A Crônica dos Filhos
I
Corações partidos e deuses mortos
entre outras ilusões quebradas
“Ele tem no máximo dois ou três dias de vida, eu sinto muito” Essa
frase repetia-se melancolicamente nos ouvidos de Pablo cada vez que ele
observava o semblante do irmão.
Miguel parecia estar dormindo,
respirando levemente fazendo seu peito magro subir e descer em uma angustiante
rotina. Era um garoto bonito com seus cabelos loiros encaracolados e sua macia
pele branca, o queixo forte lembrava o do irmão, mas seu rosto possuía traços
mais refinados, mais femininos de maneira a parecer o mais frágil dos garotos
de 17 anos – era, estava morrendo.
Desespero era um eufemismo a quem
pudesse ler o espírito de Pablo e nem mesmo desolação descreveria o completo
estado que se escondia por trás daqueles olhos calmos e compreensivos. Seu
estado era como o estado de Sodoma e Gomorra depois da total aniquilação:
apenas um fantasma cinéreo num deserto gélido no auge do inverno nuclear.
Talvez por isso sua alma não
fosse capaz de acender as verdes luzes da esperança ou o rubro brilho da ira
desmedida contra o destino. Toda a sua mente era um completo silencio sideral e
pela falta de apelos e lágrimas nenhum apelo chegou aos seres iluminados e
nenhuma ajuda veio.
Por isso, ele pode ouvir o som
dos carros chegando e os passos dos irmãos Shinigami. O ruído áspero de quando
eles subiram o batente da porta e a atravessam ao mesmo tempo não o fez desviar
o olhar da respiração efêmera de Miguel.
Sua apatia era tamanha que nem
mesmo quando as mãos dos gêmeos arautos da morte tocaram seus ombros em
condolência ele os olhou, mas agora seus ouvidos eram capazes de distinguir o
som da areia escapando pelas beiradas da ampulheta que marcava o tempo de vida
de seu irmão.
Ansatu, olhou
a irmã com seus olhos negros como os rios do inferno e ela lhe sorriu triste,
como os sorrisos de condescendência dos funerais. Estava na hora e eles deram o
primeiro passo. Foi a primeira vez que Pablo desviou o olhar.
O estranho do
lado de fora conseguia sentir cada gota de chuva individualmente caindo em seu
corpo e embora seus passos fossem lentos e controlados, ele alcançaria quarto
de Miguel antes que o segundo passo dos gêmeos chegasse ao chão, o tempo não
era o mesmo para ele.
Ele abriu a
porta, embora esta estivesse trancada, atravessou a sala e subiu as escadas
percebendo as moléculas de poeira se desprendendo do chão. Embora não pudesse
ver o olhar de dor, sofrimento e suplica que Pablo lançou aos gêmeos, ele podia
senti-lo em nuances imperceptíveis até mesmo para os dois arautos, afinal ele
era o filho mais velho da morte, seu herdeiro.
Quando o segundo passo dos irmãos finalmente
chegou ao chão, eles se viraram ao mesmo tempo perturbados, assustados, mas
secretamente satisfeitos com o desenrolar dos fatos. Pablo, apesar de morto por
dentro, não era capaz de perceber isso.
— Vão —
disse-lhes em sua própria língua. — Não é hora de vocês aqui, ainda.
Pablo virou-se
ao perceber a ausência dos gêmeos e notar o jovem parado em frente a porta. Sua
boca moveu-se em curta indagação, mas ele não conseguiu formular palavra alguma
diante do ser a sua frente.
O que ele viu
não pode ser traduzido em
palavras. O filho da morte era a coisa mais bela que ele já
vira, inumano, porém incrivelmente atraente. Seus olhos acinzentados como
nuvens de chuvas em um funeral, sua pele branca como o mármore das lapides
antigas e sua boca vermelha como o sangue de um assassinado eram uma descrição
exata da palavra perfeição. Ele era toda a beleza na dor e no sofrimento
encarnados num corpo humano.
— Eu sou
Azrael. — falou o estranho com uma voz que traduzia o silencio do luto. — Posso
ajudar seu irmão, se você quiser.
Pablo queria.
— Porque você
faria isso? — Disse enquanto via Azrael sentasse a sua frente na cama.
— Porque como
você eu tenho irmãos e não possuo outra família. Minha mãe dorme há muito e
apesar de eu perceber muito dela em seu substituto, ele ainda não é ela
inteira. E principalmente, eu tenho dois irmãos, como você, eu faria tudo por
eles e estou ajudando você pela vida da minha irmã mais nova.
— Ela também
está doente? — Perguntou Pablo quando percebeu a estupidez de sua pergunta. —
Quero dizer... Ela está morrendo e você quer salvar a vida dela?
— Eu quero
matá-la. — a expressão de choque no rosto de Pablo o fez rir por um momento,
ela esquecia de como a morte era mal vista pelos mortais. — Minha irmã são três
mulheres e ela é completamente instável, não é como se ela se ela tivesse algum
transtorno de personalidade, ela é totalmente instável, seu corpo, sua
personalidade, sua essência, tudo nela é inconstante como a vida humana. Talvez
por isso ela tenha uma forte inclinação para a guerra.
— Mas porque
você quer matá-la e porque meu irmão tem a ver com isso?
—Ela é a
própria guerra. De vez em quando ela escolhe alguém cujo principal desejo é o
poder. Ela gosta de caras assim e dá a eles a chance, a idéia e a força de
concretizar seus desejos de guerra. Dessa
vez, ela vai passar do limite e usar o seu dom. Ela finalmente achou alguém
sádico o suficiente para usá-lo, de novo.
— Dom?
— Minha mãe
tem três filhos e cada um de nós tem , entre outros poderes, o dom de poder
realizar algo para um humano, por um certo preço. A cada mil anos, eu posso
conceder vida a alguém que esteja morrendo, contanto que alguém que ame essa
pessoa esteja disposto a me dar o desejo que torna a vida possível. A qualquer
hora que deseje, meu irmão Tertuniel pode, por um beijo, conceder um desejo de
amor, apesar de ele sempre subverter isso em tragédia e minha irmã caçula,
Morrigan, pode a cada era levantar o exercito daqueles que morreram em batalha
ou desejosos de vingança e entrega-lo na mão de um general, de alguém louco o
suficiente para morrer em agonia e ser seu amante enquanto o exercito durar.
Ele sentirá toda a dor, todo o sofrimento, toda a agonia das guerras a cada vez
que a beijar, mas ainda assim ele terá em mãos um poder inimaginável para um
mortal. Eu vi isso acontecer no Egito, na era passada, e não havia tantos
mortos quanto hoje naquela época. Foi horrível.
— E porque eu?
Porque você me escolheu?
— Porque você
aceitaria e porque eu sei que você conseguirá. Além disso, eu não gostaria de
perder a oportunidade de provar do seu beijo antes que seu coração pare de
bater. Eu quero sua alma e você me dará
em troca da vida de seu irmão, estou certo?
Azrael estava,
mas algo dentro do coração de Pablo relutava em aceitar. Um pouco,
porque sua alma relutava em ter esperança, em parte porque ele não sabia se
conseguiria tocar a criatura sem ser sugada pelo campo atrativo dela, mas
principalmente, ele não conseguia admitir para si mesmo que era justamente isso
que ele queria. Tomar o anjo em sua cama e fazer o irmão levantar-se de sua
cova iminente.
— Você está
certo. — e antes que pudesse dizer outra palavra estava em sua cama, sob os
fortes braços do filho da Morte.
Sua alma era
como uma cidade em
ruínas. Devastado pela perda de tudo o que mais amava. Sem
luzes, numa eterna escuridão profana, sua alma era o inverno nuclear após a
guerra. Silêncio, radioatividade e morte num cenário cinza. Mas aos poucos o
tempo mudou sob o corpo de Azrael.
As mãos do
amante separaram as nuvens enquanto rasgavam roupas em busca do pálido corpo de
Pablo que correspondia freneticamente aos toques. De alguma forma, seus beijos
limparam a poeira dos prédios que outrora existiam. Uma mordida e houve luz de
um sol esverdeado de esperança. Um arrepio e de alguma forma as coisas voltaram
a construírem-se. Ele sentiu a mão puxar o seu cabelo gentilmente enquanto algo
úmido e quente trazia dor e prazer ao meio de suas pernas. Em movimentos
rítmicos seu mundo passou de um deserto gélido a um projeto de cidade. Uma
estocada e os prédios um a um foram construídos, outra e as praças mostravam-se
verdes de novo e assim sucessivamente até a cidade conhecer uma chuva tão
grande que não pode conter-se em sua alma e derramou-se pelo membro rijo de
Pablo sob os lençóis. Ele revirou os olhos em êxtase e por um segundo pode
vislumbrar a opulência de sua alma que agora era um império. E no meio de uma
praça esverdeada, estava seu irmão correndo. Vivo, feliz e radiante. Contemplando
a total satisfação e completude de sua alma, ele adormeceu em felicidade.
Seus passos
são como o andar de um espírito efusivo, desenhando no chão e no ar a linha que
fazem seus pés, porém seu caminhar é carregado de pesar, tristeza e luto. Seus
olhos brilham verdes como a esperança e a inveja e seu olhar é como um último
relâmpago em uma tempestade devastadora, trás medo e alivio. Sua boca possui
lábios carnudos como o pecado. Ele caminha como um deus, ou a representação de
um. Sua face é lívida e de uma beleza sem par até mesmo entre os anjos, ele é,
porém, mais velho que estes apesar de sua aparente juventude. Ao vê-lo é
impossível conter-se ao impulso de perguntar o seu nome: como todos o de sua
espécie, ele tem vários. Mas seu nome, seu verdadeiro nome, é um mistério e ele
só o diz apenas uma vez a cada pessoa.
Ouvir o nome
dele é como ouvir todos os sons do universo em seus ouvidos e ver a face de
todos os deuses brilhando frente aos seus olhos. É como sentir os sonhos de
cada criatura viva em seu coração. Você ouve o nome o nome dele e entende a
origem e o fins de todos os mundos, você entende o sentido de toda sua vida e então...
irremediavelmente, você morre.
Ele abre uma
porta que nunca existiu e caminha por um caminho inventado por ele. Sua
presença é onírica e de fato é num sonho onde está agora. Neste sonho ele está
sentado em frente à cama de Pablo. Neste sonho o sonhador acorda.
— Quem é você?
— perguntou o sonhador.
— Eu sou a mãe
de seu amante, de certa forma.
— Você é...
Você é a Morte!? — mas para Pablo a resposta estava clara nos olhos do rapaz a
sua frente, não havia mais nada que ele pudesse ser além da morte. — O que você
está fazendo aqui?
O rapaz
assentiu levemente em resposta a primeira pergunta, mas seu sorriso sumiu ao
receber a segunda. Seu olhar tornou-se gélido como o ponto mais norte do
ártico. Sua voz sussurrada parecia querer penetrar como uma faca no corpo
esguio e nu de Pablo.
— Eu vim aqui
saber por que seu irmão não está em meus domínios e depois que descobri eu vim
ver pessoalmente o garoto que tomou o coração do meu filho e o fez usar o seu
dom. Você deve se achar um deus da sedução, não Pablo? Afinal você conquistou o
coração de um dos mais antigos anjos de antes de criação! E ainda conseguiu
fazer com que seu irmão vivesse mais um punhado de anos. É... Ele vai viver,
apesar de eu odiar que se metam em meus domínios. Eu sei que ele o ama, mas
porque Azrael usou o dom dele com você?
— Ele quer que
eu mate sua filha. — Pablo se sentiu incapaz de mentir diante da Morte.
—Como ele
ousa?! Você é um mortal... mas sim... eu vejo que é esse o seu destino. Lutar
contra Morrigan... Porque Az quer matá-la?
—Ela quer
libertar um exercito zumbi ou algo assim... Ele quer impedi-la e acha que esse
é o único jeito.
O sonhador viu
os olhos da Morte literalmente lampejarem num fogo infernal. O ódio dentro
daquele rapaz era devastador como a explosão de uma galáxia de estrelas
gigantes, era intenso como a morte de um parente e, principalmente, assustador
como um cemitério assombrado.
— Ela não
ousaria fazer isso de novo... Não... Ela vai ousar. Sendo assim, meu bom rapaz,
antes que você incomode o eterno sono de Izrail, aquela com quem divido a alma,
eu vou lhe dar duas coisas. Uma faca capaz de matar um imortal e um aviso. — de
suas vestes Morte puxou uma adaga.
A adaga era
uma replica da lendária espada de Izrail, com uma lâmina feita de vidro escuro
forjada no submundo capaz de destruir o espírito de um homem e subjugar a alma
de um deus. Pablo segurou seu cabo de obsidiana e fitou maravilhado a arma que
recebera. Morte virou-se para a porta que abrira no meio da parede.
— Espere! Você
ainda não me deu o aviso. — Disse Pablo.
— Por um
segundo, eu achei melhor não da-lo. — respondeu a morte sem olhar para seu
interlocutor. — Se decidir continuar com isso e tentar matar minha filha, você
morrerá mais cedo do que imagina. Se desistir, bem, seu irmão não irá morrer e
nem você... por um bom tempo.
— Como eu vou
morrer?
— Isso você
terá que perguntar ao seu amante... se encontra-lo de novo.
Pablo acordou
em seu quarto e não pode evitar não olhar ao seu redor a procura da Morte, mas
não A encontrou e respirou aliviado ao perceber o sol entrando por sua janela.
Por algum motivo, ele se sentia mais seguro a luz do dia, mas não deixou de se
sobressaltar quando ouviu fortes passos passando vindos do corredor em direção
ao seu quarto. Seus olhos não conteram a felicidade ao ver Miguel a sua frente.
— Você não vai
acreditar, Pablo. Eu tive um sonho tão estranho...
Foi então que
Pablo percebeu a ausência de mais um alguém no quarto. Ao seu lado na cama,
onde devia estar Azrael, havia apenas uma estranha faca de vidro e obsidiana.
Ele então fitou o irmão com uma dor tão intensa quanto a própria morte.
— Eu também...
— ele disse — eu também estava sonhando.
Nenhum comentário:
Postar um comentário