terça-feira, 12 de junho de 2012

Tiamat - Os fragmentos do fim


Tiamat
Os fragmentos do fim

Novamente me encontro no centro de toda criação. Toco a árvore e sinto a pungência dos quatro rios irromperem do meu mundo, sinto o clamor de tudo que eu criei e choro por perceber o fim iminente de tudo que amei e lutei pela existência.
Eu dei cada um dos passos que moveram à evolução das coisas, eu respirei o tempo e expirei destinos. Minhas lágrimas foram o pranto das chuvas e meus sorrisos foram os raios de sol que iluminaram minha criação.
Aqui na epigenese de toda criação houve um tempo em que eu segurei meu mundo com ambas as mãos, mas agora eu o deixo cair antes da ruína. Eis que espero que ninguém perceba... eu os abandonei.
O Deus

Lá no alto do morro, em frente ao mar que recitava fortemente suas canções ondulantes, nós sentimos o vento chegar e contemplamos o horizonte. A primeira estrela logo sumiu diante do brilho retumbante do primeiro relâmpago. A tempestade estava chegando e lá no infinito mar as pesadas nuvens se formavam.
Nos demos as mãos, crianças com medo, enquanto o fogo elétrico cruzava os céus. Sentimos o vento, fechamos os olhos e esperamos a chuva. De mãos dadas esperamos a tempestade e o fim de todos os mundos.
O homem

Eu estava só no inicio, mas a multidão formou-se o meu redor incrédula. Juntos assistimos o céu se tornar vermelho e o amanhecer de um sol a meia noite despontar. A lua brilhava como uma safira.... ou como os olhos raivosos de uma mulher.
O cara me deixara plantada na rua, hoje ele está plantado em algum lugar no cemitério São João Batista. Não importa, tudo isso já faz parte do passado e meu coração ainda é cheio de outras tristezas.
Eu cobrei o preço das minhas magoas com sangue, era hora do mundo cobrar o preço dele.
A prostituta

“Não resta muito tempo e por isso eu estou aqui”, falei enquanto acendia mais um cigarro. Estou apenas a espera que tudo acabe para me lançar de braços abertos pela primeira janela em direção a liberdade.
Eu tenho asas, mas é minha escolha cair.
O Anjo da morte

Isso foi há muito tempo e eu estou cansada. Deuses dizem que o mundo foi criado por eles e homens choram romances perdidos. Prostitutas se arrependem e anjos abrem mão daquilo que se chama esperança.
Eu sou a devastação, o fim de todas as coisas e aquela que engole todas as verdades. Eu sou o fim caótico de tudo que resta e a voz de todas as palavras que se calaram quando Deus chamou pela luz.
Eu sou o principio e o fim de todo o universo. A magoa, a tristeza, a suplica e a aceitação. Eu sou Tiamat, a mãe de todos os dragões.
No coração de todos eu acordo.
Tiamat

Havia uma cartomante que todas as noites previa a mesma coisa. “O seu tempo está acabando”, dizia ela. “Porque você não vai atrás do amor da sua vida?” Provavelmente eu era o único que sabia disso, assim como além dela, eu era o único a saber que por detrás de suas palavras havia culpa. Havia a culpa de não ter feito o que podia.
Num carro, no outro quarteirão. Um garoto que estaria destinado a se tornar um grande poeta escreve uma carta para o namorado. Eles seriam felizes juntos se o tempo não estivesse acabando.
Nenhum deles sabe disso. Eles fazem parte dos absortos que não observam a incandescente lua rachar e revelar seu primordial segredo. Eu estou no alto do mundo, acima da torre da igreja e posso ouvir a mente deles divagando sobre como irão continuar suas vidas.
Se o adolescente que planejava com seus amigos a festa que teriam a meia noite soubesse que aqueles seriam seus últimos segundos ele os perderia em planos efêmeros? Talvez.
Assim como talvez a cartomante não se surpreendesse ao perceber que todas as cartas de seu baralho estavam negras. “eu não sei o que está havendo.”  Ela gritava. Mas ela sabia, no fundo ela sabia que pela primeira vez sua previsão diária estava certa. O tempo estava acabando.
Mas nenhum deles sabia. Nenhum deles sabia até o exato momento do soar da primeira trombeta, a primeira rachadura na lua. Então até mesmo eles juntaram-se à multidão para assistir o magnifico espetáculo que era o fim de suas existências. A lua vermelha como sangue e brilhante como aço fervente.
Uma prostituta fumava calmamente seu cigarro, ela fora uma das primeiras a perceber o fim, mas não se mostrava aflita. Ao contrario, aquele momento era para ela a libertação. Ela matara o ex-namorado e agora estava livre do mal que sua loucura causou. Logo estaria perto dele e o beijaria como sempre o beijou depois das noites de amor. A morte é também uma forma de prazer.
E eu? Eu estava cansado de ouvir vozes alheias em minha cabeça e já havia decidido morrer antes da lua queimar em seu âmago. Eu estava ali no alto da torre e me sentia livre das minhas magoas e culpas.
Como um anjo eu estava leve e como um anjo eu tinha asas e não as usaria. E como um anjo eu contemplava o céu que rubro denotava o fechar de todas as cortinas, neste fim, lancei-me do alto da minha torre ao abrir as asas que deus me deu e o mundo queimava sobre elas... e este mesmo mundo ruía sob meus pés.
No fim, eu estava livre.
O Oraculo

Se eu pudesse parar o tempo, aquele exato momento seria um quadro, feito de fogo, asas e rocha. Mas o tempo corre e os sons se assemelham a uma musica apocalíptica. Um estrondo, o ruflar de asas metálicas e o bater uníssono do coração de toda a humanidade.
 Em outro dia, eu veria tais cenas na tela da minha tv ou num palco do teatro, mas aquele espetáculo acontecia na minha janela e dele eu fazia parte. Era noite, mas o céu brilhava como luzes de néon alaranjadas.
A lua chocara-se como um ovo e dela nasceu um anjo jeito de fogo. Naquele momento eu pude deslumbrar um poema, mas faltaram-me palavras diante da imagem do tal arcanjo flamejante.
Era um dragão e era o maior de todos com os quais eu lutara em meus sonhos épicos. E apesar de ter derrotado todas as minhas quimeras, aquele me mataria. Ali eu não estava em meus sonhos..
“Meu nome é Tiamat.”  Disse o dragão que obviamente era uma mulher. “Não tenham medo, eu vim apenas mata-los”.
Por um momento toda a criatura viva na terra se calou e este segundo, este exato segundo pareceu fluido e interminável. O vento interrompeu sua trajetória, as árvores pararam de sussurrar umas para outras e não se ouvia nem mesmo o som de um pensamento ocasional dos corvos que habitam as esquinas.
“Nunca mais!” Quebraram esses últimos o silêncio. E fluido como gás, o tempo inflamou e pelas intermináveis horas que se seguiram os gritos pareceram se unir num só. Como se toda terra gritasse seu clamor no fim.
O Artista

 Eu estava só e ao meu redor a incandescência provava minha solidão. O asfalto derretia sob os meus pés e a própria atmosfera era composta de fogo. Sozinha, dancei ao redor das luzes. Eu era um ponto de escuridão na terra em chamas.
Confortável com o calor que lambia minha branca pele, despi-me e pela última vez ouvi os sonoros lamentos que me vestiam. Caminhei descalça enquanto ocasionalmente me lembrava das pessoas que outrora caminhavam naquela rua.
Um pedaço de rocha lunar me fez lembrar então de quando ruas não existiam e de quando a terra era ainda um pedaço de rocha fervente no frio universo. Foi ali que  Tiamat fora fecundada e seu ovo elevou-se aos céus esperando seu momento. E em minha mão eu segurava um pedaço deste ovo. A lua nunca mais seria vista rondando o céu.
Não importava. Ninguém além de nos duas restava para contemplar as estrelas. Eu permanecia só aguardando Tiamat vir ao meu encontro. Contudo, até mesmo ela apreciava agarrar-se a rotina mesmo quando esta era despropositada.
Eu não tinha pressa. Todos os relógios derreteram e não havia ninguém para contar o tempo. Vi a noite passar e contemplei o nascer do sol pela última vez. Calmamente assisti o rei dos astros traçar sua trajetória acima de minha cabeça.
“Eu sou a senhora desta terra e nada me detém em meu mundo, eu sou Tiamat.” Ela me disse com sua voz autoritária e eu apenas sorri pela graça de sua juventude. No fundo, ela ainda era uma criança cheia de certezas.
“Não há mais o seu mundo. Você o destruiu com sua caótica existência e cumpriu os desígnios de seu propósito. Não há mais função em sua vida, agora que não há mais nada para queimar.”
Ela me olhou profundamente magoada e vociferou como faz uma criança que perde um brinquedo importante. “Vá embora, me deixe sozinha. Eu ainda sou a rainha desse mundo em ruínas.”
Não objetei. Era meio dia e acima da minha cabeça brilhava a luz que iluminava o palco desse espetáculo da vida. Mas a apresentação acabara e Aqueles Que Nos Assistiam foram embora. Levantei minha mão e apaguei as luzes daquele universo.
No escuro eu me virei para ir embora, contudo, Tiamat ainda se agarrava à ruína daquilo que conhecera. Por um momento, me virei para observá-la uma última vez antes de também partir. Desolada, ela apenas perguntou quem eu era e eu a respondi:
“Eu sou o seu propósito.”.
A Morte

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