A Canção dos Afogados
Esta canção é a voz melodiosa
da sirena,
Tornando o mais valente
homem um dominado,
Sob as águas
potiguares, a escuridão é amena
No frio rosto do
afogado.
A densa floresta amazônica trazia
em si a egregora do medo aos olhos da jovem índia, em busca da beira do lago
mais doce ela caminhava para usar magias proibidas roubadas do pajé. Magias de
amor e sedução, capazes de levar os homens a loucura.
Iara ainda era jovem, seus
cabelos negros como a noite coroavam a pele morena de índia faceira, seus olhos
belos e negros eram como noites no principio dos tempos, antes de Ceci se
levantar no alto do céu.
No lago ela iniciou seu cântico
sombrio, traduzindo lendas anteriores ao nome de Tupã, evocando energias
ancestrais, que fariam até mesmo Anhangá, a alma velha, tremer diante da magia.
Ceci reluzia diante do lago, o
dotando de uma forma fantasmagórica que se acentuou quando a fina chuva iniciou
seu curso em direção ao chão. Ali, diante do lago, Iara concretizava seu
desejo.
De olhos fechados, ela evocava em
si o escuro do céu, para que sua pele morena brilhasse como as almas dos
guerreiros que impassíveis viviam nos céus de Tupã. O assobio do vento por
sobre as copas das árvores a fez tremer nua diante do cerne da própria magia.
– Que desejas tu, filha da mata?—perguntou a Deusa Inominada. Mais
antiga que o próprio tempo e os próprios deuses a quem o pajé temia.
– Eu desejo ter Yasã, o filho do
cacique, o mais belo dos mais belos homens que já passou pela tribo. Valoroso
guerreiro, mas que deseja desposar Ariê, minha irmã. Eu sou mais bela do que
minha rival e desejo ser ainda mais bela e ainda mais irresistível do que todas
as mulheres da tribo unidas numa só canção.
– Do enlaço entre Yasã e Ariê virá o futuro da tribo, valorosos
guerreiros que guiarão a todos para anos de prosperidade e gloria. Teu destino
não é se enlaçar com esse bravo guerreiro, mas unir seu destino a Cauã, o
futuro pajé.
Cauã que observava na chuva a
cena, não pode deixar de ouvir o comentário da Criatura sobre a sua futura
união com Iara. Um longo sorriso surgiu em sua face, pois ele tinha grande
apresso pela moça, que em sua opinião era a melhor esposa que um guerreiro da tribo
podia possuir. Mas seu sorriso logo se desfez com a resposta furiosa da moça.
– Cauã? Aquele fraco? –
desatou-se a rir em demasiado divertimento cruel. – Cauã não passa de um
arremedo de guerreiro. Nunca, nem diante dos próprios raios de Tupã eu me juntaria
a aquele curumim, pois pra mim ele não passa de um infante em corpo de homem.
– Ainda assim, sabendo que o futuro de sua irmã está junto ao futuro de
sua tribo, você diz que prefere negar-se ao seu destino para usurpar o dela? Se
fizeres isso estará pondo em risco a própria existência de sua tribo.
– Ainda assim eu o quero. Ainda
assim eu desejo ser irresistível. Faça-me a mulher mais irresistível de toda a
tribo, de fato, faça-me a mulher mais bela de todas as tribos. Eu arcarei com
as consequências de meus atos.
– Não posso fazê-lo apaixonar-se por você. Mas te digo que todo o homem a
desejará assim que ouvir sua melodiosa voz. Teu canto enfeitiçará todos os
homens, assim como seu corpo, você será a mais formosa de todas as mulheres.
No coração da floresta uma música
foi cantada, o próprio Tupã iniciou uma tempestade de raios e gritos furiosos,
enquanto um par de voz melodiosas enveredava-se por sobre a mata.
Todo bicho, toda planta, todo
homem e toda mulher ouviram a voz da Deusa Inominável e cantaram, pois a voz e
a vontade Dela, é o som de todas as coisas vivas e mortas existentes.
Cauã ficara maravilhado com o
dueto de vozes belas e sedutoras e em sua devoção esquecera-se de todos os
pudores ao avistar o corpo nu de sua amada, ele a desejou mais intensamente do
que nunca e revelou-se para ela, a chamando para si.
Movida por encanto, Iara
deixou-se levar pelo desejo sôfrego daquele a quem detestava e enquanto durou a
canção, ela encontrou-se nua a deliciar-se como um animal a beira do lago. Mas
apenas enquanto durou a canção da Deusa com suas intermináveis formas de mover
o tablado do destino.
– Iara, minha doce Iara, tão
perfumado é o seu corpo. Ficai comigo pela eternidade minha amada. – mas o
encanto já se quebrara e apesar de Iara ter se tornado a mulher mais formosa já
vista por aquelas terras, ainda continuava a sentir nojo de Cauã.
–Me largue, me largue. Eu não
desejo me unir a um reles guerreiro médio como você, eu quero o meu amado.
Nu e profundamente magoado, Cauã
ouviu a mulher que amava proferir todo o tipo de insultos para com ele, sem
preocupar-se com os sentimentos do guerreiro. Iara era uma mulher cruel e agora
o jovem percebia isso.
Cheio de fúria Cauã gritou pelo
Deus dos Índios, o Senhor do Sol e do Raio, Tupã que respondeu aos seus anseios
gritando ainda mais alto em sua morada celeste. Em sua sabedoria, ele devotou
poderes ao guerreiro, dando-lhe o status de pajé, pois ele um dia seria o líder
espiritual da tribo.
– Em nome do Raio, eu a expurgo
da tua casa. Desgraçada devoradora de homens, você jamais verá o meu amado,
pois ficará eternamente presa nesse lago e em todos os mais profundos recantos
aquáticos da floresta. Amaldiçoada será, seduzirá todos os homens com sua
profunda voz doce, mas a todos afogará em cegueira apaixonada. – Cauã
gesticulava furioso os braços, enquanto a jovem amada cada vez mais
aproximava-se encolhida da água. – Seu nome será conhecido por todas as tribos,
Iara sedutora de homens.
As pernas da jovem se
transformaram numa sinuosa causa de peixe e sua beleza acentuada pela maldição
tornou-se ainda mais irresistível, mas permaneceria eternamente escondida dos
olhos mortais, pois aquele que a visse, se afogaria por tentar se aproximar da
bela sereia que ela se tornara.
O próprio Caua tornara-se vitima
de sua maldição e cego de dor, ódio e paixão, aproximou-se de Iara que o afogou
impiedosamente nas águas do lago, envolvido pelos braços da amada e da Deusa.
– Dei-te o que pediu, mas ainda assim não conseguiste o que desejou. Por
isso, serei benevolente e conduzirei a sua voz até os ouvidos do ser amado.
Yasã sairá dos braços de sua irmã e virá até a ti.
– Não. Por favor, eu te peço. Não o traga, senão ele será tragado
pelas águas cruéis desse lago, não o traga até mim ou eu o destruirei e assim
destruirei todo o futuro da tribo, pois ele é o guerreiro de mais valor dentre
todos e sem ele, jamais venceríamos uma guerra.
– Nunca te preocupaste com o destino de teu povo e por isso não a
ouvirei, pois só tinhas direito a um pedido e desejaste seduzir o seu amado.
Eu, como a Inefável Deusa dos Mistérios da Noite, darei o que sua alma anela.
Pois cantarás eternamente Iara o seu lamento, enquanto o meu nome existir e o
meu nome é eterno, como será eterna a tua pena.
***
Negra noite conduziu o canto até
o profundo rincão em que Yasã
dormia cansado de sua caçada e das guerras que travara. Sua trigueira face
complacente de sonhos doces logo foi perturbada por esgares de duvida e
apreensão, de dentro de seus sonhos de abundancia para a tribo a musica o
arrancara.
Seus olhos abriram em meio à
escuridão enquanto suas pernas obedientes a voz feminina caminhavam
cambaleantes pela floresta em direção a clareira de onde o som se originava.
Era a mais pura voz que Yasã
podia imaginar ouvir em toda sua vida, a voz entorpecia seus sentidos e erigia
sua virilidade, era como se aquela melodia mexesse com todos os sentidos dele e
o enviassem em direção a algo mais sublime que os raios de Tupã.
Seus trôpegos passos o levaram em
direção a clareira na floresta, a lua iluminava duas belas figuras, mas só em
uma punha os olhos, pois era a moça que cantava. Diante de seu olhar,
reconhecer Ceci, a irmã daquela que fora sua amada.
– Iara! O que faz aqui em hora
tão tarde, bela Iara? Percebo agora o fulgor de sua formosura e os teus belos lábios
desejo.
– Não! – gritou – Seu destino é
com minha irmã Ariê. Apenas com ela você deve enlaçar-se, por favor, não! Não
se aproxime de mim! – Mas ela tarde e Yasã já vinha em direção a ela, em
direção a morte.
Iara nada pode fazer a não ser
tomar para si o ser amado. Era dor que ela sentia em seu peito por conseguir o
que desejava. Era dor, mas também era prazer, pois o corpo de Yasã debatia-se para
sentir o dela e enquanto sua vida se apagava, ele a desejava intensamente como
jamais desejaria outra mulher.
No fundo do rio repousou o
guerreiro e a amaldiçoada mulher pranteava dentro d’agua e ali ela gritava
culpando a Deusa Inominável pela morte do amado, jurando a si mesma guardar
para si seu canto mortal.
– A culpa pertence apenas a você mesma em seu desejo cego. E se você
não pode conter seu desejar, como pode conter seu prantear?
E apesar dela lutar intensamente contra sua
própria natureza todas as noites, homem algum que adentrar na mata deixará de
ouvir o canto de Iara e afogar-se em sua tristeza.
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