segunda-feira, 4 de junho de 2012

Genesis


 Mr. Я God
II
Gênesis 

      No principio a terra era sem forma e vazia, havendo trevas de basalto sobre o chão de calcita, enquanto a face de Carlos pairava sobre a face de seu próprio sangue.
      Era simplesmente o caos de uma vida em meio à escuridão da morte, ainda não havia túnel, não havia morte, apenas a escuridão do sangue que se derramava mais e mais. Ali era o outro lado do abismo?
      Do outro lado das trevas, uma musica iniciou sua jornada até os ouvidos do moribundo, transformando tudo ao seu redor com seu refrão de Fiat e Verbum e a música disse: Que seja Luz e a luz foi feita.
      Em meio às trevas que se dissiparam, apesar de não conseguir abrir seus olhos, Carlos via-se num corredor cujas paredes eram uma serie espelhos. Aquele não era o túnel final, pois não havia luz nem à direita ou esquerda. Havia apenas o corredor, os espelhos e a total escuridão depois e antes destes.
      – Está na hora?! Já devo buscá-lo?
      Uma voz se espalhava entre os espelhos, seria a morte que pedia permissão a Deus? Não, aquela voz era bastante conhecida e maternal.
      – Não Erica, calma, hoje é apenas o primeiro dia dele. – Era seu pai e sua mãe apreensivos em casa no primeiro dia de escola. Mas Carlos não conseguia se lembrar quando fora a escola ou quantos anos tinha. Lembrava-se apenas do inicio, quando a luz se fez no corredor escuro...
      – É um menino. Parabéns! Seu filho nasceu forte e saudável. – Outra mulher falava diante do espelho, mas a ocasião parecia ser outra. Não havia mais primeiro dia de aula ou apreensão. Era apenas felicidade.
      Carlos se lembrava de ter estado ali antes, numa espécie de Deja Vú, fora antes de seu nascimento, antes de todas as coisas, antes do mundo surgir em seis dias, não era isso que o padre falava no espelho mais perto da borda do caos?
      – Deus creavit terra intra sex dies. – Deus criou a terra em seis dias. Essa era a frase favorita do Padre Santos, de sua eterna ladainha sobre o dies Dominicus, o dia do senhor, em suas missas de domingo.
Eram as lembranças vividas de Carlos que ganhavam vida junto à música inicial que ainda se desprendia da escuridão para se juntar com as canções humanas que se desprendiam do espelho.
Cazuza, Nando Reis, Pet Shop Boys, The Cranberries, ABBA, as bandas que marcaram a vida e a morte de Carlos cantavam em coro e uníssono as suas músicas que pareciam derivar da eufonia divina.
      – Não tem explicação... Deixe seu amor comigo, porque ele vem depressa e você não pode deixar de cair. Porque você não fica um minuto? – Todas as músicas se juntaram numa só e faziam parte do mesmo amor de Deus para com seus filhos e filhas, porque a Sonata Prima era o próprio criador, era a força motriz de todas as coisas na sala dos espelhos.
      Quantos outros mundos estavam sendo construídos naquele exato minuto? Quantos milhares de outros corpos estavam sendo afogados no próprio sangue vendo e ouvindo os sons da criação?
      – Ele ainda está vivo, chamem um médico. – De quando era aquela lembrança? Eram tantas que não havia como se lembrar, caíra e se machucara tantas vezes quando fora criança... Caíra e se machucara irrevogavelmente quando adulto.
      – Eu te amo Carlos... – Amanda falava devagar, menos que uma mera lembrança, menos até mesmo que o frio que energia do universo criacional. Porque o frio estava se expandindo?
      – Estamos o perdendo... – E no principio era o caos novamente e não havia mais espelhos, apenas a escuridão que comia suas carnes e sua alma. A música havia cessado.
      – Está na hora?! Já devo buscá-lo?
      Dessa vez não era sua mãe, era a sombra que vinha andando calmamente em sua direção. Imponente, gélida e inexorável, mas o invés de tocá-lo apenas aproximou-se e o observou por alguns minutos.
      Uma outra música recomeçara, um Réquiem de apenas um toque. Um tom monótono e sepulcral que fez a sombra sorrir e cantar junto a ele. Por fim, Carlos sentiu as mãos quentes e suadas da Dama o tocarem.
      – Ainda não Carlos... Só mais um pouco para a eternidade. Não corra tão depressa, pare de voar em minha direção. Eu sou o principio do Caos e ainda não é o momento de correr na direção do corredor. – A voz dela era ampla e de tão profunda parecia vir da própria alma do mundo, de onde os sonhos vêm, e foi essa voz que dissipou novamente as sombras e tornou o corredor iluminado novamente.
      – É um milagre. Como ele pode ainda estar vivo? – Diziam um por um dos doze espelhos e os rostos que eles refletiam sem que houvesse realmente alguém no corredor para ser refletido.
      – É um milagre. É um milagre, eles dizem. O que eles sabem sobre reais milagres? O que eles sabem sobre mim, sobre Ele ou Ela? Tão ínfimos em sua grandeza... coitadas almas humanas. –       Falava a Dama em seu monologo em direção ao Caos. Não parecia se dirigir a ninguém, apenas ao nada a sua frente. – Nos veremos de novo Carlos, infelizmente não tão breve e felizmente não tão brevemente.
      – Quem é você? – A voz trôpega de Carlos falava com dificuldade.
      – Oh! Ele está falando. Isso é um milagre! Já no terceiro dia... Como tão depressa, que recuperação... Milagre... Milagre... Milagre! – A Dama apenas sorriu ante a ladainha dos espelhos e partiu.
      – Não me deixe. – Tentou dizer, mas a voz que saia não era de si mesmo, mas de outro espelho que o simulava.
      – Eu tenho que deixa-lo. Eu nunca amei você Carlos e você nunca me entendeu. Você deveria entender que minha casa não é aqui. Eu estou indo embora e não há mais lugar na minha vida para você.
      – Eu te amo Amanda!
      A imagem do espelho se dissipou, não queria que a resposta dela fosse ouvida, ao contrário. O mais próximo respondeu em outro tempo.
      – Eu também te amo, Carlos.
      Luzes de flashes invadiram o Caos, Deus havia criado o céu, a lua e as estrelas no quarto dia e o vento invadiu o corredor como havia invadido o apartamento há dias atrás.
      Havia chuva novamente, quando as águas do firmamento foram separadas? Seriam as lágrimas das pessoas que choravam no enterro de seu pai? Ou no enterro de sua mãe? Seriam as lágrimas que caiam dos espelhos?
      – Pai amoroso. Mãe Zelosa.
      – Deus, porque me abandonaste? – O pequeno Carlos gritava.
      – Deus porque me abandonaste? – O Carlos adulto gritava.
      Ambos gritavam na chuva por terem perdido as pessoas que amavam. De formas diferentes, mas de qualquer forma perdido. Frente a frente, a criança e o adulto pareciam tão diferentes um do outro.
      Hora dentro, hora fora dos espelhos. Ambos os desgraçados encaravam-se temerosos. Se o menino é sempre o pai do homem, porque o pai sempre é tão diferente do filho? Porque o pequeno Carlos crescera para então só depois alçar vôo para o principio?
      Ele havia pousado no fim do mundo e estava ali enquanto a chuva varria todo o sangue e os espelhos gritavam sobre milagres e amores distantes. As lembranças do dia em que Deus fez o homem.
      Imagem e semelhança. As palavras surgiam dos espelhos como um mantra. Era a tarde do sexto dia e a mais alta criação divina surgira do barro no corredor. Homem e menino já faziam parte apenas das lembranças e das chuvas na vida de Carlos.
      – Ele não deveria estar pra sempre em coma? Em estado vegetativo pelo menos?
      Era um milagre, os espelhos repetiam, mas poucos deles podiam ser ouvidos agora, pois a Sonata Prima recomeçara com toda sua força para fechar o ciclo que iniciara.
      Em acordes tristes e melódicos, uma a uma das lembranças foram se dissipando. Não havia mais chuva, medo, vontade de voar, liberdade. A musica trouxera a paz e a alegria de volta a todas as coisas.
      A após a eternidade do último tom, fez-se o silêncio, quebrado apenas pela voz do último reflexo que desaparecia junto a todo o corredor e ao próprio Carlos.
      – Silêncio, é um milagre! Ele está acordando, depois de seis dias...
      E no sétimo dia, Ele descansou..

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