês
possuem todo o conhecimento que até os anjos desejam, mas então vocês morrem e
tudo deixa de fazer sentido.
— Eu não quero morrer, não quero
deixar meu irmão sozinho. Porque eu? Justo agora? Minha vida toda sempre foi
cheia de tragédias e justamente quando as coisas começam a melhorar, eu morro.
Isso não é justo. Não é justo que meu irmão fique sozinho.
— Porque era sua hora, mas você
ao menos a está aproveitando. Não se preocupe com seu irmão, eu cuido dele.
Miguel ficará em boas mãos.
— Você não vai ficar comigo depois
que eu...?
Azrael sorriu, mas por detrás de
seu sorriso havia uma tristeza que se refletia na chuva, no vento e em cada
coisa viva ao seu redor. O mundo inteiro era apenas um mero espelho de sua dor.
— Eu virei te buscar. Eu prometo.
— E depois?
—Depois você segue seu caminho e
eu não sei se te verei de novo. Você tem uma hora pra se despedir do seu irmão
e pegar o que precisar, em duas horas a noite estará pronta para abrir sua
porta.
— Espere. — Disse ele já saindo
em direção a casa. — Porque você me levou para o funeral da sua cunhada? Você
poderia ter falado com seu irmão sem mim.
— Porque eu queria que você visse
o mundo em que estava entrando. Você sabe que se desistir, ainda vai viver. Eu
queria que você tivesse a chance de desistir, se você me entende.
Pablo apenas sorriu e entrou.
Azrael não sabia se de fato ele voltaria, ou se simplesmente não conseguira
dizer adeus. Esperar sozinho no carro era a única coisa que ele podia fazer,
afinal, ele estava pedindo para um garoto que ele mal conhecia deixar a família
e correr em direção a uma missão suicida. Ele estava apenas pedindo pra alguém
destruir um anjo.
— Pronto. Eu trouxe a faca que
sua mãe me deu e uns casacos. Deve estar fazendo frio no sul, mas acho que isso
é tudo que eu vou precisar.
A faca de vidro cintilava, pronta
para matar qualquer um que ousasse chegar perto de seu afiado gume. Era uma
magnífica arma, mas que fazia Azrael tremer em repulsa.
—Cuidado. Eu não sei por que minha
mãe te deu essa faca, mas ela é realmente perigosa. Facas como essas mataram
outros deuses antes, destruíram civilizações, vidas e romperam o equilíbrio.
Então, não a segure como se ela fosse a coisa mais segura do mundo.
Nu, o jovem David tremia de frio
no centro do circulo de sangue. Sua pele branca reluzia sob a luz do crepúsculo
e contrastava com o vermelho sangüíneo que lhe escapava por entre as veias do
pulso. Ele estava morrendo e sua morte romperia as portas entre os dois mundos.
Girando em sentido horário, ele
reverenciava os cinco símbolos da morte e a cada um repetia os dizeres que
aprendera de Morrigan. Para ele, eram apenas sons vocálicos inexpressivos, mas
ela entendia bem a antiga língua da Suméria.
— Faca que corta os fios da vida, saúdo-te minha fiel amiga. Corte-me com
seu afiado gume e lança-me ao negrume. Diante da escuridão, eu volto dos
mortos. — ele disse ao primeiro símbolo.
— Ampulheta que marca as horas dessa
existência sofrida, pare de contar os segundos da minha vida, pois empresto os
meus anos aos finados, que se fundam novamente os ossos quebrados. Diante da
escuridão, eu chamo os mortos. — ao segundo. — Cinzas de um coração partido, voem no vento e se tornem o arauto da
morte, pois ao recitar o nome da trindade do destino, eu dito agora a minha
sorte, sou Clotho, e teço, sou Laquesis, e sorteio, sou Átropo e corto o fio
que me liga a esse mundo. Diante da escuridão, eu morro junto aos mortos. — disse
perante as cinzas do coração de sua mãe. — Romã,
fruta que cresce nos bosques do murmúrio, eu banqueteio juntos aos arautos do
mau augúrio, me faça um deles, me abra os portões, pois agora eu clamo sob os
nomes anciões. Yaveh, Izrail e Lúcifer. Diante da escuridão, eu como com os
mortos e me torno um deles. — ao terceiro. — Ankh, símbolo da vida eterna e da ressurreição, seja nossa luz e
nosso guia, como os deuses faraônicos rezaram diante de vós um dia: traga-nos
de volta da escuridão. Diante da escuridão, eu guio os mortos.
Então, após virar-se aos quatro
pontos cardeais, já a beira a morte, ele tomou a faca que havia sido o primeiro
símbolo e disse as palavras finais na língua mais antiga dos homens.
— Alma humana, sopro divino da mais elevada existência, chave dos reinos, eu a entrego nas mãos da
filha do abismo e da morte, daquela quem os anjos chamam Morrigan, o corvo. E
que de novo, aqueles que se foram caminhem pela terra. Diante da escuridão, eu
abro a porta e me liberto. — E cortou sua própria garganta em agonia.
Morrigan ria descontroladamente
vendo que seu pupilo conseguira sacrificar sua própria vida, para ter o que
desejava. Ela havia esperado uma era inteira, antes que pudesse evocar o seu
alto poder. Era chegado o seu momento e ela finalmente seria a herdeira de sua
mãe. Ela abriu os braços e libertou sua verdadeira imagem: um assassinato de
corvos, voando uns sobre os outros para comer a carne de David, o bando brigava
pelos olhos, uma iguaria para esses animais, quando Azrael e Pablo chegaram. Em
suas vozes pétreas eles cantavam uma desconhecida canção...
Um de nós busca a carcaça e dois
outros conduzem o deus caolho, uma trinca de corvos é uma deusa e em sua
justeza, o homem nos chama assassinato, são muitos de nós aqui nesse dia e para
aqueles que perderam na guerra o nato juízo, nós os conduzimos à morte, mas nunca
ao paraíso.
Os corvos desvaneceram em nevoa,
entrando pelas frestas do assoalho e abrindo as portas que trancam a escuridão
por debaixo da terra. O ranger dos portões telúricos assemelhavam-se aos
gemidos dos enfermos e ao último suspiro daqueles que sofrem dores de
metástase. A marcha dos mortos era de uma cadencia fúnebre, rítmica como um
coração moribundo, eles subiam por uma escada de mármore negro que se fez ao
redor do circulo.
— Rápido, chame-a pelo nome. —
Gritou Azrael para Pablo. — Você precisa invocar o verdadeiro nome dela. Seu
nome está na canção, é o coletivo de corvos, o nome que os homens lhe dão.
— Aqui neste momento, pelo vidro
tártaro em minha mão. Eu te invoco, Assassinato.
Do que restava na nevoa, ela
reapareceu. Seus olhos negros brilharam faiscantes e sorridentes, ela sabia que
nada poderia detê-la agora. Apenas sua morte traria os mortos de volta ao
tumulo e um mortal jamais conseguiria mata-la.
— O que você acha que está
fazendo? Me invocar na minha casa e apontar uma faca para mim... — Morrigan
sorriu como quem brinca com uma criança — Você é tolo se pensa que vai me
deter, mortal. Muitos tentaram me matar, mas ninguém é capaz de destruir a
guerra. Você é só um garoto tolo. Como acha que vai me parar sozinho?
De sua clavícula ela arrancou um
machado de guerra e lançou-se contra o garoto como um cavalo em disparada. Pablo
desviou debilmente como pode, mas ele percebia que por hora, Morrigan estava
apenas brincando com ele. Em vão, ele tentou estocar sua faca no peito dela,
mas ela desviava sua mão com golpes da parte lisa do machado.
A marcha dos mortos continuava
cadenciadamente, enquanto os gritos de lamento davam lugar a gritos de euforia,
ainda mais assustadores que os primeiros, ossos rangiam misturando-se ao som de
pele se desprendendo, um cheiro nauseabundo vertia do buraco no piso, dando
idéia das coisas putrefatas que escapariam por ali.
Azrael mantinha-se parado na
frente do buraco, pronto a enfrentar quaisquer criaturas que porventura
chegassem ao topo, mas sua atenção estava dividida entre seu posto e a luta que
Pablo travava contra sua irmã, o mortal estava perdendo e se mostrava cada vez
mais cansado.
Morrigan, no entanto, parecia
fatigada e sua dança com o garoto já dava sinais de perder a graça, sem mais
delongas, ela deu um golpe que o fez soltar a faca e lançou-se sobre ele,
prendendo o cabo do machado em sua garganta, e o erguendo contra a parede
alguns centímetros do chão.
— Como você está se sentindo?Cansado,
não? Azrael não pode me tocar, porque não se pode derramar sangue de família
sem pagar as conseqüências, sem subverter o nosso mundo em sangue e ferro. Você
está preparado para morrer em dor e sofrimento? Preparado para se afogar em seu
próprio sangue? — Ela perguntou em tom de escárnio. Seus olhos corvinais eram ainda
mais amedrontadores de perto, mas estranhamente Pablo sentia-se calmo, até
mesmo atrevido o suficiente para respondê-la.
— Eu sei quando eu vou morrer e
não vai ser assim. E não hoje. — Disse cuspindo sangue na face de sua inimiga, sufocando
em agonia, mas confiando em seu amado.
— E quem irá te salvar? Azrael
não pode se intrometer, porque senão eu quebro o seu pescoçinho e se ele me
matar, ele destrói tudo aquilo que ele mais preza, porque a Lei subverterá tudo
em Abismo. Nem
mesmo aquele que te deu a faca pode te salvar, agora. Eu serei a herdeira do
trono da morte!
Azrael observava descrente sua
irmã, o que ela estava dizendo parecia ainda mais insano do que todo seu plano.
Ela não poderia ser herdeira de nada, Izrail estava viva e reinava soberana no
Vale das Sombras.
— Você não pode se tornar a
herdeira do trono de nossa mãe, Morrigan. Ela ainda está viva. Lembra? — ele
disse, antevendo a resposta de sua irmã.
— Aquele mortal insolente que ela
colocou no lugar dela não é minha mãe! Ele pode ter todos os poderes dela, mas
pelo Estige! Pelo Abismo! Ele não tem o direito de se sentar no trono dela e
coabitar conosco. Felipe Casemiro não é um de nós!
Do buraco um cântico elevou-se
acima da marcha dos mortos. Uma canção de cores púrpuras e negras, uma canção
de fogo, ferro, lágrimas e sussurros que flutuava em nuvens densas, como a
chuva que se desprende da tristeza de um oráculo. E, ao lado de Azrael, Felipe
Casemiro surgiu, sorrindo com o maior dos escárnios perante aquela que evocava
seu nome pelo Estige e pelo Abismo.
—Então eu não sou a própria
morte? Eu não sou da família e, portanto eu posso derramar seu sangue, Morrigan.
Foi você mesma que acaba de dizer isso perante os deuses mais escuros. Agora,
você descobrir que não é tão fácil assim roubar o meu trono. — Com um aceno ele
lançou o machado dela ao outro lado da sala e deu dois passos em sua direção,
antes que a mesma se lançasse contra ele e parasse a sua frente.
— Se você pudesse me matar, já
teria feito. Apesar de suas palavras, minhas palavras não mudam o fato de que
você teme a Lei, como todos nós. E se me matar, arriscará todo o seu mundo.
Você não tem coragem de mover um músculo contra mim. Afinal, se o fizer, você
também estará morto.
— Eu não preciso mover nenhum
músculo contra você, filha. Tudo que eu preciso fazer é dizer uma palavra e
então você estará em Inexistência e seu nome será esquecido para sempre.
—Você arriscaria mesmo todo o
Vale das Sombras, por minha causa? Então diga essa palavra tão assustadora.
— Vire-se. — E ela se virou.
A faca enfiou-se inteiramente no
peito de Morrigan, e nem ao menos a mais vaga esperança de que o mundo fosse
destruído com sua morte lhe restou. Não fora Felipe que a matara, mas Pablo que
segurava firmemente a faca que perfurou o seu coração sombrio.
— Adeus, desgraçada. — Disse a
Morte. Morrigan fechou seus olhos e se dispersou em corvos que explodiram em areia
negra, unindo-se ao sangue no chão.
Os ventos anunciavam que a filha
mais nova da morte estava morta, enquanto um último de seus corvos empoleirou-se
no ombro de Felipe e se desfez.
A marcha cadenciada dos mortos
cessou, escandalizada. Aqueles que ainda tinham olhos voltaram-se a própria
Morte e tremeram. Os olhos de Felipe cintilavam azuis celestes, mais
fantasmagóricos do que costumavam ser. Ele soprou como quem sopra uma vela sem
importância.
E como os corvos, os mortos se
foram.
Nenhum comentário:
Postar um comentário