sábado, 30 de junho de 2012

Cinzas Funéreas


 A Crônica dos Filhos

II
Cinzas Funéreas

A alma de Pablo era como uma cidade na ausência de um regente: caótica e a beira da insanidade. Sentado na varanda, ele esperou pelo anjo que dera vida ao seu irmão. Esperou até suas lembranças se tornarem parte de um sonho e até mesmo ele questionar se de fato aquilo havia acontecido.
Havia.
Apesar do verão inteiro ter passado e as últimas folhas do outono estarem prestes a cair, para Morrigan era como se apenas um ou dois minutos houvessem transcorrido. Para Azrael, o tempo era um mero detalhe que ele poderia ignorar, mas a distancia que deveria manter do rapaz por quem se apaixonara não era ignorável. Por isso, somente quando as duas últimas folhas do outono caíram, Azrael subiu novamente os degraus que levavam a porta de Pablo.
As últimas folhas de outono caíram e, no inicio do inverno, dois dos filhos da morte começaram sua guerra. Nela, os primeiros bombardeios vieram na forma de duras batidas na porta. Miguel atendeu.
— Você... — Disse ele ao derrapar-se com o anjo a sua porta. — Eu sonhei com você.
— Espero que tenha sido um bom sonho.
Não havia sido. Miguel caia na escuridão enquanto todas as suas lembranças passavam lentamente por ele. Fora um dos piores pesadelos de sua vida, pelo menos até uma voz o chamar para longe do abismo e ele abrir os olhos. Agora, ele percebia de quem era a voz. No fundo dos seus ossos, ele sabia quem era o rapaz a sua porta.
— Eu cheguei a pensar que Miguel estava certo e de que tudo fora apenas um sonho. Az... — Pablo se encontrava atrás do irmão, quase tão estupefato quanto ele, mas por detrás de sua expressão surpresa escondiam-se todos os fogos de ano novo.
— Arrume-se, nós vamos a um funeral. — disse Azrael, frio como as pedras tumulares.
— Funeral, de quem?
— Da única pessoa que meu irmão amou em milhares de anos.

Havia duas pessoas no salão de ébano e mármore. Uma possuía longos cabelos brancos e uma face que demonstrava ter sido bela enquanto jovem, suas pálpebras fechadas escondiam belos olhos castanhos arredondados e sua boca sorria como se conhecesse um segredo sobre a vida. Ela conhecia vários, fora casada com um dos filhos da morte por cinqüenta anos... e agora estava morta.
O rapaz ao seu lado tinha olhos prateados como a luz da lua minguando e dotados de uma profundidade tão singular que olha-los era como fitar o céu a noite, com apenas a lua brilhando regia em sua abobada.
Seus lábios formavam um desenho de tristeza, como se sempre estivessem dando beijos de adeus e sua face era como se ele sempre estivesse de coração partido, mas era bela como se tocada pela luz de algo acima de sois e cometas, mesclada com a escuridão dos bosques mais antigos e fechados. Vê-lo era como olhar para o quadro de um talentoso artista que morrera jovem e deixara apenas uma obra no mundo, aquela. Vê-lo era como deseja-lo e saber que seu próximo beijo seria o último.
O rapaz que aparentava ter não mais de dezesseis anos e que facilmente seria confundido com o filho mais novo daquela mulher, fora seu marido e teria dado toda a eternidade a qual ele estava destinado para morrer naquele momento. Mas sua mãe jamais o levaria e Tertuniel estava fadado a continuar vivendo sem uma parte de si.
— Você deveria me levar, mãe. — A Morte fora a primeira a chegar ao funeral, caminhando reticente temendo enfrentar o próprio filho. Era duplamente difícil para ela.
— Não. Você jamais terá direito a morrer e sabe disso. Você é inteira existência e quando fechar os olhos será para deixar de existir, completamente. Eu não posso levá-lo porque simplesmente você não pode ir aonde ela vai. Você sabe disso tão bem e até melhor do que eu. — Ela olhava o filho como se conseguisse sentir toda a tristeza de seu luto em sua própria respiração. Trajava um longo vestido negro que se confundia com seu cabelo até os olhos e naquela hora, vê-la em todo aquele pesar era como cair num poço profundo e jamais sair de lá.
— Se não como minha mãe, como a própria morte. Que seja por vingança então, como Felipe você é as duas coisas, não? Ainda existe uma gota de humanidade por trás desse coração de ferro? — Agora, Morte se mostrava como um rapaz de traços delicados e ofídicos olhos verdes profundamente amargurados pelo tempo. — Você por acaso esqueceu quem é, Felipe? Você por acaso esqueceu o que eu fiz?
— Nós vamos nos ver de novo, Tertuniel. Só você e eu, sem que eu seja também sua mãe e ai, somente ai, eu terei minha vingança e você o seu desejo. Isso é uma promessa de oráculo. — Disse Felipe antes de desvanecer e voltar a ter a aparência original com que chegara ali. Novamente ele se mostrava como a impassível morte.
Seguido a ela vieram seus vassalos e seus muitos mensageiros, tristes como se fosse um parente seu no caixão. Ankou, que viera buscá-la era o que se mostrava mais perturbado, emanando melancolia de seus olhos negros como o fim do universo.
Os penúltimos a chegar foram Pablo e Azrael, adiantados apenas o suficiente para se deixarem olhar para trás e se surpreender com a última convidada a comparecer ao salão.
— É estranho que alguém morra antes de uma guerra começar e que os rivais se encontrem em paz, antes de tentarem se matar. Não é irmão? — Morrigan falava cheia de si, como um senhor que ganha o trono após uma longa batalha por um reino. — Eu entendo bem disso, afinal, guerras são a minha especialidade.
— Cuidado irmã, você permanece tão cheia de si que parece ter esquecido de como se portar em um funeral. Ah, espere, havia me esquecido de que corvos comem os mortos. Você pode entender de guerras e morte, mas não entende nada de luto ou rituais. Se continuar com esse ar de superioridade e desdém, vai acabar fazendo nosso irmão tê-la como sua inimiga. E você não vai querer Tertuniel como inimigo, ele é o desejo e você deseja muito mais do que pode ter.
Morrigan tinha olhos de corvo, profundos e negros. Afiado como ferro meteórico, seu olhar era penetrante como uma dúzia de espadas a dilacerar a carne. Encara-la era como morrer na guerra.
Seus cabelos igualmente negros estavam presos num rabo de cavalo, mas seu brilho lembrava milhares de agulhas e seu toque sobre o ombro dela deixava um fino rastro de sangue que logo se esvaia em sua tenra carne imortal, sua pele branca era gelada como aço, mas seus seios eram quentes como um par de forjas e seu coração batia sob o som da bigorna e martelo.
Seu rosto era serio como uma estratégia, mas possuía uma beleza imperativa que lhe dava ares de rainha, general e papisa, mas sem súditos, soldados ou cânticos seu rosto lhe dava uma aparência faminta e desejosa. Seu semblante era insaciável como os soldados em terra estrangeira e sua expressão gananciosa como os conquistadores da América.
Sua voz era como o som de bombas atômicas distantes, capazes de ofuscar os discursos de Stalin, Churchil ou Hittler; seus lábios, finos como navalhas a cortar gargantas, intensamente vermelhos como o sangue dos inocentes e culpados mortos na penumbra em busca da glória.  Estavam sempre contraídos em expressão séria e raramente sorriam, mas eram capazes de convencer até mesmo a alma mais pacifica a matar seus irmãos. Ela raramente sorri, mas quando o faz impérios caem,  pessoas morrem e famílias desmoronam. Seu sorriso era morte e ruína.

Um piano tocava embora não pudesse ser visto e enlutados choravam diante da morte. A chuva caia sonoramente em meio a gritos de desespero, enquanto os violinos anunciavam a triste partida de uma pessoa amada. Ao longe alguém canta uma canção de dor e desespero, bela como o por do sol, mas triste como as piores lembranças de uma vida.
Ouviam-se todas essas coisas, mas nenhuma delas de fato ocorria ali. Eram apenas lembranças de todos os funerais que existiram e que ainda iriam existir. Todos começaram a cantar algo numa língua que há muito foi esquecida pelos homens e pelos deuses, uma das três coisas que apenas a morte se lembra.
Era somente uma canção fúnebre em uma língua morta, mas Pablo não pode evitar fechar os olhos para contemplá-la e derramar uma lágrima solitária em luto, enquanto mergulhava na tristeza de todos os funerais da história.
A lágrima descia junto a musica, suave e refletindo todo o pesar de todas as pessoas que perderam alguém. E enquanto a gota precipitava-se no espaço vazio ao encontro do chão, a musica deu lugar a um suave sopro morno que cheirava a brisa e especiarias.
Todos os outros convidados haviam ido embora quando o jovem se permitiu abrir os olhos ao final da musica. Apenas ele, a Morte e seus três filhos observavam o caixão se consumir em chamas verdes e violáceas enquanto o grande salão era tomado pelo aroma de incensos e especiarias, apenas o quinteto observou a fumaça se mesclar ao fogo e formar uma mulher.
Seus traços eram joviais e sutis, desenhado pelas mãos de fadas do açúcar, talvez por isso seus castanhos olhos arredondados se mostravam doces e afáveis, ela lançou um sorriso ao seu marido e lhe tocou a mão.
— Tertuniel, o que dizem as estrelas? — ela perguntou, relembrando o passado.
— Elas dizem que eu te amo e irei ao seu encontro em breve.
— Elas mentem, você me ama, mas não pode vir ao meu encontro. Você é um anjo, não tem alma e essa é a última vez que nos veremos. — ela sorriu tristemente. — Valeu a pena viver comigo?
— Cada dia com você valeu uma era da minha vida. Adeus.
— Adeus. — Ela disse beijando-lhe o rosto. E então se virou para Pablo e o encarou com um profundo pesar. — Você é tão jovem, é uma pena que vá morrer tão cedo. Espero que pra você valha a pena.
Num minuto ela estava lá e no outro era como se nunca tivesse estado em lugar algum.

Morrigan se permitiu um sorriso sombrio e triunfante. Sempre tivera repulsa da mulher mortal que seu irmão tomara como esposa, mas em morte ela lhe dera uma noticia que muito lhe alegrara: o rapaz morreria. Ela logo se viu o matando e conquistando o mundo depois que a guerra tivesse tido vencida.
— Está vendo irmão? — Ela disse. — Seu “guerreiro” vai morrer e ninguém precisa dizer quem o matará. Você perderá a guerra e eu tomarei o mundo que me pertence com sangue, ferro, fogo e lágrimas. Suas lágrimas desejosas de esperança. Lágrimas fúteis e sutis, a espera de algo que nunca acontecerá.
— Se você espera continuar com essa loucura, eu não terei outra escolha a não ser matá-la! Como você pode achar que pode controlar o mundo, Morrigan? Corvos não constroem reinos, tudo que eles fazem é comer olhos e cadáveres e no fim, morrem e são devorados uns pelos outros. O que você pretende fazer é criar um reino de ossos e sangue!
— O que eu pretendo, é matar você irmão e fazer da terra o meu próprio reino dos mortos, já que nossa mãe, ao adormecer, deu um jeitinho de continuar entre nós no corpo desse daí. Eu quero tudo, irmão. Tudo.

O semblante de Tertuniel era sombrio e perigoso como às florestas do vale da morte, mas era a raiva demoníaca que mais lhe saltava à face. Seu olhar prateado ganhava tons púrpuros e todo seu corpo vertia o calor de mil campos infernais, ele era inteiro uma forja na construção de uma espada. Ele era inteiro Hefesto construindo o apocalipse no monte Etna.
— Minha esposa acaba de morrer e vocês dois se esquadrinham em cima de um reino que não nos pertence! Eu quero ambos fora daqui agora, ou... — sua fala foi interrompida pelo frio da espada de Morrigan em sua garganta, mas nem mesmo o aço era capaz de conter toda fúria do desejo. — eu mato os dois. — disse pausadamente numa ameaça velada.
O silencio imperou na sala por alguns segundos, o suficiente para que todos se lembrassem da paz que deveria haver durante um funeral. Com seu olhar perdido em lembranças vazias, a mãe dos três presentes mandou sua filha mais nova embora.
— Se algum dos três quebrar a Paz Funérea, eu mesma os levarei pessoalmente a Inexistência. E então, nunca mais eu ouvirei Desejo, Ilusão ou Guerra brigando num funeral. Ninguém deve levantar a espada durante um enterro, esta é a nossa principal lei. Morrigan, então eu lhe peço que se retire, antes que eu mesma tenha que lhe retirar.
Nem mesmo Guerra objetou uma ordem de sua mãe, apesar uma grande ofensa ter ficado em sua garganta, havia coisas que nem mesmo ela poderia enfrentar, não ainda.
— Quanto a você, Pablo, eu já lhe disse o que perguntar.

Árvores, céu, pássaros, vento, pessoas. Nada tinha forma ou significado no caminho para casa. A pergunta ficara entalada em sua garganta sem que Pablo tivesse a mínima coragem para fazê-la, mas no fundo algo em sua alma gritava para que ele a fizesse.
Mas somente sua casa, sua cama e algumas horas junto do anjo que o colocara nesta historia o fizeram ter a coragem necessária para que ele conseguisse juntar as quatro palavras que mudariam sua forma de ver as coisas e toda sua vida.
— Como eu vou morrer?

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