A Ciranda
Tão bela é aquela que rodopia na Praça da Milícia, majestosamente
sedutora sob mil formas de mulher. Tão bela é aquela por quem os homens se
apaixonam, a sedutora voz do pecado, tão bela é ela, que incita a cobiça, tão
cheia de vaidade que desperta inveja, arrogante em seu andar de bailarina,
Colombina.
Bebia sem parar e sem querer, o
doce Pierrot apaixonado. Não podia deixar de chorar por sua Colombina que
dançava na Praça da Milícia, de chorar e de recitar versos que aos ouvidos da
amada nunca chegariam por sua boca.
– Não fica ai chorando feito um
maricas desgarrado. Vá procurar outro rabo de saia que esta tal de Colombina
não te merece. Você merece moça menos faceira e enganosa, essa ai há de te
levar ao fim de tua sanidade, te aviso antes que sofra.– dizia a dona do bar em
que estava, no cruzamento principal da Esgar de Maio.
– Mas, eu já estou sofrendo... e ela é tão bela. Tão doce...
– E, no entanto, não te quer. Ela
não te tem amor e não quer saber de sonhar os seus sonhos românticos. Vá-te
daqui Pierrot, que tuas lágrimas deprimem meus ébrios clientes e teu dinheiro
não tem mais valor do que o de todos eles juntos.
– E o meu amor? Não vale mais do
que o de todos que lá na praça cantam para ela?
– E o teu amor, vale menos do que
o dos cães que ladram choramingando quando ela passa.
Condoído, cheio de magoa e de
coração partido, o Pierrot apaixonado desceu a Esgar de Maio em direção a saída
da cidade, de todo, não tinha mais forças para ficar olhando sua amada rodopiar
feliz entre os homens. Desistência era seu nome agora.
Caia, ébrio de tanta tristeza,
antes de chegar ao seu intento e via já no auge de sua decadência a doce
Colombina correr em sua direção.
– Quer um pedaço de sonho? –
oferecia ela o doce que acabara de comprar na padaria.
– Eu quero sim um pedaço dos seus
sonhos. – e a beijou ali mesmo, com seu cheiro malfadado de vinho.
A bela a qual ele cobiçava,
disparou-se a correr até a praça novamente, não queria um bêbado qualquer que a
desejara, queria dançar e ser admirada pelos homens a sua volta. Queria o mundo
inteiro a rodopiar a sua volta.
Triste e de coração ainda mais
partido, o Pierrot subiu o alto da Colina Melancólica e lá se afundou ainda
mais em pensamentos vãos, sonhando com o dia em que conseguiria o beijo recíproco
de sua amada.
Seu nome, em vão, ali era
esperança. E esta era verde como os campos da colina, em sua monotonia eterna
tão próxima à cidade colorida, onde em seu largo cantava o Poeta uma canção dos
Los Hermanos, em uma versão difusa e melancólica.
– ... e é sua sina chorar a
ilusão, em vão... – sorriu o Poeta ao receber uns trocados miúdos, ao
longo que os passos apressados e ensandecidos do Pierrot subiam novamente a
Esgar de Maio em direção ao bar.
Um pouco mais de vinho, uma dose
acobreada de rum, ele parecia beber para afogar as magoas, mas estas pareciam
revirar-se cada vez mais em seu estomago, cada vez mais em sua alma, até
fazê-lo ficar cego de desejo pela Colombina que dançava o ignorando.
Haviam tantos homens, mas ainda
assim o Pierrot não se enciumava, pois o coração de sua amada a todos retaliava
como um muro instransponível, não só para ele, mas para todos os tolos que a
cercavam feito moscas.
– Não te disses para parar de
chorar por causa dela? Ora que descabimento em pleno carnaval alguém chorar
assim pelo amor de alguém. – e deixou o radio a tocar Los Hermanos, como uma
alegre canção a desmanchar os sonhos do cliente assíduo.
– Deixa de espantar o coitado,
Dona Aletheia, o cara ainda vai é ultrapassar o Poeta se continuar a recitar
versos para aquela mulher linda que dança ali na praça. – Disse um jovem rapaz
que pouco havia bebido. – Bora irmão, recita ai alguma coisa bela para a tua
menina. – disse cheio de sua malicia o Arlequim.
Tão bela é aquela que rodopia na Praça da Milícia... , arrogante em seu
andar de bailarina, Colombina. Que em mim lança seu feitiço de luxuria, em sua
avareza que toda beleza guarda para si...
– Belo poema, meu amigo. – em seu
elogio havia uma gota de ironia e ao destilar seu veneno sobre o apaixonado,
pagou sua conta e saiu em direção a praça, dançando alegremente.
Rapazote bonito e dançarino nato,
o Arlequim logo ganhou a atenção da Colombina e em seus ouvidos alvos tratou de
lançar-lhe os poemas que do profundo coração do Pierrot brotaram feito rosas.
– Oh! Arlequim, como posso deixar
de me apaixonar por palavras tão doces... Pois bem, fica com esse beijo e nele
entrego meu coração a ti. – E ali, na Praça da Milícia o amor entre o Arlequim
e a Colombina iniciara-se.
O triste Pierrot já sem coração
se encontrava, de tanto doer-lhe o peito em magoa pelo amor perdido de sua
amada, parou de beber e arrastou-se em direção a sua casa, aonde em vão procurou
fugir das fofocas da cidade que logo anunciariam o namoro no festival
carnavalesco.
Pelo seu ímpeto em fugir, não
ouviu as vozes que lhe chegavam à porta e por isso a noite corria sem que o Pierrot
soubesse do plagio que sofrera em seus sentimentos. Já era tarde quando o ardil
lhe fora revelado. A noticia de que sua amada havia se apaixonado pelos seus
versos na boca do rival só chegara quando de toda sua bebedeira, apenas uma
leve dor de cabeça e uma profunda amargura lhe restavam.
Sentiu em sua dor de cotovelo
seus olhos revirarem-se nas órbitas. Ali ele se chamou Culpa e amaldiçoou sua
tolice, como uma inútil prova de amor.
Em seu medo de ser rejeitado pela
amada, entregara seus versos ao vento e o matreiro vento os entregara nas mãos
do não menos malicioso Arlequim.
Em prantos, o Pierrot se
desmanchou. Não podia suportar tamanha dor e gritou aos demônios e aos anjos,
aos céus junto aos infernos, mas não, nenhum destes dignou-se a responder-lhe
em seu desespero.
Quebrou copos, revirou gavetas e
chorou. Chorou no chão ao lançar a gaveta dos talheres à janela e esta se
espatifar como o coração do Pierrot. A luz da lua aproveitava a brecha aberta
para adentrar melancólica e doar ao apaixonado um fio prateado de esperança.
Mas os olhos sem rumo, cegos de
duvida, raiva e desespero, viram apenas o brilho frio e prateado de um intento
cruel.
– O queres? – Gritou aos ventos
desejando que suas palavras chegassem aos ouvidos de sua amada. – Ou queres a
todos? Eu te amaldiçôo beleza ingrata que repele quem mais te ama. E também te
amaldiçôo vil amigo que envenenou minha alma e roubou a dona de meu coração.
Respirou de maneira entrecortada
enquanto suas mãos ameaçavam inimigos invisíveis com a prateada faca.
– O queres? Então fica com ele
vil amada. Fica com ele ó adorada, devore-o com sua beleza e faça com ele o que
fizeste comigo, definha-o com seu brilho que a todos abocanha, o abandona a
própria sorte de sua sina desgarrada. Mata-o como tu fizeste comigo! Vil
senhora que anelo. – e dizendo isso encostou a faca aos pulsos, como quem se
mata. – Não. Ainda não é minha hora, antes de tirar-me o direito a vida, vou
dar-me o direito de vê-la uma vez última e, percebo agora, póstuma, posto que
já estou morto e sou apenas sombra que caminha.
Os passos desditosos do Pierrot o
levaram a agora em direção à vazia Praça da Milícia, onde apenas dois jovens se
encontravam a beijar-se com luxúria. Bem diante dos seus olhos reconheceu a sua
amada a esparramar sua pele alva na morena pele do amante.
Duas lágrimas desceram amargas e
venenosas, como quem foge antes do desastre e gritavam em meio a multidão de
vozes na mente do apaixonado, para que ele não desse ouvidos a sua própria
razão ensandecida.
– Tão bela é aquela que rodopia na Praça da Milícia, majestosamente
sedutora sob mil formas de mulher. – disse, aproximando-se mais do casal de
amantes que pararam alarmados para assistir seu triste fim. – Tão bela é aquela por quem os homens se apaixonam, a sedutora voz
do pecado, tão bela é ela, que incita a cobiça, tão cheia de vaidade que
desperta inveja, arrogante em seu andar de bailarina, Colombina. – e olhou
enternecido para aquela a quem desejava. Quase se arrependendo do ódio que
sentia. – Que em mim lança seu feitiço de
luxuria, em sua avareza que toda beleza guarda para si...
Virou-se então com a faca em
punho para o Arlequim e uma, duas, três vezes gritou de amargura e dor enquanto
dilacerava a carne do rival. Chorava e o perfurava quatro, cinco, seis vezes,
até os braços se cansarem. Não, ele não ia ficar com ela, ele nunca ia ficar
com ela. Sete, oito, nove, dez. Raiva, ódio, morte, fim.
– e em alva preguiça encosta tua mão naquele que é alvo de minha ira.
No ímpeto de sua raiva, agarrou a
amada a força e beijou com a boca molhada de lágrimas. O beijo dela era ainda
mais amargo e assustado do que antes e ele por fim corroeu-se completamente por
dentro sem mais perceber os sentimentos que vazavam pelos olhos dela.
– Eu te amava! Eu te adorava como
uma deusa! E você me renegou e preferiu este mentiroso que lançou a ti as
palavras do meu coração. – e o vermelho misturava-se ao prateado da faca,
manchando suas mãos com o sangue do rival. – Era para você ser minha, só minha!
Eu te amo.
Colombina, triste e desesperada,
apenas se lançou aos braços do amado buscando proteção nas mãos frias de Arlequim,
não havia mais vida nos braços que tanto desejava e tudo por conta do bêbado a
quem dera um sonho, mas não o sonho que ele desejava ter.
– Ai meu amor, ai meu amor, não
me diga assim... – cantou quase sem
voz em desespero. – Por favor, moço, me deixa ir e prantear a morte daquele a
quem amo...
– Você não precisa prantear-me,
porque eu estou aqui meu amor, eu estou aqui. Será que eu teria que me vestir
com luzes de néon para que tu me visses? Eu estou aqui a tua frente te
desejando. – Naquele momento, o nome do Pierrot tornou-se suplica,
humilhando-se com a faca em riste.
– Mas não é a ti que eu amo! Eu amo
Arlequim. Somente Arlequim.
Uma, duas, três vezes ela repetiu
enquanto o vermelho invadia seu vestido amarelo. Mais algumas vezes a dor
prateada a invadiu, mas já não havia mais contagem nos olhos ensandecidos do Pierrot,
era apenas o movimento repetitivo e enviesado do subir e descer da respiração
do outrora apaixonado.
– Arlequim... – ela falou
enquanto sua vida a abandonada.
Sozinho à luz da prateada lua, o Pierrot
que se chamava Ira tomou para si seu último nome, arrependimento. Sem entender
direito o movimento torpe de suas mãos, a prata manchou de vermelho os pulsos
trêmulos e ali mesmo, na Praça da Milícia, seu coração se desmanchou em sangue
na calçada, junto ao corpo da amada e seu amante.
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