Tiamat
Os fragmentos do fim
Novamente
me encontro no centro de toda criação. Toco a árvore e sinto a pungência dos
quatro rios irromperem do meu mundo, sinto o clamor de tudo que eu criei e
choro por perceber o fim iminente de tudo que amei e lutei pela existência.
Eu
dei cada um dos passos que moveram à evolução das coisas, eu respirei o tempo e
expirei destinos. Minhas lágrimas foram o pranto das chuvas e meus sorrisos
foram os raios de sol que iluminaram minha criação.
Aqui
na epigenese de toda criação houve um tempo em que eu segurei meu mundo com
ambas as mãos, mas agora eu o deixo cair antes da ruína. Eis que espero que
ninguém perceba... eu os abandonei.
O
Deus
Lá
no alto do morro, em frente ao mar que recitava fortemente suas canções
ondulantes, nós sentimos o vento chegar e contemplamos o horizonte. A primeira
estrela logo sumiu diante do brilho retumbante do primeiro relâmpago. A
tempestade estava chegando e lá no infinito mar as pesadas nuvens se formavam.
Nos
demos as mãos, crianças com medo, enquanto o fogo elétrico cruzava os céus.
Sentimos o vento, fechamos os olhos e esperamos a chuva. De mãos dadas
esperamos a tempestade e o fim de todos os mundos.
O
homem
Eu
estava só no inicio, mas a multidão formou-se o meu redor incrédula. Juntos
assistimos o céu se tornar vermelho e o amanhecer de um sol a meia noite
despontar. A lua brilhava como uma safira.... ou como os olhos raivosos de uma
mulher.
O
cara me deixara plantada na rua, hoje ele está plantado em algum lugar no
cemitério São João Batista. Não importa, tudo isso já faz parte do passado e
meu coração ainda é cheio de outras tristezas.
Eu
cobrei o preço das minhas magoas com sangue, era hora do mundo cobrar o preço
dele.
A
prostituta
“Não resta
muito tempo e por isso eu estou aqui”, falei enquanto acendia mais um cigarro.
Estou apenas a espera que tudo acabe para me lançar de braços abertos pela
primeira janela em direção a liberdade.
Eu
tenho asas, mas é minha escolha cair.
O
Anjo da morte
Isso
foi há muito tempo e eu estou cansada. Deuses dizem que o mundo foi criado por
eles e homens choram romances perdidos. Prostitutas se arrependem e anjos abrem
mão daquilo que se chama esperança.
Eu
sou a devastação, o fim de todas as coisas e aquela que engole todas as
verdades. Eu sou o fim caótico de tudo que resta e a voz de todas as palavras
que se calaram quando Deus chamou pela luz.
Eu
sou o principio e o fim de todo o universo. A magoa, a tristeza, a suplica e a
aceitação. Eu sou Tiamat, a mãe de todos os dragões.
No
coração de todos eu acordo.
Tiamat
Havia
uma cartomante que todas as noites previa a mesma coisa. “O
seu tempo está acabando”, dizia ela. “Porque
você não vai atrás do amor da sua vida?”
Provavelmente eu era o único que sabia disso, assim como além dela, eu
era o único a saber que por detrás de suas palavras havia culpa. Havia a culpa
de não ter feito o que podia.
Num
carro, no outro quarteirão. Um garoto que estaria destinado a se tornar um
grande poeta escreve uma carta para o namorado. Eles seriam felizes juntos se o
tempo não estivesse acabando.
Nenhum
deles sabe disso. Eles fazem parte dos absortos que não observam a
incandescente lua rachar e revelar seu primordial segredo. Eu estou no alto do
mundo, acima da torre da igreja e posso ouvir a mente deles divagando sobre
como irão continuar suas vidas.
Se
o adolescente que planejava com seus amigos a festa que teriam a meia noite
soubesse que aqueles seriam seus últimos segundos ele os perderia em planos
efêmeros? Talvez.
Assim
como talvez a cartomante não se surpreendesse ao perceber que todas as cartas
de seu baralho estavam negras. “eu não sei o que está havendo.” Ela gritava. Mas ela sabia, no
fundo ela sabia que pela primeira vez sua previsão diária estava certa. O tempo
estava acabando.
Mas
nenhum deles sabia. Nenhum deles sabia até o exato momento do soar da primeira
trombeta, a primeira rachadura na lua. Então até mesmo eles juntaram-se à
multidão para assistir o magnifico espetáculo que era o fim de suas
existências. A lua vermelha como sangue e brilhante como aço fervente.
Uma
prostituta fumava calmamente seu cigarro, ela fora uma das primeiras a perceber
o fim, mas não se mostrava aflita. Ao contrario, aquele momento era para ela a
libertação. Ela matara o ex-namorado e agora estava livre do mal que sua
loucura causou. Logo estaria perto dele e o beijaria como sempre o beijou
depois das noites de amor. A morte é também uma forma de prazer.
E
eu? Eu estava cansado de ouvir vozes alheias em minha cabeça e já havia
decidido morrer antes da lua queimar em seu âmago. Eu estava ali no alto da
torre e me sentia livre das minhas magoas e culpas.
Como
um anjo eu estava leve e como um anjo eu tinha asas e não as usaria. E como um
anjo eu contemplava o céu que rubro denotava o fechar de todas as cortinas,
neste fim, lancei-me do alto da minha torre ao abrir as asas que deus me deu e
o mundo queimava sobre elas... e este mesmo mundo ruía sob meus pés.
No
fim, eu estava livre.
O
Oraculo
Se
eu pudesse parar o tempo, aquele exato momento seria um quadro, feito de fogo,
asas e rocha. Mas o tempo corre e os sons se assemelham a uma musica
apocalíptica. Um estrondo, o ruflar de asas metálicas e o bater uníssono do
coração de toda a humanidade.
Em outro dia, eu veria tais cenas na tela da
minha tv ou num palco do teatro, mas aquele espetáculo acontecia na minha
janela e dele eu fazia parte. Era noite, mas o céu brilhava como luzes de néon
alaranjadas.
A
lua chocara-se como um ovo e dela nasceu um anjo jeito de fogo. Naquele momento
eu pude deslumbrar um poema, mas faltaram-me palavras diante da imagem do tal
arcanjo flamejante.
Era
um dragão e era o maior de todos com os quais eu lutara em meus sonhos épicos.
E apesar de ter derrotado todas as minhas quimeras, aquele me mataria. Ali eu
não estava em meus sonhos..
“Meu nome é
Tiamat.” Disse o dragão que obviamente era uma mulher.
“Não tenham medo, eu vim apenas mata-los”.
Por
um momento toda a criatura viva na terra se calou e este segundo, este exato
segundo pareceu fluido e interminável. O vento interrompeu sua trajetória, as
árvores pararam de sussurrar umas para outras e não se ouvia nem mesmo o som de
um pensamento ocasional dos corvos que habitam as esquinas.
“Nunca mais!” Quebraram esses últimos
o silêncio. E fluido como gás, o tempo inflamou e pelas intermináveis horas que
se seguiram os gritos pareceram se unir num só. Como se toda terra gritasse seu
clamor no fim.
O
Artista
Eu estava só e ao meu redor a incandescência
provava minha solidão. O asfalto derretia sob os meus pés e a própria atmosfera
era composta de fogo. Sozinha, dancei ao redor das luzes. Eu era um ponto de
escuridão na terra em chamas.
Confortável
com o calor que lambia minha branca pele, despi-me e pela última vez ouvi os
sonoros lamentos que me vestiam. Caminhei descalça enquanto ocasionalmente me
lembrava das pessoas que outrora caminhavam naquela rua.
Um
pedaço de rocha lunar me fez lembrar então de quando ruas não existiam e de
quando a terra era ainda um pedaço de rocha fervente no frio universo. Foi ali
que Tiamat fora fecundada e seu ovo
elevou-se aos céus esperando seu momento. E em minha mão eu segurava um pedaço
deste ovo. A lua nunca mais seria vista rondando o céu.
Não
importava. Ninguém além de nos duas restava para contemplar as estrelas. Eu
permanecia só aguardando Tiamat vir ao meu encontro. Contudo, até mesmo ela
apreciava agarrar-se a rotina mesmo quando esta era despropositada.
Eu
não tinha pressa. Todos os relógios derreteram e não havia ninguém para contar
o tempo. Vi a noite passar e contemplei o nascer do sol pela última vez.
Calmamente assisti o rei dos astros traçar sua trajetória acima de minha
cabeça.
“Eu sou a
senhora desta terra e nada me detém em meu mundo, eu sou Tiamat.” Ela me disse com sua voz
autoritária e eu apenas sorri pela graça de sua juventude. No fundo, ela ainda
era uma criança cheia de certezas.
“Não há mais o seu mundo. Você o destruiu com sua caótica
existência e cumpriu os desígnios de seu propósito. Não há mais função em sua
vida, agora que não há mais nada para queimar.”
Ela
me olhou profundamente magoada e vociferou como faz uma criança que perde um
brinquedo importante. “Vá embora, me deixe sozinha. Eu ainda sou a rainha desse
mundo em ruínas.”
Não
objetei. Era meio dia e acima da minha cabeça brilhava a luz que iluminava o
palco desse espetáculo da vida. Mas a apresentação acabara e Aqueles
Que Nos Assistiam foram embora. Levantei minha mão e apaguei as luzes
daquele universo.
No
escuro eu me virei para ir embora, contudo, Tiamat ainda se agarrava à ruína
daquilo que conhecera. Por um momento, me virei para observá-la uma última vez
antes de também partir. Desolada, ela apenas perguntou quem eu era e eu a
respondi:
“Eu sou o seu propósito.”.
A
Morte
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