A Crônica dos Filhos
II
Cinzas
Funéreas
A alma de
Pablo era como uma cidade na ausência de um regente: caótica e a beira da
insanidade. Sentado na varanda, ele esperou pelo anjo que dera vida ao seu
irmão. Esperou até suas lembranças se tornarem parte de um sonho e até mesmo
ele questionar se de fato aquilo havia acontecido.
Havia.
Apesar do
verão inteiro ter passado e as últimas folhas do outono estarem prestes a cair,
para Morrigan era como se apenas um ou dois minutos houvessem transcorrido.
Para Azrael, o tempo era um mero detalhe que ele poderia ignorar, mas a
distancia que deveria manter do rapaz por quem se apaixonara não era ignorável.
Por isso, somente quando as duas últimas folhas do outono caíram, Azrael subiu
novamente os degraus que levavam a porta de Pablo.
As últimas
folhas de outono caíram e, no inicio do inverno, dois dos filhos da morte
começaram sua guerra. Nela, os primeiros bombardeios vieram na forma de duras
batidas na porta. Miguel atendeu.
— Você... —
Disse ele ao derrapar-se com o anjo a sua porta. — Eu sonhei com você.
— Espero que
tenha sido um bom sonho.
Não havia
sido. Miguel caia na escuridão enquanto todas as suas lembranças passavam
lentamente por ele. Fora um dos piores pesadelos de sua vida, pelo menos até
uma voz o chamar para longe do abismo e ele abrir os olhos. Agora, ele percebia
de quem era a voz. No fundo dos seus ossos, ele sabia quem era o rapaz a sua
porta.
— Eu cheguei a
pensar que Miguel estava certo e de que tudo fora apenas um sonho. Az... —
Pablo se encontrava atrás do irmão, quase tão estupefato quanto ele, mas por
detrás de sua expressão surpresa escondiam-se todos os fogos de ano novo.
— Arrume-se,
nós vamos a um funeral. — disse Azrael, frio como as pedras tumulares.
— Funeral, de
quem?
— Da única
pessoa que meu irmão amou em milhares de anos.
Havia duas
pessoas no salão de ébano e mármore. Uma possuía longos cabelos brancos e uma
face que demonstrava ter sido bela enquanto jovem, suas pálpebras fechadas
escondiam belos olhos castanhos arredondados e sua boca sorria como se
conhecesse um segredo sobre a vida. Ela conhecia vários, fora casada com um dos
filhos da morte por cinqüenta anos... e agora estava morta.
O rapaz ao seu lado tinha olhos
prateados como a luz da lua minguando e dotados de uma profundidade tão
singular que olha-los era como fitar o céu a noite, com apenas a lua brilhando
regia em sua abobada.
Seus lábios formavam um desenho
de tristeza, como se sempre estivessem dando beijos de adeus e sua face era
como se ele sempre estivesse de coração partido, mas era bela como se tocada
pela luz de algo acima de sois e cometas, mesclada com a escuridão dos bosques
mais antigos e fechados. Vê-lo era como olhar para o quadro de um talentoso
artista que morrera jovem e deixara apenas uma obra no mundo, aquela. Vê-lo era
como deseja-lo e saber que seu próximo beijo seria o último.
O rapaz que aparentava ter não
mais de dezesseis anos e que facilmente seria confundido com o filho mais novo
daquela mulher, fora seu marido e teria dado toda a eternidade a qual ele
estava destinado para morrer naquele momento. Mas sua mãe jamais o levaria e
Tertuniel estava fadado a continuar vivendo sem uma parte de si.
— Você deveria me levar, mãe. — A
Morte fora a primeira a chegar ao funeral, caminhando reticente temendo enfrentar
o próprio filho. Era duplamente difícil para ela.
— Não. Você jamais terá direito a
morrer e sabe disso. Você é inteira existência e quando fechar os olhos será
para deixar de existir, completamente. Eu não posso levá-lo porque simplesmente
você não pode ir aonde ela vai. Você sabe disso tão bem e até melhor do que eu.
— Ela olhava o filho como se conseguisse sentir toda a tristeza de seu luto em
sua própria respiração. Trajava um longo vestido negro que se confundia com seu
cabelo até os olhos e naquela hora, vê-la em todo aquele pesar era como cair
num poço profundo e jamais sair de lá.
— Se não como minha mãe, como a
própria morte. Que seja por vingança então, como Felipe você é as duas coisas,
não? Ainda existe uma gota de humanidade por trás desse coração de ferro? —
Agora, Morte se mostrava como um rapaz de traços delicados e ofídicos olhos
verdes profundamente amargurados pelo tempo. — Você por acaso esqueceu quem é,
Felipe? Você por acaso esqueceu o que eu fiz?
— Nós vamos nos ver de novo,
Tertuniel. Só você e eu, sem que eu seja também sua mãe e ai, somente ai, eu
terei minha vingança e você o seu desejo. Isso é uma promessa de oráculo. —
Disse Felipe antes de desvanecer e voltar a ter a aparência original com que
chegara ali. Novamente ele se mostrava como a impassível morte.
Seguido a ela vieram seus
vassalos e seus muitos mensageiros, tristes como se fosse um parente seu no
caixão. Ankou, que viera buscá-la era o que se mostrava mais perturbado,
emanando melancolia de seus olhos negros como o fim do universo.
Os penúltimos a chegar foram Pablo
e Azrael, adiantados apenas o suficiente para se deixarem olhar para trás e se
surpreender com a última convidada a comparecer ao salão.
— É estranho que alguém morra
antes de uma guerra começar e que os rivais se encontrem em paz, antes de
tentarem se matar. Não é irmão? — Morrigan falava cheia de si, como um senhor
que ganha o trono após uma longa batalha por um reino. — Eu entendo bem disso,
afinal, guerras são a minha especialidade.
— Cuidado irmã, você permanece
tão cheia de si que parece ter esquecido de como se portar em um funeral. Ah,
espere, havia me esquecido de que corvos comem os mortos. Você pode entender de
guerras e morte, mas não entende nada de luto ou rituais. Se continuar com esse
ar de superioridade e desdém, vai acabar fazendo nosso irmão tê-la como sua
inimiga. E você não vai querer Tertuniel como inimigo, ele é o desejo e você
deseja muito mais do que pode ter.
Morrigan tinha olhos de corvo,
profundos e negros. Afiado como ferro meteórico, seu olhar era penetrante como
uma dúzia de espadas a dilacerar a carne. Encara-la era como morrer na guerra.
Seus cabelos igualmente negros
estavam presos num rabo de cavalo, mas seu brilho lembrava milhares de agulhas
e seu toque sobre o ombro dela deixava um fino rastro de sangue que logo se
esvaia em sua tenra carne imortal, sua pele branca era gelada como aço, mas
seus seios eram quentes como um par de forjas e seu coração batia sob o som da
bigorna e martelo.
Seu rosto era serio como uma
estratégia, mas possuía uma beleza imperativa que lhe dava ares de rainha,
general e papisa, mas sem súditos, soldados ou cânticos seu rosto lhe dava uma
aparência faminta e desejosa. Seu semblante era insaciável como os soldados em
terra estrangeira e sua expressão gananciosa como os conquistadores da América.
Sua voz era como o som de bombas
atômicas distantes, capazes de ofuscar os discursos de Stalin, Churchil ou
Hittler; seus lábios, finos como navalhas a cortar gargantas, intensamente
vermelhos como o sangue dos inocentes e culpados mortos na penumbra em busca da
glória. Estavam sempre contraídos em
expressão séria e raramente sorriam, mas eram capazes de convencer até mesmo a
alma mais pacifica a matar seus irmãos. Ela raramente sorri, mas quando o faz
impérios caem, pessoas morrem e famílias
desmoronam. Seu sorriso era morte e ruína.
Um piano tocava embora não
pudesse ser visto e enlutados choravam diante da morte. A chuva caia
sonoramente em meio a gritos de desespero, enquanto os violinos anunciavam a
triste partida de uma pessoa amada. Ao longe alguém canta uma canção de dor e
desespero, bela como o por do sol, mas triste como as piores lembranças de uma
vida.
Ouviam-se todas essas coisas, mas
nenhuma delas de fato ocorria ali. Eram apenas lembranças de todos os funerais
que existiram e que ainda iriam existir. Todos começaram a cantar algo numa
língua que há muito foi esquecida pelos homens e pelos deuses, uma das três
coisas que apenas a morte se lembra.
Era somente uma canção fúnebre em
uma língua morta, mas Pablo não pode evitar fechar os olhos para contemplá-la e
derramar uma lágrima solitária em luto, enquanto mergulhava na tristeza de
todos os funerais da história.
A lágrima descia junto a musica,
suave e refletindo todo o pesar de todas as pessoas que perderam alguém. E
enquanto a gota precipitava-se no espaço vazio ao encontro do chão, a musica
deu lugar a um suave sopro morno que cheirava a brisa e especiarias.
Todos os outros convidados haviam
ido embora quando o jovem se permitiu abrir os olhos ao final da musica. Apenas
ele, a Morte e seus três filhos observavam o caixão se consumir em chamas
verdes e violáceas enquanto o grande salão era tomado pelo aroma de incensos e
especiarias, apenas o quinteto observou a fumaça se mesclar ao fogo e formar
uma mulher.
Seus traços eram joviais e sutis,
desenhado pelas mãos de fadas do açúcar, talvez por isso seus castanhos olhos
arredondados se mostravam doces e afáveis, ela lançou um sorriso ao seu marido
e lhe tocou a mão.
— Tertuniel, o que dizem as estrelas?
— ela perguntou, relembrando o passado.
— Elas dizem que eu te amo e irei
ao seu encontro em breve.
— Elas mentem, você me ama, mas
não pode vir ao meu encontro. Você é um anjo, não tem alma e essa é a última
vez que nos veremos. — ela sorriu tristemente. — Valeu a pena viver comigo?
— Cada dia com você valeu uma era
da minha vida. Adeus.
— Adeus. — Ela disse beijando-lhe
o rosto. E então se virou para Pablo e o encarou com um profundo pesar. — Você
é tão jovem, é uma pena que vá morrer tão cedo. Espero que pra você valha a
pena.
Num minuto ela estava lá e no
outro era como se nunca tivesse estado em lugar algum.
Morrigan se permitiu um sorriso
sombrio e triunfante. Sempre tivera repulsa da mulher mortal que seu irmão
tomara como esposa, mas em morte ela lhe dera uma noticia que muito lhe
alegrara: o rapaz morreria. Ela logo se viu o matando e conquistando o mundo
depois que a guerra tivesse tido vencida.
— Está vendo irmão? — Ela disse.
— Seu “guerreiro” vai morrer e ninguém precisa dizer quem o matará. Você
perderá a guerra e eu tomarei o mundo que me pertence com sangue, ferro, fogo e
lágrimas. Suas lágrimas desejosas de esperança. Lágrimas fúteis e sutis, a
espera de algo que nunca acontecerá.
— Se você espera continuar com
essa loucura, eu não terei outra escolha a não ser matá-la! Como você pode
achar que pode controlar o mundo, Morrigan? Corvos não constroem reinos, tudo
que eles fazem é comer olhos e cadáveres e no fim, morrem e são devorados uns
pelos outros. O que você pretende fazer é criar um reino de ossos e sangue!
— O que eu pretendo, é matar você
irmão e fazer da terra o meu próprio reino dos mortos, já que nossa mãe, ao
adormecer, deu um jeitinho de continuar entre nós no corpo desse daí. Eu quero
tudo, irmão. Tudo.
O semblante de Tertuniel era
sombrio e perigoso como às florestas do vale da morte, mas era a raiva demoníaca
que mais lhe saltava à face. Seu olhar prateado ganhava tons púrpuros e todo
seu corpo vertia o calor de mil campos infernais, ele era inteiro uma forja na
construção de uma espada. Ele era inteiro Hefesto construindo o apocalipse no
monte Etna.
— Minha esposa acaba de morrer e
vocês dois se esquadrinham em cima de um reino que não nos pertence! Eu quero
ambos fora daqui agora, ou... — sua fala foi interrompida pelo frio da espada
de Morrigan em sua garganta, mas nem mesmo o aço era capaz de conter toda fúria
do desejo. — eu mato os dois. — disse pausadamente numa ameaça velada.
O silencio imperou na sala por
alguns segundos, o suficiente para que todos se lembrassem da paz que deveria
haver durante um funeral. Com seu olhar perdido em lembranças vazias, a mãe dos
três presentes mandou sua filha mais nova embora.
— Se algum dos três quebrar a Paz
Funérea, eu mesma os levarei pessoalmente a Inexistência. E então, nunca mais
eu ouvirei Desejo, Ilusão ou Guerra brigando num funeral. Ninguém deve levantar
a espada durante um enterro, esta é a nossa principal lei. Morrigan, então eu lhe
peço que se retire, antes que eu mesma tenha que lhe retirar.
Nem mesmo Guerra objetou uma ordem
de sua mãe, apesar uma grande ofensa ter ficado em sua garganta, havia coisas
que nem mesmo ela poderia enfrentar, não ainda.
— Quanto a você, Pablo, eu já lhe
disse o que perguntar.
Árvores, céu, pássaros, vento,
pessoas. Nada tinha forma ou significado no caminho para casa. A pergunta
ficara entalada em sua garganta sem que Pablo tivesse a mínima coragem para
fazê-la, mas no fundo algo em sua alma gritava para que ele a fizesse.
Mas somente sua casa, sua cama e
algumas horas junto do anjo que o colocara nesta historia o fizeram ter a
coragem necessária para que ele conseguisse juntar as quatro palavras que
mudariam sua forma de ver as coisas e toda sua vida.
— Como eu vou morrer?
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