sábado, 30 de junho de 2012

Corações partidos e deuses mortos entre outras ilusões quebradas




A Crônica dos Filhos

I
Corações partidos e deuses mortos
entre outras ilusões quebradas

“Ele tem no máximo dois ou três dias de vida, eu sinto muito” Essa frase repetia-se melancolicamente nos ouvidos de Pablo cada vez que ele observava o semblante do irmão.
Miguel parecia estar dormindo, respirando levemente fazendo seu peito magro subir e descer em uma angustiante rotina. Era um garoto bonito com seus cabelos loiros encaracolados e sua macia pele branca, o queixo forte lembrava o do irmão, mas seu rosto possuía traços mais refinados, mais femininos de maneira a parecer o mais frágil dos garotos de 17 anos – era, estava morrendo.
Desespero era um eufemismo a quem pudesse ler o espírito de Pablo e nem mesmo desolação descreveria o completo estado que se escondia por trás daqueles olhos calmos e compreensivos. Seu estado era como o estado de Sodoma e Gomorra depois da total aniquilação: apenas um fantasma cinéreo num deserto gélido no auge do inverno nuclear.
Talvez por isso sua alma não fosse capaz de acender as verdes luzes da esperança ou o rubro brilho da ira desmedida contra o destino. Toda a sua mente era um completo silencio sideral e pela falta de apelos e lágrimas nenhum apelo chegou aos seres iluminados e nenhuma ajuda veio.
Por isso, ele pode ouvir o som dos carros chegando e os passos dos irmãos Shinigami. O ruído áspero de quando eles subiram o batente da porta e a atravessam ao mesmo tempo não o fez desviar o olhar da respiração efêmera de Miguel.
Sua apatia era tamanha que nem mesmo quando as mãos dos gêmeos arautos da morte tocaram seus ombros em condolência ele os olhou, mas agora seus ouvidos eram capazes de distinguir o som da areia escapando pelas beiradas da ampulheta que marcava o tempo de vida de seu irmão.
Ansatu, olhou a irmã com seus olhos negros como os rios do inferno e ela lhe sorriu triste, como os sorrisos de condescendência dos funerais. Estava na hora e eles deram o primeiro passo. Foi a primeira vez que Pablo desviou o olhar.
O estranho do lado de fora conseguia sentir cada gota de chuva individualmente caindo em seu corpo e embora seus passos fossem lentos e controlados, ele alcançaria quarto de Miguel antes que o segundo passo dos gêmeos chegasse ao chão, o tempo não era o mesmo para ele.
Ele abriu a porta, embora esta estivesse trancada, atravessou a sala e subiu as escadas percebendo as moléculas de poeira se desprendendo do chão. Embora não pudesse ver o olhar de dor, sofrimento e suplica que Pablo lançou aos gêmeos, ele podia senti-lo em nuances imperceptíveis até mesmo para os dois arautos, afinal ele era o filho mais velho da morte, seu herdeiro.
 Quando o segundo passo dos irmãos finalmente chegou ao chão, eles se viraram ao mesmo tempo perturbados, assustados, mas secretamente satisfeitos com o desenrolar dos fatos. Pablo, apesar de morto por dentro, não era capaz de perceber isso.
Vão — disse-lhes em sua própria língua. — Não é hora de vocês aqui, ainda.
Pablo virou-se ao perceber a ausência dos gêmeos e notar o jovem parado em frente a porta. Sua boca moveu-se em curta indagação, mas ele não conseguiu formular palavra alguma diante do ser a sua frente.
O que ele viu não pode ser traduzido em palavras. O filho da morte era a coisa mais bela que ele já vira, inumano, porém incrivelmente atraente. Seus olhos acinzentados como nuvens de chuvas em um funeral, sua pele branca como o mármore das lapides antigas e sua boca vermelha como o sangue de um assassinado eram uma descrição exata da palavra perfeição. Ele era toda a beleza na dor e no sofrimento encarnados num corpo humano.
— Eu sou Azrael. — falou o estranho com uma voz que traduzia o silencio do luto. — Posso ajudar seu irmão, se você quiser.
Pablo queria.
— Porque você faria isso? — Disse enquanto via Azrael sentasse a sua frente na cama.
— Porque como você eu tenho irmãos e não possuo outra família. Minha mãe dorme há muito e apesar de eu perceber muito dela em seu substituto, ele ainda não é ela inteira. E principalmente, eu tenho dois irmãos, como você, eu faria tudo por eles e estou ajudando você pela vida da minha irmã mais nova.
— Ela também está doente? — Perguntou Pablo quando percebeu a estupidez de sua pergunta. — Quero dizer... Ela está morrendo e você quer salvar a vida dela?
— Eu quero matá-la. — a expressão de choque no rosto de Pablo o fez rir por um momento, ela esquecia de como a morte era mal vista pelos mortais. — Minha irmã são três mulheres e ela é completamente instável, não é como se ela se ela tivesse algum transtorno de personalidade, ela é totalmente instável, seu corpo, sua personalidade, sua essência, tudo nela é inconstante como a vida humana. Talvez por isso ela tenha uma forte inclinação para a guerra.
— Mas porque você quer matá-la e porque meu irmão tem a ver com isso?
—Ela é a própria guerra. De vez em quando ela escolhe alguém cujo principal desejo é o poder. Ela gosta de caras assim e dá a eles a chance, a idéia e a força de concretizar seus desejos de guerra.  Dessa vez, ela vai passar do limite e usar o seu dom. Ela finalmente achou alguém sádico o suficiente para usá-lo, de novo.
— Dom?
— Minha mãe tem três filhos e cada um de nós tem , entre outros poderes, o dom de poder realizar algo para um humano, por um certo preço. A cada mil anos, eu posso conceder vida a alguém que esteja morrendo, contanto que alguém que ame essa pessoa esteja disposto a me dar o desejo que torna a vida possível. A qualquer hora que deseje, meu irmão Tertuniel pode, por um beijo, conceder um desejo de amor, apesar de ele sempre subverter isso em tragédia e minha irmã caçula, Morrigan, pode a cada era levantar o exercito daqueles que morreram em batalha ou desejosos de vingança e entrega-lo na mão de um general, de alguém louco o suficiente para morrer em agonia e ser seu amante enquanto o exercito durar. Ele sentirá toda a dor, todo o sofrimento, toda a agonia das guerras a cada vez que a beijar, mas ainda assim ele terá em mãos um poder inimaginável para um mortal. Eu vi isso acontecer no Egito, na era passada, e não havia tantos mortos quanto hoje naquela época. Foi horrível.
— E porque eu? Porque você me escolheu?
— Porque você aceitaria e porque eu sei que você conseguirá. Além disso, eu não gostaria de perder a oportunidade de provar do seu beijo antes que seu coração pare de bater.  Eu quero sua alma e você me dará em troca da vida de seu irmão, estou certo?
Azrael estava, mas algo dentro do coração de Pablo relutava em aceitar. Um pouco, porque sua alma relutava em ter esperança, em parte porque ele não sabia se conseguiria tocar a criatura sem ser sugada pelo campo atrativo dela, mas principalmente, ele não conseguia admitir para si mesmo que era justamente isso que ele queria. Tomar o anjo em sua cama e fazer o irmão levantar-se de sua cova iminente.
— Você está certo. — e antes que pudesse dizer outra palavra estava em sua cama, sob os fortes braços do filho da Morte.
Sua alma era como uma cidade em ruínas. Devastado pela perda de tudo o que mais amava. Sem luzes, numa eterna escuridão profana, sua alma era o inverno nuclear após a guerra. Silêncio, radioatividade e morte num cenário cinza. Mas aos poucos o tempo mudou sob o corpo de Azrael.
As mãos do amante separaram as nuvens enquanto rasgavam roupas em busca do pálido corpo de Pablo que correspondia freneticamente aos toques. De alguma forma, seus beijos limparam a poeira dos prédios que outrora existiam. Uma mordida e houve luz de um sol esverdeado de esperança. Um arrepio e de alguma forma as coisas voltaram a construírem-se. Ele sentiu a mão puxar o seu cabelo gentilmente enquanto algo úmido e quente trazia dor e prazer ao meio de suas pernas. Em movimentos rítmicos seu mundo passou de um deserto gélido a um projeto de cidade. Uma estocada e os prédios um a um foram construídos, outra e as praças mostravam-se verdes de novo e assim sucessivamente até a cidade conhecer uma chuva tão grande que não pode conter-se em sua alma e derramou-se pelo membro rijo de Pablo sob os lençóis. Ele revirou os olhos em êxtase e por um segundo pode vislumbrar a opulência de sua alma que agora era um império. E no meio de uma praça esverdeada, estava seu irmão correndo. Vivo, feliz e radiante. Contemplando a total satisfação e completude de sua alma, ele adormeceu em felicidade.

Seus passos são como o andar de um espírito efusivo, desenhando no chão e no ar a linha que fazem seus pés, porém seu caminhar é carregado de pesar, tristeza e luto. Seus olhos brilham verdes como a esperança e a inveja e seu olhar é como um último relâmpago em uma tempestade devastadora, trás medo e alivio. Sua boca possui lábios carnudos como o pecado. Ele caminha como um deus, ou a representação de um. Sua face é lívida e de uma beleza sem par até mesmo entre os anjos, ele é, porém, mais velho que estes apesar de sua aparente juventude. Ao vê-lo é impossível conter-se ao impulso de perguntar o seu nome: como todos o de sua espécie, ele tem vários. Mas seu nome, seu verdadeiro nome, é um mistério e ele só o diz apenas uma vez a cada pessoa.
Ouvir o nome dele é como ouvir todos os sons do universo em seus ouvidos e ver a face de todos os deuses brilhando frente aos seus olhos. É como sentir os sonhos de cada criatura viva em seu coração. Você ouve o nome o nome dele e entende a origem e o fins de todos os mundos, você entende o sentido de toda sua vida e então... irremediavelmente, você morre.
Ele abre uma porta que nunca existiu e caminha por um caminho inventado por ele. Sua presença é onírica e de fato é num sonho onde está agora. Neste sonho ele está sentado em frente à cama de Pablo. Neste sonho o sonhador acorda.
— Quem é você? — perguntou o sonhador.
— Eu sou a mãe de seu amante, de certa forma.
— Você é... Você é a Morte!? — mas para Pablo a resposta estava clara nos olhos do rapaz a sua frente, não havia mais nada que ele pudesse ser além da morte. — O que você está fazendo aqui?
O rapaz assentiu levemente em resposta a primeira pergunta, mas seu sorriso sumiu ao receber a segunda. Seu olhar tornou-se gélido como o ponto mais norte do ártico. Sua voz sussurrada parecia querer penetrar como uma faca no corpo esguio e nu de Pablo.
— Eu vim aqui saber por que seu irmão não está em meus domínios e depois que descobri eu vim ver pessoalmente o garoto que tomou o coração do meu filho e o fez usar o seu dom. Você deve se achar um deus da sedução, não Pablo? Afinal você conquistou o coração de um dos mais antigos anjos de antes de criação! E ainda conseguiu fazer com que seu irmão vivesse mais um punhado de anos. É... Ele vai viver, apesar de eu odiar que se metam em meus domínios. Eu sei que ele o ama, mas porque Azrael usou o dom dele com você?
— Ele quer que eu mate sua filha. — Pablo se sentiu incapaz de mentir diante da Morte.
—Como ele ousa?! Você é um mortal... mas sim... eu vejo que é esse o seu destino. Lutar contra Morrigan... Porque Az quer matá-la?
—Ela quer libertar um exercito zumbi ou algo assim... Ele quer impedi-la e acha que esse é o único jeito.
O sonhador viu os olhos da Morte literalmente lampejarem num fogo infernal. O ódio dentro daquele rapaz era devastador como a explosão de uma galáxia de estrelas gigantes, era intenso como a morte de um parente e, principalmente, assustador como um cemitério assombrado.
— Ela não ousaria fazer isso de novo... Não... Ela vai ousar. Sendo assim, meu bom rapaz, antes que você incomode o eterno sono de Izrail, aquela com quem divido a alma, eu vou lhe dar duas coisas. Uma faca capaz de matar um imortal e um aviso. — de suas vestes Morte puxou uma adaga.
A adaga era uma replica da lendária espada de Izrail, com uma lâmina feita de vidro escuro forjada no submundo capaz de destruir o espírito de um homem e subjugar a alma de um deus. Pablo segurou seu cabo de obsidiana e fitou maravilhado a arma que recebera. Morte virou-se para a porta que abrira no meio da parede.
— Espere! Você ainda não me deu o aviso. — Disse Pablo.
— Por um segundo, eu achei melhor não da-lo. — respondeu a morte sem olhar para seu interlocutor. — Se decidir continuar com isso e tentar matar minha filha, você morrerá mais cedo do que imagina. Se desistir, bem, seu irmão não irá morrer e nem você... por um bom tempo.
— Como eu vou morrer?
— Isso você terá que perguntar ao seu amante... se encontra-lo de novo.
Pablo acordou em seu quarto e não pode evitar não olhar ao seu redor a procura da Morte, mas não A encontrou e respirou aliviado ao perceber o sol entrando por sua janela. Por algum motivo, ele se sentia mais seguro a luz do dia, mas não deixou de se sobressaltar quando ouviu fortes passos passando vindos do corredor em direção ao seu quarto. Seus olhos não conteram a felicidade ao ver Miguel a sua frente.
— Você não vai acreditar, Pablo. Eu tive um sonho tão estranho...
Foi então que Pablo percebeu a ausência de mais um alguém no quarto. Ao seu lado na cama, onde devia estar Azrael, havia apenas uma estranha faca de vidro e obsidiana. Ele então fitou o irmão com uma dor tão intensa quanto a própria morte.
— Eu também... — ele disse — eu também estava sonhando.

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