Sob as encantadoras formas na voz do ser amado,
Tudo se torna trevas ou dor e até mesmo ambas,
Quando se jaz, em vão, apaixonado,
De ilusões tantas, já está morto
com seu coração amargurado.
Da solidão, do amor e de outros venenos
Era véspera de natal quando eu o
conheci, não havia neve sobre o chão, sinos, ou a espera na lareira por um pai
que nunca vem. Nunca houve presentes, nem janta, nem familiares, eu estava só e
naquela noite, eu estava ainda mais só.
Era triste ouvir sua voz
melodiosa brincar com meus sentimentos, era cruel perceber que pouco a pouco eu
estava interessada naquele sensível rapaz de olhos negros como a noite. Dia
após dia, eu me encantava mais por aquele que seria o apogeu de minha crescente
ruína.
Dia após dia meus olhos se
tornavam cada vez mais verdes e meus cabelos a cada momento ficavam mais
loiros, o passar do tempo era estranho para mim. Era como se tudo fosse parte
de um mero acaso temporal, como se nenhuma forma ordenada coordenasse o globo. Eu estava só no
mundo.
E veio o ano novo, apenas um
renascimento do antigo, mas o champanhe não fora aberto para macular o chão
negro com sua leve espuma branca, as taças que ousaram sobreviver a minha
última catástrofe estavam empoeiradas e nada no mundo me faria erguer-me para
limpa-los.
Nessa noite, ele estava lá, ao
lado da minha solidão, para atormentar-me o juízo com suas palavras rudemente
doces. Eu não o entendia, mas no fundo, minha alma ansiava por ele.
– Você não deveria sofrer assim.
Isso é ridículo! – ele dizia encolerizado com a minha depressão, mas logo sua
voz se enervava e ele acariciava minha face, dotado dos sentimentos mais
nobres. – Não... Não chore, não fica assim. Por favor, isso vai passar, sempre
passa. Supere. Apenas supere.
Mas eu não superava e, apesar de
sorrir, escondia-se em mim uma dor profunda, um vazio que tudo envenenava e
engolia. Aos poucos o que restava do meu corpo também me deixava e eu via o
mundo cada vez mais translúcido, cada vez de maneira mais estranha. Nem mesmo
eu estava lá.
Eu sentia medo de que ele me
deixasse ali para definhar e morrer. Mas o meu medo maior era dizer-lhe o
quanto ele era importante para mim. E pouco a pouco, cada vez que ele falava,
eu me enternecia mais com suas palavras e ele me tinha cada vez mais amizade.
– Eu escutei uma musica. Lembrei
de ti, ela é a sua cara. – e punha-se a tocar o violão e dedilhar suas
melodias. – Senhora encantada que se apóia nas paredes,
a vida é curta e a espera é longa... – e sorria ao me tirar da minha depressão para ouvir sua terna
voz. – É do Shamaan, um dia eu te trago o CD pra tu ouvir.
Mas ele nunca trouxe e eu
definhava cada dia mais. Não havia nada que pudesse me tirar daquele estado
torpe ao qual eu me encontrava. O Mal do Coração Partido já havia corroído
tanto a minha alma que pouco dela restava para amar.
Logo, eu percebi que ele se
cansaria de minhas tormentosas crises de tristeza e passei a fingir cada vez
mais alegria. Eu até teria saído verdadeiramente de minha terrível depressão se
o mal não houvesse cair em minha vida como uma serpente venenosa e pestilenta.
O mal em minha vida sempre teve
um nome, era um anjo em suas vestes rosa, era um demônio em sua astúcia eloqüente,
hora soprava aos meus ouvidos e hora atirava flechas em minha direção. Era
cruel e devasso o mal, seu nome era Amor.
Mas dessa vez não era sobre mim
que esse mal se abateria, Rafael, meu doce desassossego de todas as noites,
apaixonara-se perdidamente por uma moça da região, eu temi esse dia, mas ele
empurrou-se porta adentro no palácio do meu destino. Rafael estava apaixonado e
eu perdidamente morta por dentro.
De inicio, ele não deixou de vir
em minha casa. Era de todo meu amigo e confundiu erroneamente meu semblante
menos entristecido como a voz da cura, mas o meu rosto era iluminado não pela
melhora, mas pela voz do ciúme, da falta de eloqüência e de toda loucura que se
elevava em mim. O brilho efervescente em meu olhar era resultado apenas do
ódio. Apenas da raiva que queimava os restos sufocantes da minha alma e nada
mais.
– Sabe Anna, hoje eu estava na
praça com a Amelie. Nossa, ela é extremamente divertida e eu passei horas a
conversar com ela sobre muitas coisas. Temos gostos parecidos, eu e ela,
outrora viremos nós dois cantar para ti e assim tu a conhecerás. Tenho certeza
que muito te agradará ela. – Eu olhei de soslaio para a gaveta do meio em minha
cômoda, era onde eu guardava a arma que pertencera ao meu pai. – Você me parece
preocupada... você não está com... – ele sorriu. – Hora, você está com ciúme.
Meu desejo ali era pegar a arma,
desatar a correr por entre as ruas e encontrar a tal Amelie, mas meu bom senso
me impedia. O fundo da minha loucura ainda não havia chegado tão longe a ponto
de meu desejo ultrapassar a medida sutil dos sonhos. Ainda não.
Ele saiu rindo-se ao desmascarar
o sentido de meu sorriso. Ele havia descoberto meu choro secreto e percebia em
mim a musica que uma vez cantou. – Ah,
minha querida, ouça minha alma e cuida do meu choro. – ele saiu cantando porta afora.
E eu estava sozinha com meus
pensamentos. Ele se fora, deixando-me ainda mais sozinha do que eu jamais
estivera anteriormente. Antes, eu podia confusamente sonhar tudo que eu
desejava no mundo lá fora, agora, eu estava completamente só a espera de que
ele voltasse.
Mas ele pouco voltou, doía-lhe o
peito me ver definhar por sua causa e ele preferia a companhia de sua nova
amada, não podia culpa-lo, nem eu conseguia ver-me naquele estado torpe.
Em sua última visita, eu o
encarei como nunca antes o havia olhado e então... notei em seus olhos um lago
profundo de sentimentalismo escondido. Aqueles olhos... aqueles olhos ardiam em
minha alma e eu já não conseguia exercer controle sobre meus lábios que em vão
ensaiavam um sorriso.
Ele o ignorou completamente e
depositou flores amarelas ao lado de minha cama. Acaso eu era uma tia velha e
doente a quem ele ia visitar só por educação e bons modos? Acaso eu estava
velha e acabada? Não. Eu era ainda tão jovem quanto ele e tão bela quanto a
outra. Porque então ele não me amava como a amou?
– Porque? – meus lábios disseram
em um tom sussurrado. Mas já era tarde, ele saíra pela porta e não voltaria
mais, eu bem sabia.
Em minha esperança por vê-lo,
passei a espreitar a janela e lá estava ele toda tarde a se encontrar com ela.
Via nos olhos de ambos uma reciprocidade sem par e quando ele tornou-se ausente
até mesmo para ela, eu percebia nos gestos de cada um, as mensagens que
deixavam nas pedras.
O tempo passou-se devagar e eu
murchava como as rosas que ele passou a dar a ela com frequência. Suas visitas
rareavam a praça, era bem verdade, mas eu sabia que eles costumavam se
corresponder e passear por outros lugares. Eu sabia, porque os demônios da
neurose sussurravam em meus ouvidos.
Eu estava só. E meu olhar se voltava
sempre à janela, mesmo que no frio junho as pessoas pouco saíssem de sua casa.
Sem perceber, as paginas amareladas do calendário chegaram ao dia dos
namorados. A triste data que se mostrava para mim na janela.
– Eu lembrei de você todo esse
tempo. – Ele falou para Amelie. Eu podia quase ouvir sua voz sussurrada através
da leitura de lábios.
– Eu nunca esqueço de você – ela
respondia.
Era noite e uma fina neve caia ao
chão enfeitando a praça com sua imaculada face branca. A lua prateada, cheia,
como se dissesse estar alegre ao assistir os dois amantes, para mim mostrava
sua face fria e cheia de escarnio pela minha dor.
Um corvo e olhos negros me
observava do prédio ao lado e fitei demoradamente seus diminutos olhos
negros... olhos como os de Rafael... olhos como os olhos que eu desejava fitar
eternamente.
Levada pelo meu desespero, abri a
gaveta e retirei a arma. Uma bala, uma única bala para acabar com todo o amor
daqueles dois. Eu macularia de vermelho a neve branca.
Assim, mirei da janela os dois
que dançavam em meio a luz prateada e a felicidade. O casal se beijava, o corvo
me observava e a lua ria lá fora. Minha dor tremeu diante do ferro frio.
Eu precisava atirar, eu
precisava, mas, no entanto, me faltavam forças para tanto. Lentamente minha mão
arrastou-se em direção aos demônios neuróticos que gritavam aos meus ouvidos.
Eu estava só e sentia muito medo. Eu
ouvia o silencio da noite e tive ainda mais medo, enquanto até mesmo o corvo
pareceu calar-se e observar meus movimentos tristes.
Havia um silêncio terrível no ar.
Houve um estrondo terrível. O corvo voou, a lua manteve-se impassível e o casal
cessou seu rodopiar para olhar em direção a janela que antes me servia de
observatório. O silêncio imperou totalmente.
Ali, para onde eles olhavam, outrora eu
estava sozinha.
Agora, eu já não mais estava.
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