A Crônica dos filhos
Epílogo
Parlamento de Gralhas
Tabula Rasa é um dos lugares mais
desolados de todo o Vale dos Mortos, aqui vivem as sombras daqueles que jamais
tiveram descanso e já não podiam mais viver como fantasmas no nosso lado. Todos
aqueles que os conheciam estavam mortos. Seus assuntos inacabados perderam o
sentido e eles foram condenados à eternidade vagando sem rumo pelo cemitério do
Vale. Eles esqueceram quem são, mas jamais esqueceram porque estão aqui.
Eles se assustaram com a rara
visão da Morte e seus dois filhos sendo trazidos a nascente do Estige pelo
barqueiro. Os senhores do reino raramente eram vistos naquele lugar esquecido.
E para muitos, era a primeira vez que o rosto da Morte lhes era mostrado em sua
própria pessoa.
No fim da quase interminável
necrópole há um grande portão de ébano e ferro, não é possível ver nada por
detrás de suas barras e ninguém, a não ser a soberana do Vale, jamais pisara
sob aquele chão. Nem mesmo seus filhos.
— Aqui é o fim da linha para
vocês, Azrael e Tertuniel. Daqui, eu sigo sozinha, pois sua irmã não merece
cortejo além de mim. Eu sou sua mãe e a mim cabe o fardo de enterrá-la.
—O que tem do outro lado?
— Nada. O puro e simples Nada.
Ela levantou sua mão e respirou
pausadamente enquanto as trancas abriam-se por sua ordem. Salve a deusa dos mortos, eles gemiam. Salve a senhora do abismo, eles gritavam. Salve a senhora dos mortos, eles choravam.
Mas mantenham eternamente luto, pois um imortal acaba de morrer. Assim,
eles se abriram.
Inexistência era o vazio depois
dos mundos, o escuro sob os pés, o abismo sobre a cabeça, nada havia depois do
portão, a não ser um grande monólito de mármore negro, que estranhamente conseguia
destoar de toda escuridão.
Em dourado, nomes brilhavam em
seu corpo, nomes esquecidos pelo tempo e pelo destino, aquilo era Inexistência
o último resquício dos deuses que já morreram. A última lembrança dos
esquecidos.
— Dê-nos um nome. Dê-nos o nome do deus esquecido. Dê-nos o nome do morto
e deixe que ele descanse em paz em seu esquecimento, agora que já não existe. O
que é imortal, não morre, mas deixa de existir, por toda eternidade e em todos
os mundos. Nós, a escuridão, exigimos um nome. — Disseram vozes distantes,
dentro da escuridão.
— Ela era o corvo que sobrevoava
a batalha, ela era a morte que presidia a guerra. Era a filha mais nova da
morte, conseqüência de seu envolvimento com o mais profundo dos abismos. Ela
era minha penitencia por matar a Harpia que guardava o poço, ela foi o meu
castigo por criar o meu reino. Ela era o meu reino, e agora que está morta,
caminhemos em tristeza. A
terceira filha da morte está morta e seu nome era Morrigan.
O anjo tocou o monólito de pedra e sentiu tudo
que Morrigan significava se esvair em dourado, no fim, tudo que restou de sua
filha e de seu desejo de poder, foi seu nome escrito naquela pedra.
Sem olhar para trás, foi embora e
os portões choraram uma última vez.
— Acabou. — Disse a Morte.
— Que ela descanse em paz. — Responderam
seus filhos.
Pela primeira vez, choveu no
Vale.
Chovia.
Não era aquela chuva costumeira
de tristeza e desilusão, não era mais disso a chuva banhando a cidade que era a
alma de Pablo. Neste dia chovia excitação e felicidade, enquanto os diminutos
habitantes de seu sonho percorriam felizes as ruas de nuvens e olhavam para
cima, esperando pacientemente o fim. Eles estavam felizes mesmo assim.
Pablo caminhava vagarosamente em
direção a sua casa, mas no fundo ainda possuía aquela vã esperança de
eternidade que tem todos os jovens. Mesmo sabendo de sua morte iminente, ele
achava que nunca ia morrer.
Enquanto ele caminhava, um homem
brigava com a esposa e juntava algumas latas de cerveja enquanto tentava ligar
o carro. Já estava na décima, quando finalmente o Fiat 2001 pegou.
Atrás de si, diminutos olhos o
observavam. Aves negras de todas as épocas do mundo, aquelas que tanto fizeram
historia e nunca são lembradas. Os corvos da torre de Londres, os corvinais
olhos de Odin, a mulher-corvo que casou com Adão, o corvo do mundo dos sonhos,
Nunca Mais e os tantos outros corvos que vieram de tão longe para assistir
Pablo em sua última caminhada.
Eles observavam enquanto ele
cantava. E no fundo, riam-se com suas vozes de pedras da ironia daquela canção.
“A partir deste ponto, é instintivo, até os labirintos de uma estrada,
a cada lugar contém um mapa de tudo, de tudo! Evidências, na marcha de uma
formiga, no pulso do oceano.” A Crow left of the murder, o corvo que restou
do assassinato, da banda Incubus, tocava em sua voz inadvertidamente. Ele
cantava a musica certa para o seu momento, mas não conseguia ver isso.
O homem chorava. Correndo em direção a lugar nenhum ele dirigia
perigosamente. No fundo, ele queria morrer. No fundo, ele queria matar
alguém... um alguém que era sua esposa.
Pablo sentiu os pelos de seu
pescoço eriçarem, pela primeira vez em sua caminhada ele percebeu que estava
sendo observado e tremia. Caminhou um pouco mais apressadamente, imaginando
ouvir os sussurros de uma historia. Mas não entendia os fragmentos.
Naquele momento ele temeu por sua
vida.
No meio da estrada, um corvo
morto retorcia-se a beira da morte e isso fez o garoto parar. O corvo falava em
sons pétreos, mas ele repetia apenas uma frase.
Eu contei minha historia — ele
dizia. Aquilo deixou Pablo em choque.
Ele parou de cantar, olhando ao
redor sem entender se aquilo era um sinal ou um mero acaso. Ele teve o ímpeto
de perguntar qual era o nome daquele corvo, mas ele parou percebendo como
aquilo seria demasiado tolo.
Aquilo o fez refletir sobre matar
Morrigan. Aquele corvo de olhos vazados e agonizante o fez parar para perceber
que talvez ele só tenha nascido para aquele momento e que tudo em sua vida o
voltou para aquele milésimo de segundo. Para o momento em que ele parou no meio
da rua e percebeu coisas sobre os corvos que nunca antes havia pensando
Coisas sobre ele mesmo que antes
esquecera.
Um carro vinha na estrada e
dobrou rapidamente a esquina. Pablo teria sido atropelado se não tivesse jogado
seu corpo para trás e escapado com vida daquilo que seria um trágico acidente.
Por um segundo, ele respirou aliviado e assistiu a revoada de corvos tomarem o
céu.
Eles gritavam em pavorosa
cadencia: Aquele é o corvo que restou do
assassinato, ele nos contou sua historia e agora morrerá. E alguns gritavam
ainda mais tormentosamente: Pablo, Pablo, Pablo.
O garoto caminhou perseguindo os
corvos rua abaixo. Eles gritavam seu nome e repetiam sempre à mesma frase, mas
na cabeça dele era como se eles falassem coisas que nunca saberia se não os
seguisse.
Alguns corvos se perdiam do
bando, quebravam suas asas e caiam alquebrados ao chão, gritando ainda as
mesmas frases. Pablo parou e todos eles empoleiraram-se na porta de sua casa.
Alguns passos o distanciavam de Miguel, uma dezena de passos e mil corvos
olhando em sua direção.
Então, dessa vez numa voz
melodiosa, sem aquele costumeiro clac de pedras batendo umas contras outras,
eles disseram um nome e então tudo que Pablo conhecia sobre a vida mudou.
Ouvir aquele
nome era como ouvir todos os sons do universo e ver a face de todos os deuses
brilhando frente aos olhos. Era como sentir os sonhos de cada criatura viva no
coração. Ele sentiu-se flutuar no tempo.
O homem dirigiu o mais rápido que pode e
fechou os olhos. Rezou intimamente pela paz e para que nunca mais brigasse com
sua esposa de novo. Era tarde demais, entretanto. E ele não viu o rapaz a sua
frente que caiu desmaiado a porta de casa. E nem viu a arvore em que bateu. Era
tarde demais para qualquer arrependimento. Ele estava morto e o garoto
respirando lentamente.
Pablo abriu os
olhos com sofreguidão e pouco ouviu dos gritos do irmão que o via cair. Tudo
que ele via era o olhar dos corvos e som cadente do Nome, naquele momento ele
entendeu seu lugar no universo e tudo que o trouxera até aquele lugar através
de todas as coincidências.
Ele entendeu a
rota das estrelas, a ascensão e o declínio de todos os deuses deste mundo. E
então, seus olhos se fecharam e ele estava morto.
Do que havia do outro lado, só os corvos
sabem.
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